Migalhas Quentes

Machado de Assis em crônica esquecida

Com um pseudônimo desconhecido (“?” – ponto de interrogação), o escritor assinou uma crônica em 1858, aos 19 anos de idade.

19/8/2020

Ler as crônicas de Machado de Assis é mergulhar na história da segunda metade do século XIX. O escritor assinou durante muitos anos, sob vários pseudônimos, colunas em diferentes jornais. 

A par do deleite literário, há os mistérios que cercam o “bruxo do Cosme Velho” e que fascinam todos aqueles que se aventuram a estudar o escritor. 

De fato, não poucas vezes Machado de Assis deixa senhas, aqui e ali. Algumas delas são parte de sua ironia, e outras pontos a serem desvendados. 

A história que trazemos aqui trata de uma crônica assinada por ele em 30 de outubro de 1859, quando dizia que já tinha tratado do tema (“folhetim” – que é a seção literária dos periódicos) em outra crônica, publicada em outro veículo e sob diferente pseudônimo. 

Hoje, com a facilidade de acessar os jornais antigos pela internet, foi possível localizar do que falava Machado de Assis, em crônica assinada aos 19 anos, no matutino Correio da Tarde, em 22 de outubro de 1858. 

Dizia o escritor que se tratava do primeiro capítulo de um livro a ser publicado. “Folhetins Noturnos” era o nome da incipiente obra que, até onde se sabe, não veio a lume. Na assinatura, um misterioso “Por ?”. E o primeiro capítulo se intitulava “Physiologia do folhetinista”.

A Lanterna de Diógenes

(Folhetins Noturnos: Um Livro por Publicar)

POR ?

I.

Fisiologia do folhetinista

O folhetinista é uma planta moderna, originária da França, aclimatada hoje em todos os países civilizados: brotando ao contato de todas as atmosferas. Trouxe-nos o bom vento do progresso essa produção curiosa do século XIX, como o vento do outono traz uma folha escapada das florestas. Estudá-la é de certo uma tarefa difícil e espinhosa. Escrever, porém, a fisiologia do folhetinista, é uma coisa tão nova, que eu de certo, animo-me a desempenhar tão terrível encargo, sem recear muito pelo resultado: a fecundidade do assunto disfarça os “senões” da pena.

O folhetim nasceu do jornal; o folhetinista do jornalista. Partindo desta consanguinidade explica-se facilmente o estilo misto de grave e frívolo, sério e risonho, severo e amável da entidade em questão: é o pai que reflexiona no espírito ardente do filho.

Inquilino inseparável do jornalista, o folhetinista orna nas lojas, as verdades caídas do andar de cima. Não conta: discute, analise, descarna, com a grandeza de um filósofo alemão, e o espirito fútil de um roué do século XVII; é enfim, um mundo pensante encarnado na cabeça de uma borboleta.

O que acabo de dizer, não é, como parece, fora de propósito. O moral reflete-se no físico. O folhetinista - corpo, é o mesmo que o folhetinista - espírito. São as duas faces de Jano, duas faces idênticas.

O folhetinista veste-se à moda; traz luneta fixa no olho, e calça luvas pretas; veste-se em casa do Blachon, penteia-se na do Desmarais, e toma sorvetes no José Thomaz. Como se vê de todas as entidades literárias, é o folhetinista o mais feliz, pelo menos o mais descuidoso da vida. Sem medo de errar, pode-se dizer que o folhetim é a aristocracia da literatura; mas aristocracia coquette, a aristocracia da luva, do divã e do psiquê. Porém a elegância, dirá o leitor, não é a feição distintiva do folhetinista; não terá ele uma fisionomia especial?

De certo, caro leitor, se uma casaca do Blachon, um chapéu a Pinaud, e uma luneta matematicamente ajustada ao olho, não vos podem dá-lo a conhecer, há uma coisa além de tudo que vos patenteará a verdade.

Essa coisa é que é o busílis do meu estudo.

Que será? perguntará o leitor.

Nem eu mesmo sei. Uma coisa inexplicável; um raio de luz, uma expressão fisionômica, um fenômeno metafísico. Não se vê, sente-se. Não descobrireis o folhetinista à primeira vista; é preciso que ele fale, gesticule, sente-se, levante-se, ria-se; porque ele em qualquer destas funções é o folhetim em pessoa; grave e risonho, severo e frívolo. A "coisa" inexplicável, que o distingue transparece então em toda a sua fisionomia. É o espírito que se patenteia nas linhas do busto, como a luz que vaza através de uma lâmpada transparente.

O folhetinista frequenta as livrarias, os saraus e as reuniões literárias. Por toda a parte é o mesmo. Querido, benquisto, adorado todos o cercam de atenções e de cuidados; é o bezerro de oiro do mundo social, como do mundo político e literário. A razão é clara. É que ele é o eterno pesadelo dos poetas, dos artistas, de toda a classe de gente. Todos querem chegar ao conhecimento do público por meio das detonações hebdomadárias deste órgão da imprensa - o folhetim.

A posição, pois, do folhetinista neste caso, é das mais vantajosas. No embalar delicioso dessa Capua é que naufragam muito belas inteligências; inebriadas pelo perfume que as cerca, desvairadas pela luz em que nadam. Daqui nasce a exceção da regra; isto é, a vaidade, o orgulho, a maledicência. Ora, a exceção neste caso é o ridículo.

Debaixo deste ponto de vista, o folhetinista é uma fisionomia à parte. Os traços distintivos são aqui mais pronunciados, esta nova face do espírito manifesta-se no sombrio do olhar, e frequentemente na contração desdenhosa dos lábios. A cara é uma sátira viva e palpitante. Cada fibra é uma apóstrofe a fazer vacilar o mais intrépido.

O talento modesto e tímido recua diante dessa cabeça de Medusa erguida como um espantalho no caminho das letras. O folhetinista, neste caso, é um laboratório de fel e de maledicência com que salpica as frontes puras, arredando de si, por este modo todas as simpatias reais, todas as consciências devotadas... Este desemparar do que é bom e verdadeiro é a pedra de toque desta variedade do tipo.

O folhetinista é o colibri da literatura. Como ele dourado, como ele inquieto e travesso. Rola e mete-se por toda a parte; mas o seu lugar favorito é o baile. Aí vê-lo-eis espanejar-se e saltar como uma andorinha em tempo de verão. Coisa singular! onde tudo é falso, e mentiroso, é que o folhetinista encontra a sua atmosfera!

Mas o doloroso no meio de tudo isto, é que o folhetinista só pode aspirar a um sufrágio contemporâneo; o horizonte da glória para ele está circunscrito no espaço da sua vida e termina na orla da sepultura. Este fato de uma realidade implacável está contido na ordem das coisas. A reputação além do túmulo não nasce dos improvisos do jornalismo, nem da indolência inebriante de uma vida oriental; a reflexão e as provações produzem-na e mentem-na.

O folhetinista varia segundo o país em que vive. Mas só em França existe a raça genuína. Entre nós é quase um mito. Esta planta exótica, transplantada para aqui, perdeu muito da sua originalidade. Uma feição local, uma cor particular quase ninguém tem podido obter. Alguns à força de imitar, ou antes, copiar, os colegas de além mar caíram na caricatura, e na caricatura mais irrisória do mundo.

Pois é pena! Podiam bem ocupar uma posição no mundo literário sem ferir tão cruelmente, e tão de face o senso comum.

Correio da Tarde, 22 de outubro de 1858

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