Nesta terça-feira, 3, o ministro Marco Aurélio, do STF, proferiu palestra de encerramento no “Seminário de Verão 2018”, da Universidade de Coimbra. Dentro da temática “Cidadania num mundo em transição”, o ministro teceu considerações sobre a esperança democrática.
“Cidadania significa que a relação entre Estado e Sociedade há de apoiar-se na afirmação dos direitos humanos e da justiça. Apenas assim será alcançada a correção de rumos, com a vinda de melhores dias.”
Confira a íntegra:
Cumprimento os organizadores do tradicional Seminário de Verão, o Professor Doutor Manuel Carlos Lopes Porto, Presidente da Associação de Estudos Europeus de Coimbra, o Professor Rubens Lopes da Cruz, Presidente do IPEJA – Instituto de Pesquisas e Estudos Jurídicos Avançados, a incansável Executiva Cristiane Frota, os anfitriões Professores Doutores João Gabriel Silva e Rui Manoel de Figueiredo Marques, respectivamente Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra e Diretor da Faculdade de Direito. O moderador — Embaixador de Portugal no Brasil, Jorge Dias Cabral. Minha saudação a todos os presentes.
Registro a alegria de participar deste grandioso evento, ocorrido anualmente na Universidade de Coimbra, uma das mais antigas e importantes universidades da Europa. Na verdade, uma das mais antigas do mundo e declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO. Devo dizer da honra maior de estar neste Seminário ao lado de mentes brilhantes, pensadores do Direito a serviço da liberdade, da igualdade e da democracia. Minha especial homenagem ao Professor Doutor Adriano Moreira, de trajetória inexcedível, com quem tenho a honra de dividir as considerações finais. Que nosso sentimento coincida na essência, como ocorreu no Seminário de Verão de 2017.
“Nada é permanente, exceto a mudança”.A frase de Heráclito, o “pai da Dialética”, nunca foi tão atual. O filósofo pré-socrático falava do mundo “em movimento perpétuo”, em constante alternância de contrários. Como disseram seus seguidores: “Tudo flui como um rio”.
O mundo está em constante mudança. Parabenizo a organização do Seminário pela estrutura temática: em meio a tantas transformações, qual o papel da cidadania? Reunidos em estados, nações, ou no mundo globalizado, como enfrentar os desafios que lançam mudanças cada vez mais rápidas e, não raramente, ameaçadoras? É possível conviver sempre entre extremos, como falava Heráclito? Melhor: é possível viver entre o medo e a esperança?
Não cabe revisar o que foi dito pelos expositores que me antecederam. O objetivo é apresentar reflexões, como expectador preocupado com as transformações de nosso tempo.
O mundo em transição: da oportunidade ao medo?
Mudanças recentes têm colocado desafios à democracia, à separação de poderes, ao exercício da cidadania e aos direitos humanos.
A transição entre os séculos XX e XXI ainda não se consolidou. O mundo pós onze de setembro está mergulhado em dúvidas. A “certeza”, que os primeiros Iluministas prometeram, nunca esteve tão distante. Vivem-se hoje choques culturais, com a quebra de paradigmas que se acreditavam permanentes.
Essas rupturas possuem consequências no dia a dia: afetam a economia, a política, a cultura, a integração pretendida pelo fenômeno da globalização, a sociedade como um todo. Crises assumem contornos dramáticos: imigração e xenofobia; o levante de populismos de extrema direita e de esquerda, ameaçando a democracia liberal com políticas de intolerância; crises financeiras a aprofundarem ainda mais as desigualdades; o meio ambiente cada vez mais em risco; a volta da ameaça nuclear.
Costuma-se dizer que as mudanças decorrem de três revoluções: a ecológica, a tecnológica e a da globalização.
A ecológica parece ter perdido o fôlego. Crises financeiras sucessivas derrotam a compreensão de o ser humano revelar-se uma complexa unidade integrada à natureza, sem a qual não pode sobreviver. Relatórios, elaborados pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, dão conta do agravamento dos problemas ambientais: o desmatamento das florestas, a pesca excessiva ao redor do mundo, a poluição do ar e da água, a emissão de gases causadores do efeito estufa. No Brasil, por maior que seja o esforço de órgãos como o Ministério Público Estadual e Federal, desastres ecológicos se repetem, tendo sido o maior deles o de Mariana, cujas consequências efetivas ainda são desconhecidas. As pessoas parecem ter perdido a consciência da gravidade desse problema.
