O comercial da Volkswagen tem gerado intensos debates. Entre os motivos está o uso de imagem de Elis Regina, cantora falecida em 82, recriado por inteligência artificial.
Teria Elis concordado em fazer campanha para a fabricante de veículos?, questiona-se. Envolvem aí os anos de chumbo, criticados por Elis e apoiados pela VW, e apontam ligação da empresa alemã com o regime nazista.
O tema esbarra em diversos aspectos do Direito, como a falta de regulamentação da inteligência artificial e os direitos da personalidade. E, porque não dizer o do consumidor: pode ter sido o espectador enganado por uma imagem que parece real?
Para fomentar o debate, Migalhas ouviu especialistas. Antes de ler, assista à peça publicitária:
“É você que ama o passado e que não vê”
Para o desembargador aposentado do TJ/SP Rizzatto Nunes, a questão da "deep fake", ponto central deste debate, precisa de regulamentação. Ele destaca que, em questões como esta, que afetam algum setor do Direito de forma inédita, é sempre importante que o legislador se debruce sobre o tema, investigue e debata com a sociedade para deixar bem claros os limites de atuação.
Do ponto de vista do que já há em termos de legislação, Rizzatto observa o que diz a Constituição:
"São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação." (inciso X do art. 5º)
Ele ainda cita que, pelo Código Civil, no que respeita à pessoa falecida, sua imagem e honra continuam protegidas, cabendo aos herdeiros o exercício dos direitos envolvidos (a partir de disposições expressas no parágrafo único do art. 12, e do parágrafo único do art.20).
Portanto, para ele, ainda que não haja regulamentação, o direito à imagem e à honra da pessoa falecida têm proteção legal.
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O professor pontua que, em se tratando de anúncio publicitário, o tema está também regulado pelo CDC. No entanto, as regras do Código estão dirigidas para o produto ou serviço apresentado, e não necessariamente ao exercício artístico do anúncio publicitário.
No caso do anúncio da Volkswagem, o professor observou que cabe analisá-lo com base no direito à imagem. "Nesse aspecto, é dos herdeiros o direito de uso da imagem. Se não existir violação à imagem da falecida, a relação jurídica é legítima."
"Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos"
Trazendo ao debate aspectos do Direito Civil, o professor Maurício Bunazar aborda o direito de personalidade, e a necessidade de esclarecimento sobre a herança desses direitos.
Herdeiros herdam os direitos da personalidade em si, ou ficam apenas com os aspectos patrimoniais? Ou seja, quem é o titular do direito da personalidade em caso de falecimento?
Há aí, conforme explica o professor, duas correntes:
i) Uma é a que diz: o titular é o próprio morto. E como pode o morto ser titular de direitos? É aquilo que a doutrina chama de pós-eficácia dos direitos da personalidade. Portanto, existem emanações da personalidade que não se apagam com a morte.
ii) Outra corrente é a que entende que os titulares do direito da personalidade passam a ser os herdeiros.
Para o professor, o grande dilema ético está em se criar uma imagem de Elis Regina que não existia, em uma situação na qual ela nunca esteve, tudo para fins de exploração econômica.
Afinal, o Direito admite isso ou não?
Se prevalecer a primeira corrente, de que as emanações pertencem ao morto, será complicado imaginar que os herdeiros possam criar novas imagens do falecido para explorar economicamente, o que seria absolutamente vedado pelo CC.
Se, por outro lado, se entender que, com a morte, os herdeiros herdam todos os direitos da personalidade, então teremos de admitir que se pode criar uma imagem e fazer com ela o que bem entender.
"Realmente espero que não prevaleça o segundo entendimento", destacou Bunazar.
Ele explicou seu posicionamento com exemplos: "Imaginemos uma situação grave. Pego um artista que faleceu há muitos anos para fazer propaganda política de um sujeito que ele nunca conheceu. Ou pior: de um sujeito com o qual ele tinha profundas divergências ideológicas. Imagine o Gandhi fazendo propaganda de armamentos, ou o Pontes de Miranda fazendo propaganda de sinopse jurídica. Será que isso é aceitável?"
