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Para a 7ª Câmara Cível do TJ/RS, música "E por que não?", da banda "Bidê ou Balde", estimula pedofilia

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12/12/2005

 

Para a 7ª Câmara Cível do TJ/RS, música "E por que não?", da banda "Bidê ou Balde", estimula pedofilia 

 

É inegável que a letra da música "E por que não?", da banda "Bidê ou Balde", materializa apologia ao incesto e à pedofilia. O entendimento é da  7ª Câmara Cível do TJ/RS, por maioria, ao aplicar penalização, com multa, pela veiculação de peça. Os lucros reverterão em benefício do público atingido. O Agravo de Instrumento foi interposto pelo Ministério Público que requereu a proibição da divulgação do CD “Acústico MTV Bandas Gaúchas” e a execução do CD “Se Sexo é o Que Importa, só o Rock é sobre Amor” e DVD, na faixa “E por que não?”, através dos veículos de comunicação do Rio Grande do Sul. 

 

Como solução, até o julgamento da ação que tramita na 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, a Câmara impôs que os meios de comunicação e divulgação registrem, expressa e antecipadamente, toda vez que a composição for veiculada, que a mesma tem conteúdo que estimula e banaliza a violência sexual contra crianças, ao incesto e à pedofilia, assim reconhecida judicialmente. A mesma ressalva deverá constar na capa de novas produções que a contenham. 

 

Em relação à comercialização do CD produzido no ano de 2000 (“Se Sexo é o que importa, só Rock é sobre Amor”), bem como do DVD da Banda Bidê ou Balde, que contenha a composição, impões a multa de 10% de sua comercialização/faturamento, a ser recolhida ao Fundo Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente, em 30 dias, sob pena de multa de duas vezes o valor apurado em perícia contábil, se necessária. 

 

No que diz respeito ao CD “Acústico MTV Banda Gaúchas”, a multa fica estipulada em 20% sobre o faturamento da banda, da comercialização daí recorrente, tendo em vista que o grupo possui cinco faixas no CD, sendo a composição “E por que não?” uma delas, com recolhimento nos mesmos moldes acima determinados. 

 

Em shows onde estiver inserida a música deve ser recolhida a multa de 10% do total da arrecadação, sob pena de multa estabelecida no dobro do valor devido. 

 

Também participaram do julgamento, em 7/12, os Desembargadores Luiz Felipe Brasil Santos e Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. 

 

Proc. 70013141262 (Maria Helena Gozzer Benjamin)

 

___________

 

Confira abaixo a música da banda Bidê ou Balde

E Porque Não?

Eu estou amando
A minha menina
E como eu adoro
Suas pernas fininhas

Eu estou cantando

Pra minha menina

Pra ver se eu convenço

Ela entrar na minha

E por que não?
Teu sangue é igual ao meu
Teu nome fui eu quem deu
Te conheço desde que nasceu
E por que não?

Eu estou adorando
Ver a minha menina

Com algumas colegas

Dela da escolinha

Eu estou apaixonado

Pela minha menina

Ouve o jeito que ela fala

Olha o jeito que ela caminha.

E por que não?

Teu sangue é igual ao meu

Teu nome fui eu quem deu

Te conheço desde que nasceu

E por que não?

__________

 

 

Confira a íntegra do acórdão:

 

Agravo de instrumento. ação civil pública. letra de música que faz apologia à pedofilia e ao incesto. antecipação de tutela. possibilidade, em termos.

 

Inegável que a letra da música “E por que não?”, da banda “Bidê ou Balde”, materializa apologia ao incesto e à pedofilia, sendo impossível, material e constitucionalmente, a pura e simples extirpação do material do universo social, já entranhada nos lares e à disposição em centenas de “sites” na Internet.

 

Hipótese de reconhecimento judicial da ofensa, com minimização de seus efeitos, com aplicação de multa, por veiculação e decorrente de parcela dos lucros, em benefício de órgão estadual de bem estar do menor.

