A Polícia Civil investiga caso de suposto abuso sexual virtual contra uma criança de dez anos em Ribeirão Preto/SP. A informação é de que um rapaz, que disse ter 15 anos, teria pedido a ela que mandasse fotos nua em troca de bônus em um jogo virtual chamado Free Fire. O caso foi noticiado pelo G1 na semana passada.
A menina teria enviado ao menos quatro fotos, sendo que em pelo menos uma delas a criança está nua. Prints das conversas mostram que a pessoa teria feito chantagem para receber as fotos.
Os pais registraram boletim de ocorrência.
Estupro virtual
Acerca de crimes sexuais cometidos em meio virtual, Migalhas teve acesso a uma importante decisão, e que foi paradigmática, abrindo caminho para a possibilidade de outras condenações por crimes graves cometidos em meio virtual que, até então, poderiam ficar impunes por falta de aparato legal específico.
O caso se deu em 2015 e envolve o estupro virtual de um menino de dez anos cometido por um estudante de medicina. O pai do garoto descobriu que a criança se comunicava com um estranho por meio do site “Omegle”, plataforma americana cujo slogan é “Talk to Strangers”, ou “Fale com estranhos”.
O menino morava com o pai em São Paulo e conheceu o usuário, que usava o codinome "Pedro Doltsch". À época, o assediador tinha 24 anos. Após se conhecerem nesta plataforma, eles trocaram redes sociais e passaram se comunicar com frequência e com o uso de webcam. Nessas conversas, o homem fazia solicitações sexuais ao menino.
O caso chegou ao Ministério Público para investigação, e a conclusão é de que se tratava de um predador sexual. Anos depois, o homem acabaria preso por "estupro virtual" – provavelmente a primeira condenação desse tipo na Justiça brasileira.
O promotor responsável pelo caso era Júlio de Almeida, que hoje atua como advogado. Ele explicou ao Migalhas como o caso chegou ao Ministério Público, e qual o caminho percorrido por sua equipe até a condenação.
Assista:
Investigações
Júlio de Almeida explica que, após o pai levar o caso à polícia, o MP do Rio Grande do Sul foi acionado, já que a polícia constatou que o acesso do criminoso partia de lá.
Após investigação minuciosa, a promotoria, em grupo especializado em violência sexual contra crianças em crimes de internet, em conjunto com a PF, descobriu que o computador era ligado à rede de uma grande universidade do RS, que tinha conectados a ela cerca de 2.600 computadores.
Em busca de suspeitos, foi encontrado um perfil que chamou a atenção: um estudante de medicina que tinha trabalhos acadêmicos em sexologia e trabalhos voluntários na pediatria.
Diante de sinais de alerta, a promotoria juntou elementos e conseguiu autorização judicial para realizar busca e apreensão contra o estudante e, junto de um trabalho de perícia feito no local, encontrou nas mídias do homem mais de seis mil imagens de conteúdo sexual infantil. Em razão disto, o homem foi preso em flagrante.
Júlio Almeida destaca que foi observada, aí, uma peculiaridade: diferentemente do que se costuma encontrar, que são imagens de crianças brancas de olhos claros, com características europeias, que vêm da deepweb, nos arquivos do estudante o que se viam eram crianças com nomes e características brasileiros.
Segundo o promotor, partiu daí a percepção de que não estavam diante de um homem que consumia conteúdo sexual infantil, mas de um predador sexual.
Condenação
O promotor explica que, com base no conteúdo encontrado no computador, o caso seria enquadrado em crimes de penas mais brandas, como armazenamento de conteúdo de crianças e adolescentes em ato sexual ou de nudez, com pena de 1 a 4 anos.
Mas ele percebeu que o caso era muito mais grave do que isso. “Era muito pouco para aquilo ali”, disse o promotor.
Uma vez confirmado que era ele quem trocava mensagens com o garoto de dez anos, era preciso buscar uma condenação mais adequada.
Júlio de Almeida explica que a lei brasileira define como crime de estupro de vulnerável "ato de conjunção carnal ou libidinoso com menor de 14 anos", com pena de 8 a 15 anos.
Mas, um crime cometido em meio virtual poderia ser enquadrado neste dispositivo? O promotor entendia que sim.
Para demonstrar sua tese, Júlio de Almeida citou precedente do STJ no qual um adulto levou uma menina de 13 anos a um motel e praticou masturbação vendo a criança se despir, mas sem tocá-la. Mesmo sem contato físico, o STJ considerou estupro, entendendo que bastava que ambos estivessem no mesmo ambiente e que a ação de um satisfizesse o desejo sexual de outro. “Ali encontrei o conceito que eu precisava atualizar", lembra Almeida.
O promotor, então, trabalhou para aplicar a mesma tese ao ambiente virtual, no sentido de que este homem também estaria no mesmo ambiente que a criança. E obteve sucesso.
O promotor e sua equipe apresentaram longa e minuciosa denúncia, a qual foi aceita e julgada procedente, com sentença condenatória por estupro virtual com pena de 14 anos de prisão.
A denúncia data de outubro de 2017, e a sentença é de dezembro de 2018.
Em segundo grau, a pena foi reduzida para 12 anos e nove meses de reclusão. O acórdão do TJ/RS é de janeiro de 2020.
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- Processo: 0005040-89.2019.8.21.7000
Cuidados
O promotor aposentado alerta que vivemos uma situação de abuso sexual muito forte pela via virtual, especialmente depois da pandemia, quando as crianças passaram a ter mais acesso aos meios virtuais, e o controle parental ficou muito mais difícil.
Especialista em casos de crimes contra crianças e jovens, o advogado faz um alerta aos responsáveis: a palavra é conscientização.
Júlio de Almeida destaca que é importante colocar limites etários, espiões, e formas de controle. Apesar disto, eles podem ser burlados. Além disso, à medida que a criança vai crescendo, ela precisa de autonomia.
Por isto, as crianças e adolescentes precisam ser orientadas e conscientizadas.
Ele também dá dicas de filmes que, de forma lúdica, podem falar dos perigos que podem ser encontrados na internet.
Veja: