Migalhas Quentes

"Mais do que provas prontas", diz advogado acusado de "desserviço"

Desembargador criticou sustentação oral do causídico. Em nota ao Migalhas, ele explicou sua tese de defesa.

1/4/2022

Na última quarta-feira, 30, durante sessão de julgamento da 2ª câmara Criminal do TJ/MT, o advogado João Guilherme Scheffler foi alvo de crítica por parte do desembargador Luiz Ferreira da Silva. O causídico realizou sustentação oral em julgamento de HC, em favor do paciente. Mas, para o magistrado, ele teria prestado “desserviço” ao cliente ao usar em seu método de defesa argumentos filosóficos e sociológicos.

Migalhas conversou com o advogado, que disse ter se sentido ofendido diante da interrupção e comentários do magistrado. Em nota à redação, ele disse que “não cabe ao magistrado realizar opiniões pessoais acerca do método da defesa”, o que fere as prerrogativas do advogado em usar “todos os meios lícitos de convencimento”.

Advogado acusado de "desserviço" explica tese de defesa.(Imagem: Reprodução/TV Migalhas)
 

Graduando em filosofia, o causídico disse, ainda, que “toda a lei se baseia nos conhecimentos da humanidade, e os mesmos motivos que fundamentam uma defesa, fazem a lei existir, com base no desenvolvimento histórico".

Segundo Scheffler, “o que se percebe é que, independentemente da atitude do acusado, o sistema não está apto ao debate mais profundo – são utilizadas formas iguais para processos diferentes”. “Conhecendo o sistema defeituoso, a falta de estrutura, precisamos de muito mais do que provas prontas para julgar um par.

“O que se pergunta é: O conhecimento serve para escrever livros como aponta o Douto Desembargador mas não serve para o convencimento do juiz? Serve para dar aulas e palestras mas não serve para conscientizar os julgadores e auxiliar um indivíduo?”

Relembre o episódio:

Scheffler diz que pode não ter sido compreendido pelos julgadores, assim como acredita que “talvez o desembargador não tenha tido o interesse em ser ofensivo”, e salientou que o interesse era apenas em demonstrar que sua crença doutrinária era motivo de análise mais profunda para, quem sabe assim, pudesse ter sido concedida a ordem ao paciente.

Leia a íntegra da nota do advogado enviada à redação.

Para esclarecimento dos Nobres colegas que estão assistindo o vídeo, eu sou o advogado da sustentação, e essa é a minha explicação:

Toda a lei se baseia nos conhecimentos da humanidade, e os mesmos motivos que fundamentam uma defesa, fazem a lei existir, com base no desenvolvimento histórico (Vide Miguel Reale e Michael J. Sandel).

O que se percebe é que, independente da atitude do acusado, o sistema não está apto ao debate mais profundo, são utilizadas formas iguais para processos diferentes, chamamos isso de jurisprudência (vide exposições de Miguel Reale citadas por Cândido Rangel Dinamarco no livro A Nova Era do Processo Civil).

Ressalte-se que a própria jurisprudência não é uníssona, então como poderíamos aceitar que as cortes devem se basear somente na “prova pronta”, sem contar ao fato de que este argumento não se sustenta com relação à defesa, que sim, se baseou nestes elementos também.

O que se pergunta é: O conhecimento serve para escrever livros como aponta o Douto Desembargador mas não serve para o convencimento do juiz? Serve para dar aulas e palestras mas não serve para conscientizar os julgadores e auxiliar um indivíduo? É preciso que o advogado acredite que a lei é perfeita da forma com que se encontra? É preciso que se escreva um livro para que a lei mude? Sabemos que não é bem assim, existem doutrinas aos montes, tanto que me utilizei de muitas delas.

A exposição era complementar ao pedido, sendo que a conclusão da exposição ainda não havia sido feita durante a sustentação até a interrupção. Aliás, não cabe ao magistrado realizar opiniões pessoais acerca do método da defesa, isso fere as prerrogativas do advogado de “utilizar todos os meios lícitos de convencimento”, ainda que seja contrário a qualquer tese.

O HC estava instruído com julgados que embasavam os pedidos, a sustentação somente fez o link de todos os elementos. Sabemos que existem mais princípios sociológicos por trás da lei do que pode imaginar a nossa vã filosofia, pois, sustentando nesta corte há vários anos, tenho o conhecimento de que não só neste tribunal, a rigidez é uma regra.