Sob o ângulo da revolução tecnológica não é diferente. Em artigo homenageando o exemplar ministro do Superior Tribunal de Justiça Antonio de Pádua Ribeiro, para a coletânea “Cidadania, sistema político e o Estado-juiz: os desafios da democracia brasileira no século XXI”, ressaltei a Era da Informação, que é a Era Digital. A quadra caracteriza-se pelo conhecimento dinâmico, por desafios promovidos pelas alterações cada vez mais rápidas e profundas decorrentes do avanço da tecnologia. Como consequência direta, mudam a sociedade, os comportamentos humanos e as instituições. Somos hoje uma “sociedade digital”.
Com a chegada da internet às residências, surgiram novos cenários sociais, educacionais e comerciais. As pessoas nunca mais se comunicaram, buscaram o conhecimento e informações, realizaram transações comerciais como antes. Toda essa revolução chegou à política. Os processos político-eleitorais sofrem forte impacto desses paradigmas comunicacionais. As redes sociais são um importante canal de diálogo entre os eleitores e entre estes e os candidatos, modificando o perfil das eleições. Hoje a política deve dialogar com o que se convencionou chamar de “novas mídias”. Fala-se em “democracia digital”. A revolução nesse campo tornou a comunicação mais democrática, ou seja, mais pessoas passaram a ter voz e a ser ouvidas. A internet é a nova Ágora Ateniense.
Vivem-se tempos de impessoalidade, das fake news, das ameaças virtuais. A tecnologia tem implicações nas formas por meio das quais pessoas e grupos sociais se relacionam e trocam ideias sobre as próprias vidas, repercutindo na dinâmica política e estatal. A “sociedade digital” não se comunica por meio do abraço, do aperto de mãos, dos olhos nos olhos. Na Era Digital, “as verdades são menos verdadeiras”. As pessoas vêm normalizando a mentira, a informação falsa, a calúnia pela calúnia, sem medir consequências. “Compartilhamento de notícias falsas” é corriqueiro no Brasil. As pessoas perderam o cuidado de checar a verdade. O excesso não faz bem, mesmo sendo de algo tão extraordinário como a tecnologia. Ante a avalanche quantitativa de informações, há o perigo de a sociedade perder o senso qualitativo.
A terceira revolução é a globalização, sobre a qual, no passado, muito se falou neste Seminário. A ideia surgiu como proposta de ordem econômica mundial sem fronteiras, mas não se encerrou no viés econômico. A integração ganhou contornos social, cultural e político. O mundo sem fronteiras não é apenas do comércio e das transações mobiliárias, mas também da cultura, das decisões políticas, do convívio social. Surgiram movimentos de integração como a União Europeia e o Mercosul. É essa a ideia que legitima o apoio a imigrantes e refugiados.
A economia global é dinâmica, em transição permanente, e isso está relacionado com a Era Digital. Hoje, em qualquer parte, tudo se pode fazer. A economia “digital” e o tráfego de informações definem o ponto de vista e modificam o que se pensa. Isso causa perplexidades. Algumas pessoas sentem-se perdidas diante de tanta informação e da velocidade com que as coisas acontecem. Incertezas e inseguranças em vez de conhecimento. Mais do que nunca, questiona-se como sobreviver ou alcançar sucesso num mundo tão cambiante.
As sociedades estão em transição; a cidadania está em transição. A integração econômica, social, cultural e política, perseguida pelo fenômeno da globalização, encontra-se fragilizada. Os termos de tolerância, solidariedade, convivência pacífica de povos cultural, religiosa e linguisticamente diferentes, firmados a partir da segunda metade do século passado, correm riscos.
A Segunda Grande Guerra Mundial está muito distante no tempo a ponto de fazer esquecer fatores e consequências? Vivemos tempos de medo?É importante falar da Guerra, pois os acontecimentos e consequências estão na raiz da globalização.
O fenômeno da integração contemporânea teve início com os deslocamentos causados pela Grande Guerra. Comunidades de refugiados formaram minorias étnicas e culturais em vários países, não só da Europa. Para essas pessoas, o deslocamento forçado representava, a princípio, uma oportunidade. E muitos países, que sofreram destruições na guerra, precisaram, para a reconstrução, da força operária dos deslocados. O pós-Segunda Guerra criou um extraordinário sistema de oferta e procura de trabalho envolvendo os imigrantes.
