Migalhas Quentes

"Guerrilha do Araguaia"

Veja a ementa da decisão judicial

18/7/2003

 

“Guerrilha do Araguaia” 

 

A 1ª Vara Federal de Brasília proferiu sentença condenando a União a indicar o local onde se encontram os restos mortais das vítimas da denominada “Guerrilha do Araguaia” e a promover o sepultamento condigno desses corpos, em lugar a ser indicado pelos familiares, autores da ação. A União também foi compelida a promover investigação sobre os fatos e prestar tais informações à Justiça sob pena de aplicação de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

 

A sentença foi proferida pela Juíza Federal Solange Salgado da Silva Ramos de Vasconcelos. A decisão de mérito, com 46 laudas, foi lançada nos autos do processo 82.00.24682-5, de longa tramitação diante das peculiares e dificuldades próprias de processo dessa natureza. 

 

Veja abaixo a ementa da decisão judicial.

 

EMENTA

 

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. PROCESSUAL. RESPONSABILIADE OBJETIVA DO ESTADO. CONFLITO INTERNO DENOMINADO ‘GUERRILHA DO ARAGUAIA’. DESAPARECIMENTO OU MORTE DE GUERRILHEIROS. PROVAS E INDÍCIOS VEEMENTES DO FATO. RECONHECIMENTO DA RESPONSABILIADE ESTATAL. CONDENAÇÃO ESPECÍFICA.

 

 

1.Possibilidade jurídica do pedido dos familiares das vítimas reconhecida por decisão do TRF/1ªR. Pretensão dos Autores restrita à indicação, pela Ré, do local de sepultamento. Documentos de valioso conteúdo probatório. Caso de presumível prática do delito de desaparecimento forçado ou involuntário de pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia.

 

2. Precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Blake contra a República da Guatemala e caso Neira Alegria contra o Estado do Peru. Peculiares deste processo permitindo admitir, além da prova testemunhal e documental, também a prova circunstancial, fundada em indícios e presunções, pois deles possível inferir conclusões consistentes sobre os fatos da lide, sendo suficiente a conjunção de indícios relevantes para fundamentar a presunção judicial.

 

3. Ausência de contradição no pedido dos Autores quanto a estarem vivos ou mortos seus familiares, na medida em que a morte das vítimas emerge de conclusão lógica dos fatos apurados, estando respaldada pelas normas dos artigos 10 e 482 do Código Civil anterior e artigos 6º e 38 do Código Civil em vigor que regulam a presunção de morte e a sucessão definitiva.

 

4. Em caso de desaparecimento forçado não é lícito atribuir o ônus da prova exclusivamente aos familiares da vítima, por constituir no mínimo insensatez, na medida em que uma das principais motivações da prática desse ilícito é precisamente a intenção de dissimular as provas, notadamente no período em que verificada a ocorrência da Guerrilha do Araguaia.

 

5. É fato que os confrontos ocorreram em regiões inóspitas, em meio à floresta, dado relevante que impõe considerar a possibilidade de circunstâncias adversas que poderiam ter impossibilitado às forças militares uma atuação escorreita, dentro dos ditames legais do Estado de Direito, no que tange ao sepultamento e identificação de corpos. Malgrado isso, assiste direito aos familiares das vítimas ter ciência cabal dos pormenores da ocorrência.

 

6. Inconsistência de tese segundo a qual, em operações militares envolvendo um contingente de alguns milhares de soldados destinados a combater uma tímida aglomeração de guerrilheiros, tivesse o Estado, em todas as campanhas de cerco e aniquilamento, perdido o controle da situação e ficado incapacitado de proceder de forma regular. 

 

7. Existência de prova inequívoca de que o Exército aprisionou e interrogou as vítimas, negando informes a respeito do desaparecimento delas, fato a gerar sofrimento e angústia, além de um sentimento de insegurança, frustração e impotência perante a abstenção das autoridades públicas em investigar os fatos.

 

8. O direito a um sepultamento condigno constitui corolário do respeito aos mortos e está consagrado, no plano internacional, nos dispositivos das Convenções de Genebra, que integram o ordenamento jurídico do Direito Humanitário.

 

9. O Direito Internacional, à época dos confrontos na região do Araguaia, já continha normas relativas ao trato dos mortos em conflito armado, às quais estava obrigado o Estado Brasileiro, signatário das quatro Convenções de Genebra.

 

10. A entrega dos restos mortais das vítimas a seus familiares, a fim de que possam ser dignamente sepultados, e o fornecimento das informações sobre a morte, constituem providências capazes de dar cumprimento à obrigação estatal.

 

11. Somada à dor da perda tem-se nesta demanda a angústia de conviverem os Autores com os efeitos do desaparecimento forçado dos entes queridos, o destino ignorado, a opressão de um silêncio fabricado.

 

12. O texto da Carta Política de 1988 retrata a ruptura com o regime autoritário, constituindo-se no marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, já que atribui aos direitos e garantias fundamentais relevância extraordinária. Assim, o valor da dignidade humana, içado ao posto de princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III) impõe-se como parâmetro a orientar o trabalho do intérprete do Direito e do aplicador da lei.

 

13. Os múltiplos direitos ofendidos pela prática do desaparecimento forçado, como o direito à vida e à integridade física, não podem ser reparados porque são, por natureza, não-restituíveis, razão de ser da ausência de postulação nesse sentido. Entretanto, os Autores podem  ser contemplados com o direito à verdade dos fatos, aos restos mortais para um sepultamento digno, como medidas necessárias para que se dê o reconhecimento da dignidade inerente à pessoa humana.

 

14. Procedência do pedido. Condenação da Ré (União) para cumprimento das exigências de indicação de local dos restos mortais das vítimas, promovendo-lhes sepultamento condigno com informações necessárias à lavratura da Certidão de Óbito, e dados outros referentes à investigação dos fatos, sob pena de multa cominatória diária.

 

15. Extinção do processo com julgamento de mérito neste grau de jurisdição (CPC, art. 269, I).

 

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