Migalhas Quentes

Adauto Suannes apresenta mais um capítulo do livro "Menas verdades (causos forenses ou quase)"

23/1/2006

 

Crônica - Ranulfo de Mello Freire

 

Confira abaixo mais um inédito capítulo do livro "Menas verdades (causos forenses ou quase)", do ilustre colaborador Adauto Suannes. É uma homenagem a Ranulfo de Mello Freire.

 

"Meus caros. Aí vai uma modesta homenagem a um dos grandes juízes deste país, feita enquanto ele está vivo que depois de morto guardem as flores: Ranulfo de Mello Freire. É um capítulo do livro cuja capa também lhes exibo. Um abraço do" Adauto Suannes

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Ranulfo de Mello Freire

 

Adauto Suannes

 

Sabes ao acaso o que seja definir bondade palavra mais de pouco uso merecido quando se diz fulano é bonzinho não sendo isso quase que uma ofensa? eu é que não desejaria ser assim apodado, Deus me livre! Falo de alguém efetivamente possuidor desse raro predicado que não seja mãe nem pai que esses nem pensar! quem em sã consciência se lembraria de mãe como pessoa bondosa ou bondadosa que é como os antiguíssimos chamavam suas pessoas de predileção? Pode ser bondosa quem só se põe a ralhar com a gente e dizer isso não pode aquilo se deve e vão já escovar esses dentes mode dormir e o gosto de chocolate bom que a gente trazia entre os dentes quase que nem aparecendo o próprio por diluído em saliva doce sendo substituído pelo gosto de pasta dental colgate aquele gosto horrorosíssimo que se leva para a cama ainda bem que o sono chega logo! ou mandando pular já dessa cama que o dia já vai alto e a escola está esperando por pessoas preguiçosas como você que deve estudar para não ser como essa gente que acaba vendendo garrafa. Bondosa ela? Nem pensar!

 

De pai então nem se fale que não merece elogios sempre ausente nas horas mais precisas que lá se foi com pasta debaixo do braço, falo da pasta de documentos, correndo-se todo para tomar o ônibus afobado levantasse mais cedo da outra vez, dizendo-lhe assim a mulher, e ele lhe dá um beijo de longe e os dois se riem, mas ficar para almoçar com a gente que é bom nem pensar, teu pai tem mais o que fazer e tratem de comer que isso não é hora de falar que a boca tem outro destinatário e jiló é muito bom para as tripas.

 

Bondoso é o Agenor perguntem a alguém que o conheça naqueles seus noventa e dois anos feitos ainda outro dia com seus menos que cinqüenta quilos de leveza óssea e cintura que se mede em centímetros sempre pronto a retribuir sorrisos mesmo quando lhe sejam sonegados os que merece, os olhinhos cegos talvez fruto dos muitos miúdos pontos e alinhavos que perpetrou a vida toda, não é que fazia até mesmo fardamento dos revoltosos de trinta e dois? a piscar diante da televisão de que ouve apenas som e que tem pela mulher a paixão adolescente pela Adélia mulher lindíssima, sabe a Elisabeth Taylor? tal qual, até mesmo nas empreitadas amorosas e ali está ele a regar com sua bondade em gotas aquele sentimento que o alzeimer dela solidificou em uma inseparação eterna, que será de um quando o outro se for? Eu já almocei hoje Agenor e ele já! paciente. Eu já almocei hoje Agenor e ele novamente com a mesma paciência: já!

 

