A subseção da OAB de Franca/SP emitiu uma nota de posicionamento na qual critica decisão da juíza de Direito Adriana Gatto Martins Bonemer, da 3ª vara Cível da cidade, que negou ACP movida contra ex-universitário que participou de trote de curso de medicina e conduziu um juramento com expressões pejorativas e de cunho sexual.
Na decisão, a magistrada fez críticas ao feminismo, disse que a inicial do MP/SP retratava "panfletagem feminista" e afirmou que o "movimento feminista colaborou para degradação moral que vivemos".
O caso
O caso ganhou repercussão em fevereiro de 2019, quando estudantes do curso de medicina de uma universidade particular de Franca/SP aplicaram um trote aos calouros da instituição. Um vídeo que circulou pelas redes sociais mostrava calouros do curso de medicina ajoelhados em uma rua e repetindo um "juramento", que era lido em voz alta pelo ex-universitário.
O texto continha expressões pejorativas dirigidas a alunos de outros cursos e de outras faculdades, além incitações de cunho sexual atribuídas, em especial, às calouras do curso.
Magistrada transcreveu juramento proferido por ex-universitário e calouros durante o trote.
Decisão
Ao analisar o caso, a juíza entendeu que não se pode presumir que o comportamento dos ex-universitário, "dirigido a um grupo específico de pessoas, seja uma agressão dirigida a todos os indivíduos do sexo feminino", julgando improcedente a ACP.
Ponderou que a inicial do MP "retrata bem a panfletagem feminista, recheada de chavões que dominam, além da esfera cultural, as universidades brasileiras", e teceu críticas ao movimento.
"É bom ressaltar que o movimento feminista apenas colaborou para a degradação moral que vivemos, bem exemplificada pelo "discurso/juramento" que ora se combate. Estamos vivendo a degradação moral e a subversão das identidades, de onde advém comportamentos como aquele descrito na inicial. Diante dos usos e costumes instalados na sociedade, promovidos pelo próprio movimento feminista, entender ofensivo o discurso do requerido é, no mínimo, hipocrisia."
- Processo: 1020336-41.2019.8.26.0196
Confira a íntegra da sentença.
Posicionamento
Em nota, a subseção da OAB de Franca afirmou que "não existiu, por parte da sentença, fundamentação compromissada com o papel desempenhado pela estrutura legislativa, judiciária e acadêmica na construção de políticas públicas e práticas igualitárias em todos esses ambientes". "O discurso utilizado pela decisão nos demonstra como o sistema de justiça, também na figura de magistradas e magistrados, tem resistido em garantir uma prestação jurisdicional nos casos que envolvem as variadas violências de gênero."
A OAB de Franca cita dados de uma pesquisa e diz que eles apontam que o Judiciário cada vez mais se torna palco de disputas que buscam o reconhecimento do direito de minorias, direitos plurais, de mulheres e de debates democráticos, motivo pelo qual "existe uma quantidade de tribunais, varas, anexos judiciários e equipes multidisciplinares que tem se capacitado para atuar e produzir conteúdos contrários aos expostos pela sentença".
"Por esta razão, concluímos que a decisão monocrática não apenas contrariou uma histórica trajetória de direitos conquistados, como também violou normas, tratados, convenções, políticas públicas e toda uma agenda de textos nacionais e internacionais no combate à violência de Gênero, como as Recomendações da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a Lei Maria da Penha e a Constituição Federal, exemplos de instrumentos de garantia aos Direitos Humanos das Mulheres."
Confira a íntegra da nota de posicionamento da OAB de Franca/SP:
NOTA DE POSICIONAMENTO
A Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Franca/SP, na condição de garantidora da cidadania e dos direitos fundamentais, por meio da Comissão da Mulher Advogada, Comissão de Combate à Violência contra a Mulher, Comissão de Direitos Humanos, Comissão de Direito Penal, Comissão da Diversidade Sexual, Comissão de Direito à Saúde e Cidadania e Comissão da Jovem Advocacia vem a público manifestar sobre a fundamentação da sentença proferida pela juíza de direito da 3ª Vara Cível da Comarca de Franca/SP, nos autos do processo n. 102033641.2019.8.26.0196, pelos argumentos que passamos a apontar.
Em breve contextualização, trata-se de um processo judicial onde estudantes do curso de medicina da Universidade de Franca/SP protagonizaram um trote, em forma de juramento, onde expressões de caráter violento e sexual eram lidas por um ex-aluno do curso, dirigidas e repetidas pelas alunas.
