A situação de calamidade pública enfrentada pelo Estado do RS leva a uma série de debates envolvendo direitos. Um deles é a questão da revisão dos contratos. Muitos agricultores perderam tudo, vendo-se impossibilitados de cumprir com obrigações que, em outra circunstância, assumiram.
Como fica, então, a situação dos contratos?
Sobre o tema, ouvimos Karina Nunes Fritz, doutora pela Universidade Humboldt de Berlim, Alemanha, onde também fez mestrado sobre revisão contratual no Direito alemão, área em que atua como consultora e parecerista.
A professora demonstra preocupação porque, embora as pessoas acreditem que a revisão de contratos é uma questão simples, no caso da pandemia a doutrina majoritária se posicionou contrária à revisão, mesmo diante do cenário mundial, que afetou o cumprimento de diversos tipos de contratos e cadeias contratuais.
"O Judiciário ficou dividido, mas há uma corrente no STJ restritiva à revisão dos contratos. (...) E surge essa questão agora, de situação extraordinária, anormal, a maior enchente do RS. Volto à questão: vamos revisar ou vamos deixar as pessoas no sacrifício?"
Para ela, os contratos devem, sim, ser revistos.
A especialista também tratou do tema no projeto de reforma do Código Civil, e o que o STJ tem, em termos de jurisprudência, sobre as consequências de eventos imprevisíveis.
Assista:
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Reforma do Código Civil
Karina Nunes Fritz destaca que, durante a pandemia, sugeriu a aplicação da teoria da quebra da base no Brasil, porque entende que é perfeitamente compatível com o nosso Direito. Essa teoria permite a revisão, visando conservar o contrato, em vez de extingui-lo. Mas, à época, a sugestão não foi aceita.
Agora, o projeto de reforma do Código Civil em tramitação no Congresso prevê essa possibilidade, positivando a aplicação da teoria. “Estou bem feliz, porque minha ideia foi aceita, e recepcionada pelo projeto da Reforma do Código Civil.”
Efeitos imprevisíveis
Quanto à possibilidade de aplicação da teoria da imprevisão, a especialista brinca que Hollywood acaba com a “imprevisibilidade” de qualquer evento. O que é, de fato, imprevisível, são as consequências concretas que o fenômeno provoca.
"Enchentes, pragas nas lavouras, são eventos previsíveis. Acontece que a dimensão disso faz toda diferença. (...) O que está dentro do padrão não justifica revisar contratos. O problema, agora, é a dimensão dos efeitos concretos.”
A situação fica na mão dos julgadores.
“O STJ vai dizer que as enchentes são eventos previsíveis e não vai permitir a revisão dos contratos? Ou será que a gente vai ter que ter uma sensibilidade de entender – como entende a doutrina alemã – que não é o evento que tem que ser imprevisível, mas suas consequências concretas?”
Bases teóricas do Direito Contratual: Influências europeias
A advogada explica que o Direito Contratual brasileiro adota um “mix teórico”, e faz um panorama desde a idade média, passando pelas 1ª e 2ª guerras mundiais, até os diais de hoje, com influências da França, da Itália e da Alemanha.
“Temos uma teoria revisionista que manda extinguir, o que é uma incoerência, porque deve, primeiro, priorizar a revisão. (...) Dá aso a milhões de interpretações.”
Karina Fritz cita que há dois artigos no Código Civil que mostram isso. Veja abaixo:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Assista:
Situação de guerra
A conclusão a que chega a entrevistada é que a situação da 1ª GM, que deu origem à teoria da imprevisão, não é diferente da pandemia de covid-19, e situação semelhante ocorre agora na região Sul. “O que aconteceu lá atrás? Alta exorbitante dos preços, desvalorização das moedas. (... ) E aqui, tivemos problema de desvalorização, por alta excessiva do dólar, barril de petróleo com preço negativo. Houve um problema de dificuldade financeira tal como na 1ª guerra.”
Mesmo assim, não há um consenso sobre a possibilidade de revisão.