"A violência contra a mulher, mormente porque praticada no seu espaço de convívio, no bojo da família, tendo por agressor pessoa com quem teve ou tem relação de afeto, se entranha de modo inexorável e muitas vezes indelével, entristecendo-lhe a alma e afetando o seu psicológico, a tal ponto que não lhe resta dignidade."
Com esta premissa, a ministra Rosa Weber negou HC para homem condenado a 20 dias de prisão simples, em regime aberto, por contravenção penal, por tapa e chute que deu na ex-companheira quando ela foi até seu local de trabalho tratar sobre pensão alimentícia. O voto da relatora foi acompanhado pela maioria da 1ª turma do STF, vencido o ministro Marco Aurélio.
A Defensoria Pública pediu a substituição da prisão simples por restritivas de direitos, alegando que a própria Corte declarou a situação inconstitucional dos presídios no país. A substituição havia sido deferida pelo TJ/MS, porém foi revertida pelo STJ, cuja jurisprudência é no sentido de que, no âmbito familiar e contra a mulher, não há possibilidade de substituição. Vale anotar, no caso, que houve pelo TJ a suspensão da pena por dois anos.
Proteção ampla
Ressaltando a “delicadeza do tema”, a ministra Rosa Weber inicialmente destacou o fato de que a jurisprudência da 2ª turma é diferente da que propõe. Lá, de fato, há dois precedentes (do ministro Toffoli e do saudoso ministro Teori) no sentido da possibilidade da substituição da pena nesses casos.
Contudo, a relatora citou a decisão do pleno (HC 106.212) na qual o Supremo concluiu que o art. 41 da lei Maria da Penha obsta a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direito em todo e qualquer caso de prática delituosa que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher.
“Tal preceito legal já foi objeto de declaração de constitucionalidade pelo Supremo, ocasião em que rememorei a decisão do Pleno no HC. A lei fundamental consagra vetor hermenêutico de proteção, verdadeira imposição constitucional de agir, por parte do Estado, ante a adoção de mecanismos para coibir a violência no âmbito da família, com especial atenção àquela praticada, em qualquer das suas formas e grau, contra a mulher.
E não poderia ser diferente, observado o conteúdo do artigo 6º da lei Maria da Penha, ao alçar ao status de violação dos direitos humanos, a violência doméstica e familiar contra a mulher, violência esta que não se reduz, ou circunscreve, ao conceito de lesão corporal, a teor do artigo 5º deste diploma legal.
Ao contrário, sensível ao reconhecimento de que a violência contra a mulher comporta natureza específica, que encerra um contexto que lhe é próprio, a lei Maria da Penha contempla, com clareza solar, ampliação do conceito desta particular e penosa forma de agressão, a ser abarcada qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, e dano moral ou patrimonial, nos âmbitos doméstico e familiar, independentemente do convívio entre agressor e ofendida, bem como da orientação sexual dos envolvidos.”
De acordo com a ministra, são inesgotáveis os justos motivos de tal ampliação legislativa, na medida em que o agressor e a vítima, ao menos em algum momento da vida, compartilharam afetividade, e tal particularidade faz com que a violência não se esgote ao final da desavença ou da agressão, como em casos de pessoas desconhecidas.
"A violência contra a mulher, mormente porque praticada no seu espaço de convívio, no bojo da família, tendo por agressor pessoa com quem teve ou tem relação de afeto, se entranha de modo inexorável e muitas vezes indelével, entristecendo-lhe a alma e afetando o seu psicológico, a tal ponto que não lhe resta dignidade."
A ministra reafirmou a obrigação do Estado em coibir a violência contra a mulher, e nesse sentido, é incompatível a compreensão restrita do termo "crime" no Código Penal, de modo que é necessário o "maior alcance possível à legislação que visa coibir a violência doméstica e familiar para evitar retrocessos".
"Incompatível com a teleologia do sistema legal protetivo da mulher a compreensão restrita do termo “crime”, do artigo 41 do inciso I do Código Penal, que permita subtrair, indevidamente, do seu âmbito de abrangência, manifestamente ampliado e voltado a proteger a mulher de toda e qualquer infração penal contra ela cometida com violência, a contravenção penal das vias de fato."
Dessa forma, a relatora negou provimento ao HC impetrado.
Feminicídios
Próximo a votar, o ministro Alexandre de Moraes lembrou, ao seguir a relatora, que o número de feminicídios aumentou no país, e hoje o Brasil é o 5º no mundo no ranking.
“E isso tudo decorre de uma cultura de violência contra a mulher, que começa com tapa, com chute, e partir disso são dois tapas, dois chutes; e se não há repressão, depois são surras diárias até que gera não só os feminicídios, mas também homicídios, porque o filho daquela mãe, que apanha do companheiro, acaba se rebelando e matando o agressor. Estraga toda a estrutura familiar. A lei Maria da Penha deu coragem às mulheres agredidas de procurarem a autoridade policial.”
Também nesta linha foram os votos dos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux.
Por sua vez, presidente da turma, Marco Aurélio, ressaltou que a situação não foi enquadrada como lei Maria da Penha: "As instâncias ordinárias concluíram que a situação jurídica era de contravenção, tendo em conta vias de fato. Devemos combater a violência doméstica sistematicamente. Não houve lesão corporal.'
Fazendo referência à informação da tribuna de que o casal estaria junto novamente, Marco Aurélio indagou: "Interessa em termos sociais que o paciente permaneça com essa espada de Dâmocles, que é a suspensão condicional da pena por dois anos, ou manter a simples limitação a ser definida pelo juízo da vara de Execuções? No caso assento que bem andou o TJ/MS ao substituir a pena de prisão pela limitação de fim de semana." E, assim, deferiu a ordem nesses termos, ficando vencido.
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Processo: HC 137.888
Veja o voto da ministra Rosa Weber.