Analisando as afirmações proferidas pela sentença monocrática - sem discutir a atuação da defesa ou atacar os agentes de justiça - observamos a necessidade de repensar o funcionamento das estruturas judiciais conquistadas por um longo processo democrático que reconheceu a necessidade de igualdade entre os gêneros. Por isso afirmamos que não existiu, por parte da sentença, fundamentação compromissada com o papel desempenhado pela estrutura legislativa, judiciária e acadêmica na construção de políticas públicas e práticas igualitárias em todos esses ambientes.
O discurso utilizado pela decisão nos demonstra como o sistema de justiça, também na figura de magistradas e magistrados, tem resistido em garantir uma prestação jurisdicional nos casos que envolvem as variadas violências de gênero. Tais fatos também demonstram a necessidade de renomearmos esses discursos, sem argumentos jurídicos, como sendo uma manifestação de violência, já que é por meio do próprio conceito de gênero que podemos problematizar relações como à discutida na sentença, que representa manutenções hierárquicas de poder.
Nesse sentido, a pesquisa O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos Direitos Humanos das Mulheres (2016) nos traz dados empíricos sobre a análise das relações entre tribunais de justiça e a sociedade brasileira, mostrando as dificuldades de acesso à justiça e a ausência de efetivação dos direitos das mulheres. A pesquisa ainda demonstra que a presença de mulheres juízas ou desembargadoras não se associa a políticas de gênero ou de lutas sociais denominadas de feministas, ilustrando como magistradas podem decidir e atuar de modo contraposto à agenda igualitária e antidiscriminatória. No entanto, os dados do trabalho também apontam que o judiciário cada vez mais se torna palco de disputas que buscam o reconhecimento do direito de minorias, direitos plurais, de mulheres e de debates democráticos. Motivo pelo qual existe uma quantidade de tribunais, varas, anexos judiciários e equipes multidisciplinares que tem se capacitado para atuar e produzir conteúdos contrários aos expostos pela sentença.
Por esta razão, concluímos que a decisão monocrática não apenas contrariou uma histórica trajetória de direitos conquistados, como também violou normas, tratados, convenções, políticas públicas e toda uma agenda de textos nacionais e internacionais no combate à violência de Gênero, como as Recomendações da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a Lei Maria da Penha e a Constituição Federal, exemplos de instrumentos de garantia aos Direitos Humanos das Mulheres.
Infelizmente, em nosso país, quando falamos em direitos humanos parece que é invocado algo subversivo e transgressor, os movimentos sociais, dentre eles, o movimento feminista, foram instrumentos fundamentais na transformação de posturas e condutas conservadoras e mal alinhadas ao pensamento moderno, na esteira do conceito contemporâneo de direitos humanos, construídos a partir da Segunda Guerra, após a barbárie do holocausto, que alguns ainda banalizam. A decisão monocrática, pelo simples fato de apontar, sem certeza científica nenhuma, que a culpa da degradação moral moderna é da mulher e do movimento feminista, choca por não trazer nenhum alinhamento com o direito e com as garantias fundamentais nascidas com o estado democrático, simplesmente, falta legitimidade de origem à decisão.
A legitimidade não se limita à procedência ou improcedência do pedido, mas expõe a falta de argumentos que possam demonstrar a lógica da decisão baseada tão somente na lei, não meramente em convicções pessoais, políticas ou religiosas, que é o que se apresenta.
Somos livres e plurais em nossas escolhas, mas a banalização do mal, segundo pensamento de Hanna Arendt, já nos fez pagar preços altos pela intolerância. Sempre haverá diferenças de pensamentos, mas se este é legítimo e legal, a aceitação é o único meio de sustentar os espaços democráticos e garantir que as lutas sociais tão preciosas que se somaram ao longo dos anos não foram em vão e não seria diferente para mulheres e a qualquer movimento ligado a esta causa, pois foram fundamentais para afirmação de direitos, enfrentamento de violências, desenvolvimento de políticas públicas e avanços que não podem ser rompidos por pensamentos ultraconservadores que não cabem em nosso espaço-tempo, ainda mais em decisões judiciais que se transmutam em coisa julgada e passam a legitimar ações que antes eram apenas pensamentos dissonantes, comprometendo a evolução humana e as relações sociais.