Bondade me lembra o Ranulfo com sua marca na testa ISO 9000 que lhe foi vincado na face para que se saiba que pode haver outrem apenas e somente parecido, homem impossível de condenar alguém como fazê-lo sem caminhar quilômetros dentro das alpercatas do outro, não foi assim que lhe ensinaram em Ventania? E que tinha tudo para continuar sendo juiz de família não fossem as Parcas mandá-lo para o Alçada Criminal onde quem o conhecesse lhe perguntava atônito: que faz você aqui? E ele lá com seu sorriso que não diz nem sim nem não mineirissimamente. E se um casal se desavinha e isso dava em processo judicial lá está ele ouvindo sacramentalmente sem batina porém o homem que se explica: e deu-se que a mulher em lugar de fazer o almoço se põe a tagarelar mais a comadre dela a tal que batizou o do meu e quando volto da roça cadê o feijão? e o arroz? e a couve? E aí eu lhe dei uns tapas mesmo que era por amor do escarmento não vão as filhas aprender com ela essa deslição que é o não trabalho, então não vê que eu sou homem da roça? Mostra as mãos calosas ao juiz compassivo que tudo ouve para espanto da escrevente que mal o conhecia então. Diga se eu não merecia de exemplar ela mais as meninas que tudo viram e que pequenas ainda não podem fazer os que fazeres da casa mas há que aprender. E deu-se que lhe arrancou meu modo bruto algum sangue lá da boca dela e ela se assustou e foi até a tal comadre que lhe disse isso não pode ficar assim! procure o doutor promotor da comarca! E isso ela diz por causa da televisão que ela vê lá na casa dela e que mudou a cabeça de muita mulher que não quer mais se dar ao respeito da obediência. Mas o senhor não pode bater em sua esposa, diz o juiz compreensivo paternalmente aquilo que se diz que pai deve de ser e o outro arrebenta nuns bugalhos enormes: Nãããão? Quer dizer, bater com soco e com produção de sangue vosmicê não deve, dê aí nela uns empurrõezinhos!

 

Lembra meu vero pai naquilo de entregar o dinheiro todo do salário mensal nas mãos da Marina lá dele como o meu fazia com a dele, que Marina não se chamava, e que quando se saísse de casa: velha, me vê aí uns trocados para a condução. E não é que ele o meu pai chegava à noite transformado o dinheiro da condução em livros raros descobertos num sebo qualquer do caminho talvez até em francês sendo e o filho universitário sem entender aquilo como pode um homem que mal e mal fez o grupo escolar ler livro escrito em francês? Acho que o Ranulfo deve de fazer igual com aquele cheque solteiro que a Marina destaca do talão que lhe fica na bolsa dela e lhe diz a ele: tome.

 

E havia quem dissesse que o homem era admirador do Marx mais o Fidel mais outros tantos comunistas pois jamais que o vissem em missa na comarca a menos que de sétimo dia fosse não tendo ele embora cara de quem gostasse de ensopado de criancinha com quiabo e outros acepipes para lhe realçar o sabor da comida como se diz que na Rússia se faz amiúde não é que o homem até em Cuba esteve? mal sabendo os ignaros mal informados ou maledicentes profissionais que ele se ali esteve foi menos pelo prazer político e mais por força do vitiligo que lhe mancha a pele não fosse aquilo algo que degenerasse em coisa mais profunda e comprometedora de sua perfeita saúde não fosse ele o hipocondríaco que todos lhe reconhecemos e que se contamina até por palavras, emprenhado pelas oiças no dizer da jocosa Marina, não é que até inflamação do útero ele supôs que tivesse quando morreu a mulher do colega fulano de tal de uma doença dessas?

 

E que quando viu o Tácito Morbach caminhando pelo tapete vermelho afamado tendo ao lado o Alves Braga lhes apodou preta de neve e um dos sete onde estão os outros seis anões? o que ele desmente categoricamente com dizer que isso foi invenção do Rodrigues de Alckmin, então desembargador depois Ministro do Supremo homem de fino humor e verdadeiro autor da bem lançada boutade.

 

E enquanto juiz familiar eis que lhe chega às mãos do sobredito Ranulfo envelope com papel timbrado Tribunal de Justiça de São Paulo Conselho Superior da Magistratura Palácio da Justiça e ele lá pensa que será isso? pensa nada! vai abrindo o envelope bem devagarzinho como se se cuidasse de doce de leite e lê ao depois a convocatória a Vossa Excelência para comparecer à sala tal no dia tal para prestar esclarecimentos nos autos do processo tal. E no dia tal lá vai ele e o gentil porteiro boa tarde excelência! boa tarde meu jovem! e o porteiro sorridente lhe abre a porta alta e pesada da sala da Presidência e ele diz licença! Vamos entrando e lá vem o Young da Costa Manso estendendo-lhe amistoso a mão direita como vai o senhor? Bem obrigado e Vossa Excelência? Como Deus é servido!

