Suprema Corte
Em derrota para Bush, Suprema Corte determina que tribunais de exceção abertos para supostos terroristas ferem lei americana
A Suprema Corte dos EUA impôs ontem um revés à política antiterrorista de George W. Bush: o presidente não tem competência para instituir os tribunais militares de exceção criados para julgar presos na base militar de Guantánamo (Cuba) por crimes de guerra. A Justiça vê abuso de autoridade e declarou ilegalidade, citando as próprias leis americanas e a Convenção de Genebra.
Com cinco votos a favor, três contra e uma abstenção, a decisão força o Departamento da Defesa a elaborar um novo esquema para os detidos e novas estratégias em sua guerra contra o terror. Pior: põe em xeque o alcance dos poderes da Casa Branca.
Todos os julgamentos agendados naquela instância militar foram cancelados, e qualquer medida agora ficará sujeita à aprovação do Congresso. A Justiça, no entanto, não determinou o fechamento da prisão.
A decisão foi um golpe inesperado sobre os republicanos, partido de Bush. Em sua gestão, o presidente aumentou o peso conservador na Suprema Corte com a troca de dois dos nove juízes, alinhando mais o tribunal com a Casa Branca.
Em ano eleitoral para renovar de parte do Congresso, é pouco provável, segundo analistas ouvidos pela Folha, que Bush consiga ver aprovado um projeto que mantenha o perfil linha-dura de Guantánamo.
Os tribunais de exceção, criados por decreto de Bush após o 11 de Setembro e que funcionam à margem da Justiça civil e militar, limitaram de modo inédito os controles parlamentares e judiciários sobre a Presidência dos EUA.
Recurso
A decisão decorre de um recurso do iemenita Salim Ahmed Hamdan, 36, ex-motorista e ex-guarda-costas de Osama bin Laden, líder da Al Qaeda. Os advogados de Hamdan pediam à Justiça que se pronunciasse sobre os limites dos poderes do presidente americano desde os ataques terroristas de 2001. Preso há quatro anos na base, o guarda-costas foi detido no Afeganistão em novembro daquele ano.
Bush reagiu à determinação do Supremo: "O povo americano precisa saber que a decisão, como eu a entendo, não resultará na liberdade de assassinos. Na medida das possibilidades haverá a colaboração com o Congresso para determinar se o tribunal é o caminho para levar essa gente a julgamento."
Cerca de 460 detentos, segundo o Pentágono, vivem na base. Há acusações de abuso e tortura feitas por ex-presos a entidades de direitos humanos. Nos últimos meses muitos prisioneiros de Guantánamo fizeram greve de fome; três deles se mataram neste mês, usando lençóis e roupas para se enforcar. A ONU pede o fechamento da prisão.
No acórdão (decisão conjunta de juízes), a Suprema Corte diz que "os procedimentos adotados para julgar Hamdan violam a Convenção de Genebra".
"Há grande flexibilidade para julgar presos capturados em um conflito armado. As exigências são gerais, concebidas para se adaptarem a uma grande variedade de sistemas jurídico. Mas não são menos exigentes. A comissão [os tribunais de exceção] que o presidente instaurou para julgar Hamdan não satisfaz essas exigências", diz o texto do relator do processo, juiz John Paul Stevens.
O argumento do governo americano é o de que uma resolução do Congresso aprovada três dias após os atentados e a própria Constituição concediam poderes a Bush para lutar contra o terrorismo sem a supervisão do Judiciário ou do Legislativo.
Reações
A sentença da Suprema Corte foi comemorada por grupos de defesa de direitos humanos.
Anthony Romero, diretor-executivo da União Americana pelas Liberdades Civis, um dos maiores oponentes dos tribunais de exceção, vê na decisão um "grande golpe para os planos do governo de Bush".
"A Suprema Corte deixou claro que o Executivo não tem carta branca na guerra contra o terror e não pode atropelar o sistema jurídico. A decisão nos deixa um passo mais perto de pôr um fim ao abuso de poder da Casa Branca", completa.
O advogado de defesa de Hamdan e professor da Georgetown University, Neal Katyal, afirma que Justiça pôs fim a uma "atribuição de poderes sem precedentes".
De Washington, o advogado David Remes, que representa 17 presos de Guantánamo, disse que a decisão tem implicações mais importantes. "Foi um caso sobre poderes unilaterais do presidente, um freio na prerrogativa de agir como juiz e legislador. Ele [Bush] não é rei. Esse é o significado da decisão."
Já Anistia Internacional divulgou nota em que chama o ocorrido de "vitória para os direitos humanos".
Em teleconferência para jornalistas americanos e estrangeiros, o porta-voz do Departamento da Defesa, Brian Roehrkasse, disse em Washington que a decisão "não interfere em nada nos poderes da Casa Branca em tempos de guerra".
"Nada afeta o funcionamento da base de Guantánamo. A corte não vê nenhum impedimento. Todas as opções estão sobre a mesa, e vamos trabalhar com o Congresso. Todas as ferramentas serão usadas", declarou Roehrkasse.
O porta-voz da Casa Branca, Tony Snow, afirmou que Bush mantém a intenção, declarada anteriormente, de fechar a base militar, mas que o governo "ainda não sabe o que fazer com os prisioneiros".
______________