 

Recurso parcialmente provido, por maioria. 

 

Agravo de Instrumento

Sétima Câmara Cível

 

Nº 70013141262

 

Comarca de Porto Alegre

 

MINISTéRIO PúBLICO - AGRAVANTE 

BANDA BIDê OU BALDE - AGRAVADA 

ACIT COMERCIAL FONOGRÁFICA - AGRAVADA

SONY BMG MUSIC ENTERTAINMENT  - AGRAVADA 

 

ACÓRDÃO

 

Vistos, relatados e discutidos os autos.

 

Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em dar parcial provimento ao recurso.

 

Custas na forma da lei.

 

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Luiz Felipe Brasil Santos (Presidente) e Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.

 

Porto Alegre, 07 de dezembro de 2005.

 

DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL,

 

Relator.

 

RELATÓRIO

 

Des. Ricardo Raupp Ruschel (RELATOR)

 

Por irreparável, adoto o relatório da lavra do eminente Dr. Procurador de Justiça, constante da folha 58 dos autos, o qual abaixo transcrevo, naquilo que interessa 1:

 

(...) “Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO buscando: a) a proibição de divulgação do CD “Acústico MTV Bandas Gaúchas”, bem como a execução do CD “Se Sexo é o Que Importa , só o Rock é sobre Amor” e DVD, na faixa “E por que não?”, da Banda Bidê ou Balde, através dos veículos de comunicação, falados ou televisionados, do Rio Grande do Sul, sob pena de multa diária, no valor correspondente a cem salários mínimos, por dia de descumprimento, depositado no Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente; b) a notificação das gravadoras e da Banda de Rock para publicarem nota, na imprensa local, cientificando os meios de comunicação da determinação judicial ora pleiteada, bem como recolher todos os CDs e DVDs, visando impedir a comercialização, sob pena de multa, abstendo-se de produzir nova edição, cominando-se, igualmente, a aplicação de multa diária pelo descumprimento.

 

“O eminente Relator, Des. Ricardo Raupp Ruschel, não concedeu a liminar pleiteada (fl. 55), vindos os autos à Procuradoria de Justiça.”

 

(...) Em parecer lançado nas folhas 57 a 73 dos autos, o Ministério Público opinou pelo conhecimento e, no mérito, pelo provimento do agravo, para ver deferida a antecipação de tutela, nos termos do pedido formulado pelo agravante.

 

Vieram-me os autos conclusos, para julgamento.

 

É o relatório.

 

VOTOS

 

Des. Ricardo Raupp Ruschel (RELATOR)

 

Merece parcial provimento o recurso.

 

Com efeito, é inegável que a letra da música “E por que não?” ultrapassou os limites do mau gosto, estimulando e banalizando a violência sexual contra crianças, incentivando o incesto e à pedofilia, quando verseja:

 

“Eu estou amando a minha menina

 

“E como eu adoro suas pernas fininhas

 

“Eu estou cantando pra minha menina

 

“Pra ver se eu convenço ela a entrar na minha

 

“E por que não?

 

“Teu sangue é igual ao meu, igual ao meu

 

“Teu nome foi eu quem deu

 

“Te conheço desde que nasceu

 

“E por que não?

 

“Eu estou adorando

 

“Ver minha menina

 

“Com algumas colegas

 

“Dela da escolinha

 

“Eu estou apaixonado

 

“Pela minha menina

 

“O jeito que ela fala, olha,

 

“O jeito que ela caminha”.

 

Como se vê, não se trata, à evidência, de poesia de amor paternal, senão que amor carnal “pela minha menina”, já que nenhum pai nutre “adoração de sua pernas fininhas” e nem precisa “cantar... pra ver se eu convenço ela a entrar na minha”.