 

Sente-se sente-se e eles ambos se sentam naquele sofá de couro preto muito bonito que ainda está lá até hoje a resistir a bundas e bundas e o Presidente lhe mostra uns papéis dizendo o doutor fulano presidente da câmara tal desta Corte me enviou este ofício dizendo que o senhor não costuma assinar suas decisões, seja só! Mas como senhor Presidente diz o Ranulfo obsequioso e o outro pois é! e eles mandam cópia de sentença onde se vê que realmente não há ali assinatura sua mas apenas rubrica em todas as folhas inclusive na principal veja! E o Ranulfo olha os papéis e dá uma risada bem mineira saca do bolso a carteira funcional que mostra ao Young veja se não é a mesma e com ela me pagam até cheques, brinca. E o Presidente do Colendo Tribunal de Justiça e do Egrégio Conselho Superior de Magistratura diz ora, ora, ora! E confere isto com aquilo e coça seus brancos cabelos bastos e lhe diz ao Ranulfo: vamos então fazer o seguinte a partir de hoje o senhor encomprida um pouquinho mais, pouca coisa, esta perninha de sua assinatura para distingui-la da rubrica propriamente dita para que não me venham novamente esses desocupados a me tomar o pouco tempo com um ofício como este. E a propósito como vai a fazenda? e o nelore? eu ouvi dizer que agora estão ganhando muito dinheiro é com criação de manga larga eu porém.

 

E se falo assim do homem com o meu filial afeto veja se não é para: relator do processo criminal ele caça jeito sem conseguir de absolver o homem que fizera isto e mais aquilo provado está nos autos, eminentes colegas, embora me pareça que a respeitabilíssima sentença tenha carregado a mão no que tange à pena que proponho reduzida seja ao mínimo legal a teor do que se tem proclamado diuturnamente nos tribunais pátrios, acompanho! dizendo o segundo juiz que no caso vista dos autos não tivera regimentalmente ressalvado dada a natureza da pena cominada in abstracto. E como vota o excelentíssimo terceiro juiz? Assim lhe indaga solene o presidente da sessão lá de sua cadeira de espaldar alto. Com licença, posso ter em mãos os autos por um instante? e o bedel vai até lá pega a meia dúzia de folhas que compõem os tais autos e traz cá ao curioso vogal que lhe examina folhas e folhas e lhe diz à turma julgadora: então está extinta a punibilidade porque a denúncia foi recebida dia tal e a sentença foi publicada no dia tal sendo tal a pena ora consolidada pelos eminentes julgadores que me antecederam e a cujos votos não tenho motivos para resistir, diz assim solene o tal vogal que ele vinha do Ministério Público e deveria exibir ali seu induscutido merecimento. E o Ranulfo batendo mínimas palmas: ai que bom! E o maldoso Dirceu de Mello que o Rocha Lima ainda não estava por lá dizendo alto e bom som para gargalhada geral: bem se vê que Vossa Excelência não é do ramo!

 

Carpidor de café que se tornasse professor na GV como modestamente os que por lá brilham lhe denominam a tal importante faculdade mundialmente respeitada deve de haver muitos, como se pode imaginar e como o Angarita talvez desminta compadre sendo do tal homem e ninguém melhor para lhe compreender a sincera modéstia. E os alunos irreverentes a chamar-lhe pelas magras costas: o mancha, dado o sinal que os sábios santos resolveram lhe por na testa logo ao nascer que é para ficar claro que outro assim só ele. E não é que o sábio Dagô convenceu o Presidente do Tribunal a convocar o juiz da vara de família para vir pingüinar naquela Câmara de gás como os advogados lhe chamavam à tal Câmara desanimados de ali tentar absolver um réu que fosse, perguntem ao Delmanto, e o Cunha Camargo a justificar-se: com o Ranulfo ali talvez se apague a má fama que ronda nossa Câmara. E olhe o pobre e bondoso juiz a ter de ouvir coisas como para mim, réu inocente pena mínima, que é como os colegas do Dagô diziam jocosos que tratavam eles os denunciados que por ali apareciam.

