Caráter, sabedoria, idealismo, compaixão, alegria e contentamento. Essas são as placas que, segundo o ministro Barroso, podem ser encontradas ao longo da estrada e que vale a pena seguir.
Em discurso emocionante de formatura da última turma da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o patrono Luís Roberto Barroso aconselhou os recém-formados que por mais óbvio que possa parecer, que o que vale a vida não é a chegada a um objetivo, mas o caminho e a maneira como o percorre.
O ministro-professor também alertou para os tempos difíceis da humanidade, do mundo e do Brasil. Barroso lamentou o ódio sem inibição, a mentira naturalizada, a negação da ciência, a agressividade, a grosseria, as ofensas e a linguagem chula que foram incorporadas ao comportamento padrão e o uso da religião para destilar raiva e maus sentimentos.
“Estamos vivendo um tempo em que muitos demônios que viviam nas sombras se sentiram à vontade para sair à luz do dia. (...) Também saíram à luz do dia, com pouca cerimônia, os racistas, os homofóbicos, os antiambientalistas, os desmatadores, os grileiros e supremacistas variados. É preciso resistir, sem ceder à tentação de utilizar as mesmas armas.”
Barroso celebrou a inclusão da Universidade, ressaltando a convivência entre os filhos das famílias privilegiadas, “beneficiadas pela sorte e pelas estruturas sociais”, e os filhos das famílias humildes, “que percorreram um caminho mais árduo ainda para chegar até esse dia”.
“Nós proporcionamos a eles a igualdade que falta lá fora e contribuímos para que ela diminua progressivamente. Nossos alunos aprendem que ninguém é melhor do que ninguém. Que ninguém deve ser indiferente à sorte dos demais. Que a importância de uma vida é medida pelo bem que se faz aos outros.”
Por fim, Barroso aconselhou que os formandos sejam as melhores pessoas que puderem e os melhores profissionais que conseguirem ser. “Transformem-se nas pessoas que gostariam de ser. E celebrem essa realização, não com vaidade, mas como alguém que cumpriu bem o seu destino”, finalizou.
Veja a íntegra do emocionante discurso:
_______
AS PLACAS DO CAMINHO
Luís Roberto Barroso
A vida não se repete. Amores não são iguais. Ser patrono da turma de vocês é uma experiência única, nova, diferente. Um privilégio que a vida me deu e que permite que eu esteja aqui saboreando este momento, como se esta fosse a primeira vez. Professor nos dois primeiros anos do curso, não é pequeno o risco de eu ser esquecido com o passar do tempo. Daí a minha felicidade de ter ficado na história e na memória de vocês. Tudo isso dá à vida um renovado sentido: é que melhor que um grande amor, só um grande amor correspondido.
Não é fácil não ser banal e repetitivo em ocasiões como essa. Sempre estão presentes a alegria da missão cumprida e a tristeza da despedida. Mas a impermanência é a única certeza dessa vida: as coisas passam. A parte boa é que surgem novas pessoas, novas experiências, outras oportunidades. E tudo o que passa e que merece ser lembrado constitui nosso patrimônio afetivo. E a afetividade, como sempre procurei dizer e demonstrar a vocês, é uma das forças mais poderosas do universo, uma energia revolucionária. Temos a partir de hoje um pacto de parceria e amizade por toda a vida. Daqui até o final dos tempos, quando qualquer um de vocês encontrar comigo onde quer que seja, a senha é: “Fui seu aluno na Turma de 2021”. E a luz da minha lembrança e do meu afeto estará acesa.
E é justamente esse afeto que inspira as palavras que dirijo a vocês. É comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções. Mas, no tempo que nós vivemos, inundado por informações de todas as fontes, da ciência à autoajuda, passando por fundamentalismos diversos, talvez haja mesmo é excesso de instruções. Não há regras únicas para a vida boa, a felicidade e o sucesso. Mas há valores atemporais e universais. Destaco aqui algumas placas que vocês encontrarão ao longo da estrada e que vale a pena seguir. Elas ajudam a fazer a vida melhor e maior, embora não necessariamente mais fácil. Sempre lembrando, por mais óbvio que possa parecer, que o que vale a vida não é a chegada a um objetivo, mas o caminho e a maneira como a gente o percorre.
