Conhecida pela maneira reflexiva de escrever sobre cenas cotidianas, consciência e conflitos internos que permeiam a existência humana, Clarice Lispector celebraria hoje, se viva, seu centenário de nascimento.
Lispector é uma das autoras brasileiras mais aclamadas do século XX, e a sua obra não se resume a apenas textos intimistas pelos quais guia o leitor por suas criações literárias. Em décadas de carreira, sua produção incluiu também obras para o público infanto-juvenil e um extenso acervo de crônicas, como a famosa coluna no Correio da Manhã, intitulada "Correio feminino", escrita sob o pseudônimo Helen Palmer.
Nesta vasta produção, houve momentos que a autora tratou do Direito, levantando questões acerca dos significados de crime, pena e justiça.
A hora do Direito
Clarice Lispector ingressou na Faculdade Nacional de Direito, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1939. Em entrevistas, ao ser questionada do porquê escolheu as ciências jurídicas, respondeu que “minha ideia era estudar advocacia para reformar as penitenciárias”.
Em 1941, escreveu artigo intitulado “Observações sobre o fundamento do direito de punir”, publicado pela revista A Época, que pertencia ao corpo discente da Faculdade. Naquele ano, o Brasil vivia no governo do Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas, marcado pelo autoritarismo e pela centralização política.
No texto, a então estudante de Direito desenvolve tese sobre o direito e o poder de punir:
“De início, não existiam direitos, mas poderes. Desde quando o homem pôde vingar a ofensa a ele dirigida e verificou que tal vingança o satisfazia e atemorizava a reincidência, só deixou de exercer sua força perante uma força maior. [...] Os fracos, uniram-se. [...] Surgiu, como defesa, a ideia de que apesar de não terem força, tinham direitos.”
Neste sentido, para Clarice, com o passar dos anos, os poderosos e os mais fracos fizeram uma espécie de tratado de paz: as leis.
“Atualmente, em verdade, não é de punir que se tem direito, mas de se defender, de impedir, de lutar. Punir é, no caso, apenas um resquício do passado, quando a vingança era objetivo de sentença.”
Caso Mineirinho
Em 1962, Clarice retoma seus questionamentos a respeito da justiça e se volta para a segurança pública ao escrever a crônica "Mineirinho", publicada pela Revista Senhor. Nesse texto, ela escreve sobre o assassinato de José Miranda Rosa, conhecido como Mineirinho, que se tornou um dos criminosos mais procurados pela polícia do Rio de Janeiro. Certo dia, Mineirinho foi morto por policiais com trezes tiros. Na crônica, a autora aponta crueldade no assassinato e narra o exagero dos disparos:
"Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. [...] Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro."
Anos mais tarde, em entrevista à TV Cultura, Clarice relembrou a história e disse que “qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar. Era prepotência”.
A biografia de Mineirinho ganhou adaptação para o cinema em 1967 com o título "Mineirinho Vivo ou Morto".
Centenário de Clarice
Nascida na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920 como Haia Lispector, mudou seu nome para Clarice Lispector aos 2 anos de idade quando migrou com a família para Maceió, que fugia das perseguições durante a Guerra Civil Russa.
Poucos anos após a morte da mãe, Clarice se mudou para o Rio de Janeiro, aos 15 anos. Após terminar as aulas do ginásio, em 1937 ingressou no curso preparatório da então Universidade do Brasil para cursar Direito.
Aprovada, iniciou o curso em 1939 e, no segundo ano de faculdade, iniciou sua carreira de jornalista na Agência Nacional.
Na faculdade, Clarice conheceu seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, que à época era seu colega de turma. Em 1943, se casou com Maury e concluiu, junto a ele, o curso de Direito. No entanto, em razão das constantes viagens que fazia com o marido, somente em 23 de julho de 1952 Clarice e Maury receberam o grau de bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade, segundo informações da UFRJ.
A carreira diplomática do marido a fez morar em diversos países como Estados Unidos, Itália, Suíça e Inglaterra. O primeiro romance de Clarice foi publicado em 1943, chamado “Perto do Coração Selvagem”.
Em 1959 o casamento de Maury e Clarice chegou ao fim e a escritora retornou para o Rio de Janeiro.
No ano seguinte, 1960, publicou seu primeiro livro de contos, "Laços de Família", seguido dos livros “A Maçã no Escuro” e “A Paixão Segundo G. H.” Em 1977 publicou o clássico "A Hora da Estrela", seu último romance, que foi adaptado para o cinema, em 1985.
Clarice Lispector morreu de câncer, na véspera de seu aniversário de 57 anos, em 1977.