O corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, instaurou, de ofício, pedido de providências para que a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Mato Grosso preste informações sobre desfile de adolescentes que aguardam adoção em shopping de Cuiabá.
O evento, intitulado “Adoção na Passarela”, foi autorizado pela juíza de Direito da 1ª vara Especializada da Infância e Juventude, Gleide Bispo Santos, e foi alvo de duras críticas.
Ao instaurar o procedimento, o ministro Humberto Martins considerou a competência da Corregedoria Nacional de Justiça para receber denúncias de qualquer interessado relativas aos magistrados e tribunais e aos serviços judiciários auxiliares, conforme previsão do Regimento Interno do CNJ.
O ministro deu prazo de 15 dias para que a corregedoria mato-grossense preste informações.
Evento
O desfile foi organizado pela Ampara – Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção, em parceria com a Comissão de Infância e Juventude da OAB/MT e outras entidades do Estado. No evento, 18 adolescentes acima de 12 anos desfilaram em uma passarela criada em um shopping de Cuiabá. Cerca de 200 pessoas teriam acompanharam da plateia. Lojas de roupas e calçados auxiliaram no evento, por meio de doação de itens para que os adolescentes pudessem desfilar.
"Trata-se de uma noite para os pretendentes a adotar poderem conhecer as crianças e os adolescentes. A população em geral poderá ter mais informações sobre adoção e os menores terão um dia diferenciado, em que irão se produzir, fazer cabelo, maquiagem e usar roupa para o desfile", explicou Tatiane de Barros Ramalho, presidente da CIJ da OAB, ao divulgar o evento.
Críticas
Na quarta-feira, 22, a Defensoria Pública de Mato Grosso publicou nota pela qual repudiou "veementemente" o evento. “A intenção desta Nota não é descaracterizar a relevância das instituições idealizadoras. O evento, com a intenção de dar 'visibilidade a crianças e adolescentes de 4 a 17 anos que estão aptas para adoção', em verdade, as expõe ainda mais à situação de extrema vulnerabilidade social".
A Defensoria destacou o risco de que muitas das crianças e adolescentes que desfilaram não sejam adotadas, "o que pode gerar sérios sentimentos de frustração, prejuízos à autoestima e indeléveis impactos psicológicos". Por fim, afirma que a grande exposição pode levar à objetificação e passar uma ideia de mercantilização.
No mesmo sentido, a Anadef – Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais manifestou indignação e repulsa ao evento. "O ato representa grave violação aos direitos humanos ao tratar as crianças como um objeto de apreciação, podendo ocasionar graves efeitos psicológicos devido à exposição."
"Sabemos que, lamentavelmente, o processo de adoção no Brasil é bastante moroso e precisa ser aprimorado, mas é inaceitável qualquer ação que trate pessoas, de qualquer idade, raça ou religião, como uma mercadoria."
Advogados, personalidades públicas e políticos também repudiaram a ação. Veja aqui.
Esclarecimento
A OAB/MT e a Ampara, em nota conjunta de esclarecimento, saíram em defesa do evento. Alegaram que nunca foi o objetivo do evento apresentar as crianças e adolescentes a famílias para a concretização da adoção. "A ideia da ação visa promover a convivência social e mostrar a diversidade da construção familiar por meio da adoção com a participação das famílias adotivas." Confira a íntegra das notas aqui.
As instituições também afirmam que as crianças não foram obrigadas a participar, e que todos expressaram alegria com a possibilidade de participar de um momento como esse. "A ação deu a eles a oportunidade de, em um mundo que os trata como se invisíveis fossem, poderem integrar uma convivência social."
"A OAB-MT e a Ampara repudiam qualquer tipo de distorção do evento associando-o a períodos sombrios de nossa história e reitera que em nenhum momento houve a exposição de crianças e adolescentes."
Na nota, explicam também que a falta de interessados na chamada "adoção tardia", de crianças mais velhas, faz com que seja urgente a adoção de medidas como a Semana da Adoção, que tornam público esse problema social. Informam, ainda, que, conforme dados do CNJ, 8,7 mil crianças e adolescentes aguardam por uma família.
Ao final da nota, "conclamam a sociedade em geral para uma discussão séria e efetiva sobre o tema para que mais estratégias possam ser adotadas em prol do direito de possibilitar o acolhimento familiar a essas crianças e esses adolescentes".
Presidente da Ampara, Lindacir Rocha Bernardon afirmou que o desfile foi uma forma de ajudar os jovens que há anos esperam por uma família. "Somente crianças acima de 12 anos desfilaram. Todas já foram vistas por diversas famílias, em abrigos, mas ninguém adotou."
Conforme Lindacir, as crianças menores que desfilaram já haviam sido adotadas anteriormente e estavam acompanhadas de suas famílias, que participaram do desfile, conforme explicou a organização, para mostrar os benefícios da adoção.
"O juiz permitiu a realização do desfile. Nós somos uma instituição séria, não brincamos com crianças", declarou. Ela contou que, na primeira edição do evento, em 2017, dois adolescentes, de 14 e 15 anos, foram adotados.