"Vejam que temos profundos dilemas éticos aqui.”
"Digo que estou encantada como uma nova invenção"
A advogada Patrícia Peck, especialista em Direito Digital, destaca, antes de qualquer coisa, que "a tecnologia vem para resolver problemas e melhorar o bem-estar humano – a IA tem esse fim". Mas, é claro que isto depende de como é usada, visto que o uso pode ser desvirtuado.
Por isso, Peck destaca a importância de que sejam estabelecidos Códigos de Conduta e Melhores Práticas, conforme a aplicação nos diversos setores econômicos.
"Defendo a abordagem de 'soft-law' como um mecanismo mais próximo e dinâmico da sociedade civil e da indústria, até para apoiar o regulador. Pois, quando queremos regular a inovação tecnológica, temos grande chance de errar a mão, ou para mais (e cercear), ou para menos (e a lei não funcionar)."
Patrícia Peck explica que, atualmente, além da legislação civil e autoral, que regulam o direito de imagem e os direitos morais de autores e intérpretes, está em tramitação no Senado o PL 2.338/23, que pretende disciplinar o uso da inteligência artificial, estabelecendo normas gerais de uso e implementação de sistemas de inteligência artificial. "Mas o PL está muito distante da realidade fática da indústria e da sociedade”, opina,
Para ela, é preciso que entidades associativas sejam protagonistas e proponham os Guias de Melhores Práticas, e o próprio Conar pode atualizar o Código de Conduta do Mercado para servir de diretriz, mais do que apenas punir.
"Primeiro temos que orientar e indicar o caminho, pois estamos naquele momento magnifico da sociedade em que vamos dar um salto evolutivo, em que o homem cria nova tecnologia para ajudar a própria humanidade a ir para um novo patamar de desenvolvimento econômico e social.
Não devemos ser contra isso, devemos dizer como fazer. Para questões éticas, temos que refletir: fere que princípios? Podemos homenagear quem já partiu? A família autorizou? A própria pessoa autorizou? Temos contratos para isso. Se esta parte estiver bem resolvida, é mais uma questão de atender transparência."
A profissional acredita que o problema apontado no comercial da Volks poderia ser solucionado, por exemplo, com disclaimers que deixem claro: "feito com tecnologia de IA para recriar imagem e voz em homenagem ao artista tal, autorizado pelo mesmo ou pela família, ou por quem quer que seja e datar".
Também poderia ser disponibilizado um canal de contato para dialogar com a sociedade para eventuais denúncias.
"O problema maior da 'deepfake' não reside no seu uso, mas em deixar claro o seu uso, no princípio da transparência. Que para mim tem que ser um dever, mais que um princípio ético."
Por fim, Peck defende importante ponto deste diálogo: "não podemos ter medo do novo, nem barrar a inovação".
"Reitero que temos que dizer como fazer. Entendo que a ética aqui tem dois pilares, uma com o artista, e outra para com a sociedade, ou seja, público em geral. Aí estamos na transparência."
Para a advogada, estamos além da questão dos direitos morais, dos direitos de imagem ou direitos de pessoa falecida, pois para tudo isso já há leis claras vigentes aplicáveis que têm que ser seguidas.
"Estamos dentro de uma seara que diz respeito a um dever de que a IA deve sempre deixar claro que é um robô, que a interação é robótica e não humana. Para evitar confundir e ludibriar o ser humano. E isso sim é essencial de ser uma obrigação legal."
Peck destacou que há e haverá sempre uma questão relacionada ao fato de que os direitos morais transcendem a vida da pessoa e devem ser preservados tal qual se viva fosse. "Nesse sentido, nos cabe perquirir se o uso pretendido no caso concreto está consonância com os valores da pessoa em vida. Aqui a discussão é de ordem ética."
A advogada conta que, hoje, já aplica a seus clientes um questionário sobre herança digital, que permite tratar melhor do tema no futuro.