Surgiu a tendência de migração dos países mais pobres do Sul para países do Norte, destacadamente Europa e Estados Unidos, em movimento inverso ao que ocorreu no fim do século XIX e no começo do século passado: é lembrar da imigração de italianos, alemães e japoneses para o Brasil. Nações foram transformadas por esses movimentos migratórios. Contudo, aos poucos, os sentimentos foram mudando. Do binômio necessidade/oportunidade, passou-se ao medo.
O escritor britânico Keith Lowe destaca que esses fenômenos migratórios, iniciados na Segunda Grande Guerra, culminaram em forte sentimento de xenofobia, causado basicamente por dois temores da população nativa: o da perda de postos de trabalho e o da perda da identidade cultural. O último, para o autor, tem sido o mais forte: o medo de a transformação resultar em verdadeira erosão da comunidade. Os imigrantes são apontados como culpados pelo que muitos consideram ser uma deturpação ou alienação cultural.
Essa reação tem impossibilitado o sentimento de “pertencimento”. As pessoas, mesmo com oportunidades de emprego fora de seus países, sentem-se deslocadas. A retórica anti-imigração está em alta e acabou de contribuir para eleger o presidente dos Estados Unidos. As migrações em massa foram componentes essenciais do processo de globalização. As reações de hoje ameaçam a desconstrução desse processo, ocasionando choques culturais e étnicos no mundo todo.
E então chega-se ao ponto culminante do processo de crescimento de tensão e medo: chega-se ao “meta-medo” do terrorismo. Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica, Espanha, França e Alemanha, mesmo com aparatos militares, sofreram ataques e hoje convivem com o permanente temor do terrorismo. E o mundo, como disse Keith Lowe, volta a ter medo similar ao da Segunda Guerra: o da intolerância e da violência desmedida. As tensões entre Ocidente e Oriente ameaçam a visão de democracia liberal e de respeito aos direitos humanos, tudo acompanhado de aumento do desemprego, da pobreza e das desigualdades sociais em escalas globais, cenário potencializado pela estagnação econômica.
Essa é a quadra vivida.
E a cidadania: o que pode oferecer?
Cidadania é um conceito extenso, de forte conotação política, multidimensional, vinculado diretamente às virtudes e perplexidades de temas como liberdade, justiça social, solidariedade, universalismo e nacionalismo. Desde a Grécia Antiga, surgiu como elo entre o homem livre e a cidade, mas, como magistralmente anotou o saudoso mestre Ricardo Lobo Torres, foi com a Revolução Francesa que o conceito adquiriu associação definitiva com os direitos fundamentais do homem – de todos os homens.
É por meio do exercício da cidadania que direitos são conquistados e exercidos. O próprio exercício da cidadania é um direito fundamental. Na clássica formulação do sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall, a cidadania se desenvolveu, primeiramente, como direitos civis, seguidos dos políticos e, então, dos sociais. A evolução dessas ideias, migrando da Sociologia para o campo da Moral e do Direito, resultou na noção da cidadania como fundada na consideração ética e jurídica dos direitos humanos.
Essa é a única via de salvação ante as perplexidade contemporâneas surgidas das crises: cidadania é pertencimento à comunidade, mas um pertencimento ao mesmo tempo ético e jurídico, e não simplesmente decorrente de laços naturais com as cidades. Assegura, nos planos nacional, internacional e supranacional, direitos e deveres fundamentais a todos, a integração dos povos em torno dos valores justiça, liberdade e solidariedade. Cidadania significa que a relação entre Estado e Sociedade há de apoiar-se na afirmação dos direitos humanos e da justiça. Apenas assim será alcançada a correção de rumos, com a vinda de melhores dias.
Essa perspectiva é incompatível com políticas de intolerância, com populismos e nacionalismos, com a estratégia do medo empregada por organizações terroristas, algumas apoiadas por governos autoritários. Há de respeitar-se o pluralismo étnico, cultural, ideológico e político. O cidadão tem o direito-dever de exercer a capacidade política, de tornar realidade a verdadeira cidadania democrática, em nível local e internacional. Somente com o diálogo e a participação política, plural e efetiva, será dado combater os medos desse mundo sempre em transformação.
Encerro lembrando o que disse no ano passado: “Precisamos ter fé na humanidade, na memória das atrocidades que nacionalismos e populismos já produziram, e acreditar que a paz dos povos seja sempre o norte!” E acrescento: como cidadãos livres, solidários e conscientes, devemos fazer nossa parte, exercendo e defendendo sempre a democracia, o único meio capaz de ensejar evolução. Muito obrigado.