Uma das primeiras placas do caminho é ter caráter. O caráter é a alma verdadeira de cada um, a soma das qualidades morais que definem uma pessoa. Caráter é diferente de reputação. Reputação é o que os outros pensam de você. Caráter é o que você de fato é. O conteúdo é muito mais importante do que a imagem. Ter bom caráter envolve (i) integridade, que significa ser correto, honesto, agir de boa-fé, não desviar dinheiro público e não passar os outros para trás; (ii) não ter inveja, substituindo-a, conscientemente, pela capacidade de admirar com sinceridade os outros, esquivando-se, também, do ódio, que é um sentimento que só faz mal a quem o sente; e (iii) evitar a maledicência, a intriga, o malquerer. E, sobretudo, não dar a ninguém o poder de modificar o que você é, de tirá-lo do seu ponto de equilíbrio. A gratidão também é parte importante da vida: poder agradecer e ter o que agradecer é uma bênção. E, por fim, lembrem que é a maneira como a gente trata as outras pessoas, sobretudo as mais humildes, que dá a real natureza do caráter de cada um.
Outra placa do caminho, que merece ser seguida, está no Livro de Provérbios da Bíblia Hebraica: “Feliz é a pessoa que acha a sabedoria”. Sabedoria é mais do que inteligência, do que conhecimento, do que conquistas intelectuais e profissionais. Ela inclui, em primeiro lugar, (i) o autoconhecimento – saber quem a gente é, onde mora o nosso coração, quais os nossos valores, o que nos faz felizes; requer, também, (ii) empatia, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro, compartilhar sua humanidade e entender suas circunstâncias; e, por fim, demanda (iii) três tipos de inteligência que não são inatas, mas que a gente desenvolve por desígnio próprio: inteligência emocional, que é o domínio das próprias emoções; inteligência espiritual, que é a percepção de que a vida vai além de uma dimensão puramente material e que há valores transcendentes; e inteligência social, que é a capacidade de se relacionar bem com as outras pessoas, de sustentar as próprias verdades com educação e leveza. A sabedoria não apenas passa longe da arrogância como reconhece que, muitas vezes, ela repousa mais na simplicidade do que na erudição.
Uma terceira placa no caminho da vida boa é o idealismo. Pensar o mundo como ele deve ser, movendo-se por valores elevados e bons propósitos. Viver além do próprio interesse pessoal e desfrutar o prazer de fazer pelo outro e pelo país. O ideal está para a vida pública como o amor está para a vida privada: é a motivação para aspirar mais do que apenas o acúmulo de bens, os prazeres sensoriais e as conquistas pessoais. É preciso ter fé no bem e na justiça, mesmo quando não estejam ao alcance dos olhos. A abolição da escravatura, a igualdade entre raças, bem como entre homens e mulheres, já foram ideais remotos antes de se tornarem possibilidades reais. Uma advertência: o fato de alguém ser idealista não significa que seja o dono da verdade. Numa sociedade aberta, democrática e plural, existem muitas verdades possíveis. Ouçam a todos. Sejam intolerantes apenas com a intolerância. E não desanimem mesmo quando as verdades em que acreditam não prevalecerem num dado momento. Nem deixem de fazer o certo porque estão todos se beneficiando do errado. Lembrem-se: a virtude é a sua própria recompensa.
Uma placa que frequentemente passa despercebida no caminho é a da compaixão. Compaixão é uma combinação de empatia, solidariedade e generosidade diante do sofrimento e das dificuldades dos outros. É algo mais profundo do que a simpatia ou a gentileza. Saber colocar-se no lugar do outro e ter disposição para ajudar não é necessariamente um dom, mas um aprendizado. Algumas sinalizações úteis: (i) julguem somente quando precisarem julgar; (ii) tenham disposição para perdoar e dar uma segunda chance; e (iii) peçam desculpas sinceras quando se convencerem de que erraram. E, claro, perdoem-se a si próprios. Tudo o que é preciso é o arrependimento sincero. Ainda quando possa ser difícil, procurem ter respeito e consideração por todos, mesmo quem pareça não merecer. As pessoas lutam muitas batalhas que ninguém fica sabendo. Ah, e tenham, também, autocompaixão. Na bela poesia de Vironika Tugaleva: “Uma coisa é certa: você vai cometer erros. Aprenda a aprender com eles. Aprenda a se perdoar. E aprenda a rir quando tudo desabar, porque em algum momento vai acontecer”.