Não posso afirmar, mas quem sabe, um intérprete mais atento poderia assistir toda a sustentação e dizer que eu sou um louco, outros poderiam dizer que sou um utopista, alguns até um visionário, e também dizer que as críticas que eu fiz estão erradas ou foram muito pesadas.

Porém, acredito que direitos como a vida e a liberdade, são garantidos pela Constituição e reforçados por grandes Teorias como a Teoria dos Poderes Implícitos, um princípio de Hermenêutica Constitucional, de fonte nascente no Direito Norte Americano (Diga-se de passagem, muito à frente do nosso tempo, muito mais humana).

E conhecendo o sistema defeituoso, a falta de estrutura, precisamos de muito mais do que provas prontas para julgar um par.

Quando a Constituição dá os Fins (liberdade), deve ceder os meios (Defesa plena). Por mais que o Magistrado não concorde com a exposição, não existe direito algum que ampare comentários de tal magnitude, uma vez que além da liberdade do advogado em patrocinar a defesa do acusado, existem normas éticas e morais que deveriam afastar estas práticas do judiciário.

Com isso, não aceito a tese de que, em se tratando da liberdade de alguém, o fato levantado pelo Douto Luiz Ferreira de que as cortes julgam somente “com base na prova pronta”.

Os amantes da filosofia jurídica devem se lembrar que sim, os fatores filosóficos e sociológicos interferem no julgamento e isso é uma campo largo e extenso para discussão, não podemos colocar todos os gatos no mesmo saco, e essa argumentação está dentro da sustentação, faço esse adendo.

A tese estava bem clara, a prisão não era sustentável somente com base na garantia da ordem pública, periculosidade do indivíduo, grau de reprovabilidade da conduta e afins da praxe, além do mais, neste caso, réu primário. O fundamento que ia além dos fatores sociológicos e emocionais no momento em que se recorda que a liberdade é a regra, a prisão a exceção.

Ressalte-se que se trata de um HC que levou mais de 70 dias para ser julgado, isso dá credito à fundamentação do Projeto Florença, apresentado na sustentação. O Estado se vale da própria torpeza.

Existem inúmeros julgados que garantem a liberdade do acusado no caso em que se comenta, porém, pelo conhecimento que temos das cortes, a simples regurgitação de acórdãos não é suficiente, sendo necessário um esforço maior dos advogados que atuam nos tribunais em geral, como bem sabemos. Precisamos fazer a diferença, ir além.

Me baseio nos estudos dos grandes doutrinadores, como consta na sustentação, então, indiretamente, de uma certa forma, o Douto Desembargador não estaria ofendendo a mim, e sim, um pensamento em comum de todos eles na parte que cabe a cada obra.

E eu convido quem quer que seja a me visitar no meu escritório para um debate proveitoso e construtivo, momento em que terei o prazer de apresentar cada um desses livros que utilizo no dia a dia, lembrando que muito da minha construção de pensamento não se baseia somente nestes livros, mas na construção social de minha persona (Kant, Rousseau, Durkheim, Montesquieu, Michael J. Sandel, professor de Direito de Harvard, John Rawls idealizador do NCPC, no reforço positivo do direito escritores atuais como Shawn Achor, e, no princípio psicológico Murray Stein e Carl Gustav Jung, e principalmente nesta defesa, como fundamentos os livros lidos de Mauricio Zanoide de Moraes, Maria Lúcia Karam, Rafael Boldt, Leonir Batisti, Eugênio Pacelli e Domingos Barroso da Costa).

Talvez eu não tenha sido compreendido pelos julgadores, assim como acredito que talvez o Desembargador não tenha tido o interesse em ser ofensivo (embora eu tenha recebido desta forma), somente saliento que o meu interesse era simplesmente demonstrar que a minha crença doutrinária baseada nos meus estudos, naquele caso, era motivo de uma análise mais profunda, para quem sabe assim, e somente assim, pudesse conceder a ordem ao paciente, justamente por enxergar o judiciário desta forma.

Devemos nos lembrar que, como apontam os doutrinadores, nos processos penais os acusados acabam sendo “coisificados”, perdem a sua identidade como seres humanos, justamente pelo fato de estarem sendo geridos por um sistema deformado, um Estado ineficiente, leniente, omisso, arbitrário, por agentes brutalizados, como aponta Zanoide.

A doutrina utilizada e a técnica da defesa é totalmente válida e utilizada diariamente nos tribunais, só não foi dessa vez (cada cabeça uma sentença, já diz o ditado), afinal, na sustentação eu explico isso, e explico os motivos daquela sustentação (Não estava militando em favor da descriminalização das drogas, embora os elementos estejam atrelados, como o Douto Desembargador cita o Ex Presidente Fernando Henrique Cardoso no que se refere aos fatos expostos).