 

Ou o Ítalo Galli a pregar do mais alto dos púlpitos que aos olhos de Deus não pode haver injustiça logo por mais crasso e enorme que fosse o erro do juiz condenador estaria este, falava do juiz injusto, a permitir que o Criador escrevesse, como sabem todos que assim é, torto pelas mãos do julgador humano para atingir a reta condenação de que o tal injustiçado merecedor seria por fato diverso escondido de nossos humanos olhos, quem somos nós para de tudo ter conhecimento? E não é que o mesmo Ítalo trazia a baila nada mais nada menos do que a história do Santo Efren, quem já ouviu falar desse? que, embora de pais cristãos em sua juventude era muito travesso levado da breca como narraria o Ranulfo ao depois no Amarelinho e um dia o tal futuro santo encontrou uma vaca no campo e começou a atirar-lhe pedras nela, moleque que era, até que a desesperada vaca caiu nuns barrancos e não houve quem a dali tirasse coisa que porém ele silenciou não vindo por isso o seu dono da tal vaca a saber que perdera sua rês e ninguém fora por isso justiçado. Deu-se porém diz o mesmo Ítalo que uns lobos atacaram o rebanho de uns pastores acabando-lhes com as ovelhas todas lá deles e não é que o Efren é tido por suspeito processado condenado e jogado nuns fundos de um poço? onde ele só fazia rezar, moço de fé que já era ou se tornou pelo medo da morte proximamente iminente, isso eu não sei bem, mas suas preces foram ouvidas e o seu Deus lhe enviou a ele um anjo que desceu sem problema algum até o fundo daquela fossa e lhe diz todo solene já sei que és inocente do furto das ovelhas mas lembra-te daquilo que fizeste impunemente com a vaca seu malandro! lembre-se da vaca! da vaca! Assim foi ecoando nas paredes do tal poço as palavras do resplandecente anjo à medida que ele o tal anjo se transmudava em fumaça.

 

E não é que havia no Tribunal de Alçada Criminal desde priscas eras uns paletós e umas gravatas, ditos ad hoc, que se destinavam aos pobretões dos pais dos réus cujos feitos iriam a julgamento naquele dia e ali não se podia ingressar naqueles sacrossantos corredores a não ser se vestidos a caráter e tome os pais baixinhos ou graúdos dos tais réus a procurar qual o paletó que melhor se lhes escondesse a feiúra da pobreza, coisa mais falta de estética! e quem melhor para revogar essa quase milenar regra senão o ex-carpidor de café agora entronizado na sala da presidência por seus ilustres pares?

 

E não era naquela mesma e egrégia Corte que os réus pobres, sendo defendidos pelos chamados defensores dativos os quais ao fim do caso faziam extrair certidão dos autos dizendo que o doutor fulano de tal oabê número tal se houve a contento no desempenho de tal mister e que portanto faz ele jus à percepção da verba honorária fixada na convenção celebrada entre o Estado de São Paulo e a Ordem dos Advogados do Brasil secção de São Paulo relativamente a comarcas onde o Estado não dispunha ainda de serviços de Assistência Judiciária Gratuita aos acusados, coisa que o pessoal da Avenida Liberdade trinta e dois era useiro e vezeiro em fazer com raro tirocínio haja vista o Vico Manhas e a Angélica que não me deixam mentir com suas desembargadoriais figuras? E quando a urgência de dinheiro era muita não é que os tais defensores dativos contratados ad hoc se esqueciam de interpor embargos infringentes que é um recurso facultativo ao réu que tem em seu prol um voto favorável num julgamento que lhe foi desfavorável e que por força da tal infringência pode vir a ter revertido o julgamento do caso como já ocorreu inúmeras vezes! e que o tal defensor dativo não apresentando tal recurso facultativo implica o trânsito em julgado da decisão condenatória, com o voto a favor do réu tendo valor menor do que vintém? Que fazer? Baixar uma analfabeta portaria dizendo contra tudo e contra todos os que escreveram e julgaram sobre tal tema que se o defensor dativo não interpuser o cabível e necessário, vejam bem, necessário recurso de embargos infringentes a tal decisão condenatória não transita em julgado coisa nenhuma e que a secretaria do mesmo e egrégio Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo deve de enviar os mencionados autos à sala número tal onde advogados atuando ad hoc e não fosse pouco o latinório também pro bono se encarregariam de embargar infringentemente a tal decisão condenatória. E quem eram esses advogados dativos senão os Geraldos Faria Lemos Pinheiro, os Penteados de Morais, os Papaterras Limongi, os Paulos Restiffe e tantos outros já aposentados juízes de tal quilate sim senhor cuja lembrança a memória já gasta por longos pensares não me traz no momento depois eu completo a lista. Agora me pergunte quem assinou a tal analfabeta portaria como ele mesmo denominava dita peça com o teológico fundamento de que os meios estão a justificar-se pelos fins. Pois foi.

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