Imagine que, a fim de garantir a liberdade de um cidadão, um juiz "empunha" um trator e derruba logo a cadeia toda. Parece história de migalheiro... E é! O caso aconteceu na cidade de Ipuiuna, cidade do interior de Minas pertencente à comarca de Caldas.
O juiz era Ronaldo Tovani, a quem tivemos a honra de entrevistar no primeiro episódio do nosso novo quadro, Migalheiros em pauta, por meio do qual conheceremos um pouco mais os leitores que nos acompanham diuturnamente.
Tovani conta que, por essas e outras, figurou algumas vezes no banco dos réus. Em nenhuma delas, deixa claro, foi processado por fatos que arranharam sua honra. Tratam-se, conforme esclarece, de episódios em que ele "simplesmente contestou o sistema".
O mesmo juiz, hoje aposentado, tem uma sentença famosa, escrita na década de 80 em versos de poesia. O caso era de um ladrão de galinhas, que não pôde devolver o fruto do furto porque as penosas já haviam ido parar na panela.
Pelas boas histórias e pelas críticas contundentes – não lhe escapam o sistema penal, políticos, e até, veja, o Migalhas –, o migalheiro Ronaldo Tovani já esteve também no sofá do Jô Soares. Ele, agora, nos concede uma conversa exclusiva e imperdível.
Assista:
Ronaldo Tovani nos conta um curioso caso que aconteceu na década de 80, quando era juiz de Direito em Minas Gerais. O caso era de um homem que furtou duas galinhas para comer, e por isso estava preso.
O inspirado magistrado acabou por escrever a sentença em versos, não sem aproveitar a deixa para fazer críticas ao governo, citando escândalos da época em que os envolvidos nunca foram presos. Ele citou também o polêmico sequestro do vice-presidente do Bradesco, o banqueiro Beltran Martinez, ocorrido em 86. “Desde quando furto é crime / neste Brasil de bandidos?”
Leia, na íntegra:
No dia cinco de outubro
Do ano ainda fluente
Em Carmo da Cachoeira Terra de boa gente
Ocorreu um fato inédito
Que me deixou descontente.
O jovem Alceu da Costa
Conhecido por "Rolinha"
Aproveitando a madrugada
Resolveu sair da linha
Subtraindo de outrem
Duas saborosas galinhas.
Apanhando um saco plástico
Que ali mesmo encontrou
O agente muito esperto
Escondeu o que furtou
Deixando o local do crime
Da maneira como entrou.
O senhor Gabriel Osório
Homem de muito tato
Notando que havia sido
A vítima do grave ato
Procurou a autoridade
Para relatar-lhe o fato.
Ante a notícia do crime
A polícia diligente
Tomou as dores de Osório
E formou seu contingente
Um cabo e dois soldados
E quem sabe até um tenente.
Assim é que o aparato
Da Polícia Militar
Atendendo a ordem expressa
Do Delegado titular
Não pensou em outra coisa
Senão em capturar.
E depois de algum trabalho
O larápio foi encontrado
Num bar foi capturado
Não esboçou reação
Sendo conduzido então
À frente do Delegado.
Perguntado pelo furto
Que havia cometido
Respondeu Alceu da Costa
Bastante extrovertido
Desde quando furto é crime
Neste Brasil de bandidos?
Ante tão forte argumento
Calou-se o delegado
Mas por dever do seu cargo
O flagrante foi lavrado
Recolhendo à cadeia
Aquele pobre coitado.
E hoje passado um mês
De ocorrida a prisão
Chega-me às mãos o inquérito
Que me parte o coração
Solto ou deixo preso
Esse mísero ladrão?
Soltá-lo é decisão
Que a nossa lei refuta
Pois todos sabem que a lei
É prá pobre, preto e puta...
Por isso peço a Deus
Que norteie minha conduta.
É muito justa a lição
Do pai destas Alterosas.
Não deve ficar na prisão
Quem furtou duas penosas,
Se lá também não estão presos
Pessoas bem mais charmosas.
Afinal não é tão grave
Aquilo que Alceu fez
Pois nunca foi do governo
Nem seqüestrou o Martinez
E muito menos do gás
Participou alguma vez.
Desta forma é que concedo
A esse homem da simplória
Com base no CPP
Liberdade provisória
Para que volte para casa
E passe a viver na glória.
Se virar homem honesto
E sair dessa sua trilha
Permaneça em Cachoeira
Ao lado de sua família
Devendo, se ao contrário,
Mudar-se para Brasília.
A sentença fez tanto sucesso que virou notícia de jornal. O Jornal do Brasil de 1º de dezembro de 1987 noticiou o fato:
O mesmo fez a Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, que em 15 de dezembro daquele mesmo ano publicou os versos na íntegra:
E essas não foram as únicas saborosas histórias contadas por Ronaldo Tovani ao Migalhas. Em episódio que prova que é migalheiro antigo, em 2014 o então juiz nos enviou uma carta comentando reportagem na qual reunimos curiosos "causos" do Judiciário contados pelos nossos leitores. Ele, então, nos mandou esta:
"Melhor do que essas eu tenho a minha para contar. Fui delegado, depois promotor de Justiça e por último juiz de Direito, cargo este que exerci durante 13 anos. Lá pelos idos de 1990/1991, na condição de juiz de uma cidadezinha chamada Caldas, no sul de Minas Gerais, estava eu a interrogar um réu, de nome Antonio da Silva Sobrinho, acusado de ter praticado lesões corporais de natureza leve em um amigo, durante uma briga decorrente de uma discussão boba.
Minha agenda, naquele dia, estava lotada, e o tal réu, a cada pergunta que eu fazia 'esticava' imensamente a resposta. Terminado o interrogatório e eu já irritado com a demora havida, entreguei o 'termo de interrogatório' para o réu e disse-lhe secamente: leia e assine.
O réu demorou uma imensidão de tempo para ler e depois me perguntou: assino aonde? E eu respondi, apontando, assine aqui. E aí nova pergunta dele: assino o meu nome? Eu, mais irritado ainda, respondi-lhe: não, assine o meu. E qual o nome de V. Exa.?, perguntou ele. Eu prontamente respondi: Antonio da Silva Sobrinho (em verdade este era o nome dele; o meu é Ronaldo Tovani). Poxa!, respondeu ele. O seu nome é igual o meu! E assinou, devolvendo-me a folha (diante do riso de todos, inclusive dele, que até hoje não sei se sabia por que também riu)."