Há uma última placa que não é nem supérflua nem fútil, como alguém poderia imaginar: a da alegria e do contentamento. A alegria é a face externa da vida boa, enquanto o contentamento é a sua dimensão interna. Ambos significam estar de bem com o universo, ser grato por estar aqui. É uma homenagem à criação. Desfrutar a beleza da vida e os prazeres legítimos sem culpa e sem medo de ser feliz. Alguns avisos importantes. Nenhuma vida completa é feita só de vitórias. Haverá derrotas, tristezas e perdas dolorosas. O que faz diferença na vida é como cada um reage aos maus momentos, renovando sua força, seus valores e se tornando uma pessoa melhor. O fato de não se poder consertar tudo o que está errado não nos impede de viver com alegria e contentamento. Ambos moram dentro da gente. É só uma questão de ir buscar. E, se combinarem alegria com bom humor, o mundo se atirará aos seus pés. Ah, sim: e como cada um é feliz à sua maneira, tem gente que é feliz sendo triste. Também é um direito. Uma última observação: não percam as pequenas alegrias do caminho enquanto aguardam a felicidade plena e o mundo perfeito. Eles não virão.
É hora de nos despedirmos. Vocês estão saindo para a vida lá fora num momento difícil da humanidade, do mundo e do Brasil. Não me refiro unicamente à pandemia, apesar de sua dramaticidade. Mas é que nós vivemos num planeta que se beneficiou, no último século, de progressos inimagináveis, no plano material, científico e tecnológico. Hoje, vivemos mais, temos mais acesso a bens de consumo e a muitas comodidades. Mas tivemos poucos avanços na nossa humanidade, na nossa espiritualidade e na capacidade de pensar o mundo como uma unidade fraterna, no qual o sofrimento de um deveria significar o sofrimento de todos. Temos múltiplos bolsões de pobreza, de violência, de vidas sem perspectivas. E, simultaneamente, uma quantidade imensa de gente, no andar de cima, que só pensa em levar vantagem, locupletar-se, desviar recursos. Gente que simplesmente não sabe viver honestamente. Jamais se permitam ser como eles.
Além disso, estamos vivendo um tempo em que muitos demônios que viviam nas sombras se sentiram à vontade para sair à luz do dia. O ódio passeia sem inibição pelas ruas e pelas mídias sociais. A mentira foi naturalizada com nomes enganosos, como pós-verdade e fatos alternativos. A ciência vem sendo negada em atitudes pré-iluministas que colocam em risco a vida e a saúde das pessoas. A agressividade, a grosseria, as ofensas e a linguagem chula foram incorporadas ao comportamento padrão. Seres sem nenhuma espiritualidade invocam a religião para destilar raiva e maus sentimentos. Nenhuma gota de amor ao próximo; apenas o mal travestido de bem. Também saíram à luz do dia, com pouca cerimônia, os racistas, os homofóbicos, os antiambientalistas, os desmatadores, os grileiros e supremacistas variados. É preciso resistir, sem ceder à tentação de utilizar as mesmas armas. Na advertência importante de Nietzsche: “Quem luta com monstros deve cuidar para que no processo não se transforme em monstro”.
Uma última palavra às famílias de vocês. Àqueles que estiveram ao seu lado ao longo de toda a jornada e que agora vivem a gloriosa sensação da missão bem cumprida. A UERJ proporciona aos seus estudantes uma experiência única. Aqui convivem os filhos das famílias privilegiadas, beneficiadas pela sorte e pelas estruturas sociais, e os filhos das famílias humildes, que percorreram um caminho mais árduo ainda para chegar até esse dia. Nós proporcionamos a eles a igualdade que falta lá fora e contribuímos para que ela diminua progressivamente. Nossos alunos aprendem que ninguém é melhor do que ninguém. Que ninguém deve ser indiferente à sorte dos demais. Que a importância de uma vida é medida pelo bem que se faz aos outros.
Meus queridos afilhados, dirijo-me agora a cada um de vocês, num abraço de despedida: lembrem sempre de agradecer. Sejam as melhores pessoas que puderem e os melhores profissionais que conseguirem ser. Afastem-se dos maus. Sorriam com frequência. Cultivem amigos sinceros. Reconheçam um grande amor, quando ele chegar, mas não deixem a sua felicidade depender de ninguém. Andem na praia ou na montanha, de vez em quando, apreciando a beleza do universo. Ajudem alguém que precise mais do que vocês: a vida sempre devolve generosamente o que a gente dá. Abracem e beijem as pessoas queridas. Evitem dizer coisas negativas sobre a vida ou sobre as pessoas. Transformem-se nas pessoas que gostariam de ser. E celebrem essa realização, não com vaidade, mas como alguém que cumpriu bem o seu destino.
Vão em paz. Sejam felizes. Façam o mundo melhor. Sejam sempre abençoados.