Deixo aqui uma crítica: nós advogados, percebemos que durante os julgamentos, na maioria dos casos, os julgadores aparentam que já vão com o voto pronto (talvez pela falta de julgadores para comportar tamanha quantidade de processos, aí lembramos o Projeto Florença), motivo pelo qual se percebe que eles, (não todos) nem prestam atenção na nossa oratória, demonstram que não estão dispostos a ouvir.

Aqueles que estiverem dispostos a assistir na íntegra, perceberão que o próprio procurador do Parquet expressou fisionomia cômica, como se estivesse rindo da sustentação e exposição da tese, uma atitude percebida por mim, e recebida como uma falta de respeito.

Ainda assim, neste caso saí feliz, pois, embora tenha me sentido ofendido, ao menos fui ouvido, e ainda de quebra, ganhei de prêmio um conhecimento maior da posição comportamental de entendimento da corte, para futuras sustentações.

Assim como já fui chamado em audiência por uma magistrada de piso, de forma elogiosa, após uma discussão acalorada e respeitosa sobre o procedimento: “eu sei, o senhor é um advogado apaixonado”, eu acredito que todo advogado que se esforça e luta pelo trabalho com amor não gostaria de receber declarações ofensivas que ofendem não só o indivíduo, mas as prerrogativas e métodos válidos e atuais de defesa, pois, toda mudança partiu do esforço daqueles que lutaram pelo acreditavam, mesmo tendo sido atacados.

Ressalto que na mesmo corte, em outras oportunidades, também já fui elogiado por outros colegas Desembargadores após sustentação, o que demonstra que estou no caminho certo, e que o meu trabalho não é um desserviço, por mais que a cena jurídica atual não seja a favor da nossa tese. Como diz o Dr. Des.: "é o tempo que vai transformar suas ideias em que? Na lei."

Longe da discussão do mérito do processo, a única manifestação que cabe discussão é o fato de que a fala do Douto Des., acabou sendo recebida por mim como uma ofensa não só ao meu trabalho, pareceu dirigida além das aparências de que eu estivesse prejudicando meu cliente, mas sim uma ofensa pela insinuação de uma ausência de conhecimento ou de técnica. O que poderíamos dizer se após a sustentação há direito ao debate e esclarecimentos.

Na minha opinião, tais atitudes, ainda que indiretamente, atingem toda a classe de advogados, uma vez que, por mais que os colegas não comunguem do meu ponto de vista e teses, acredito que todos exigem respeito aos direitos inerentes à profissão, no mínimo o tempo lídimo de sustentação sem interrupção e a liberdade de expressão e exercício do trabalho conforme as próprias crenças.

A interrupção, no caso, foi desnecessária, além de que, a obrigação de acompanhar o tempo é do advogado, ressaltando-se que poderia ter desestabilizado um advogado menos experiente na tribuna, pois sei bem, em minhas primeiras vezes, enfrentei um certo medo e receio, principalmente por saber da responsabilidade.

Tal atitude só desestimula mais ainda que os advogados iniciantes e também os mais experientes atuem com liberdade.

Ademais, a oportunidade para que o julgador pudesse dizer que “não entendeu a tese”, poderia ter sido suscitada no momento oportuno, o do voto, por mais que também possa se dizer que o Desembargador estava tentando “ajudar”.

A advocacia não é profissão de covardes”, e a célebre frase do advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto segue ecoando, amparada pelo nobre conselho “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça” de Eduardo Juan Couture.

Pode parecer clichê, mas e eu digo que prefiro carregar a culpa de ser incompreendido por muitos, do que morrer arrependimento de não lutar pelo que acredito e pelo que entendo ser a melhor defesa humanitária para os meus clientes.

Por fim, quanto aos fundamentos filosóficos e sociológicos do Direito, da Doutrina, da Lei, seriam necessários muito mais do que míseros quinze minutos de plenário para o debate em ágora.

O meu sonho, é que um dia abandonemos os discursos corporativistas e tecnicistas, para trazer de volta o debate Filosófico Jurídico e Sociológico Científico, uma vez que tais elementos são as condições de desenvolvimento como atividade social de progresso e mudança, pois, como nos lembra o Doutrinador José Antônio Tobias, o Direito é uma Ciência.”

João Guilherme Scheffler

 

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