 

Ratifica tal interpretação a circunstância da conhecida supressão, do texto original, da palavra “não” dos versos do refrão: “Teu sangue (não) é igual ao meu... Teu nome (não) fui eu quem deu....”, revelando-se efetiva confissão do propósito provocativo, atentatório e criminoso, ofendendo os direitos fundamentais à dignidade, ao respeito e à liberdade, como pessoas humanas, das crianças e adolescentes, tão claramente estabelecidos no artigo 227,  caput, da CF, e ratificados nos artigos 3º e 4º da Lei 8.069/90.

 

Por outro lado, a pretensão posta na inicial, de supressão dos CDs e DVDs, com proibição da veiculação da música por rádios, tv’s e shows, não se revela eficiente ao fim pretendido, resguardar a dignidade das crianças e adolescentes, posto que materialmente impossível a erradicação social da canção, já que inserida em mais de uma centena de sites na Internet, à disposição de quem dela quiser dispor.

 

Ainda, tal determinação, ao contrário do efeito pretendido, somente serviria para conferir imensa publicidade à malfadada música e ao grupo que a produziu, oportunizando maior divulgação, mesmo que por meios não usuais.

 

A simples supressão, portanto, não me parece o mais indicado.

 

Por outro lado, a permissibilidade de execução da música ressalva eventual alegação de censura, tão marcante em nosso passado próximo, tendo presente que a livre manifestação artística tem substrato constitucional, ainda que discutível quando de cunho atentatório, como na espécie, equalizando garantias constitucionais, em perfeita e efetiva democracia.

 

Se não se deve e nem se pode pura e simplesmente desenraizar a composição indicada do universo social, é imperioso que se reconheça a sua carga ofensiva e assim se declare, objetivando, com isto, reverter à discussão para a ótica da notícia, minimizando o efeito não tão subliminar que a letra contém.

 

Assim, se judicialmente reconhecemos que a letra da música tem conteúdo que estimula e banaliza a violência sexual contra crianças, ao incesto e à pedofilia, estamos noticiando o quanto ela é prejudicial, na tentativa de reduzir os seus efeitos, desvendando a sua natureza atentatória. Que se leia a letra da composição sabendo que ela é indigna com as crianças e adolescentes.

 

Reconhecido seu vezo atentatório e, sabendo-se impossível sua erradicação do mundo social, alguma solução tem que ser dada.

 

Luiz Guilherme Marinoni, em sua obra “Técnica Processual e Tutela dos Direitos” (RT, 2004), ao tratar da “mitigação do princípio da congruência entre o pedido e a sentença”(p. 134 e seguintes), refere:

 

(...)  “A necessidade de dar maior poder ao Juiz para a efetiva tutela dos direitos, espelhada, em primeiro lugar, na quebra do princípio da tipicidade das formas executivas e na concentração da execução no processo de conhecimento, trouxe, ainda, a superação da idéia de absoluta congruência entre o pedido e a sentença.

 

“Note-se que a superação dessa idéia é uma conseqüência lógica da quebra do princípio da tipicidade dos meios executivos e da concentração da execução no processo de conhecimento, uma vez que todas elas se destinam a dar maior mobilidade ao juiz – e assim maior poder de execução. A ligação entre tudo isso, ademais, deriva do fato de que a regra da congruência, assim como o princípio da tipicidade e a separação entre conhecimento e execução, foi estabelecida a partir da premissa de que era preciso conter o poder do juiz para evitar o risco de violação da liberdade do litigante. Tanto é verdade que, quando se pensa em congruência, afirma-se que sua finalidade é evitar que a jurisdição atue de ofício, o que poderia comprometer sua imparcialidade.

 

“O CPC, em dois artigos, alude à idéia de o juiz ater-se ao alegado pelo autor. O art. 128 diz que “o juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”. E o art. 460 afirma que “é defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado”.

 

“O art. 460, ao traduzir a idéia de segurança jurídica, afirma que a sentença deve limitar-se ao pedido nos sentido imediato e mediato. Ao falar na proibição de sentença de “natureza diversa da pedida” alude ao pedido imediato, e ao apontar para vedação de condenação em “quantia superior ou em objeto diverso” , trata do pedido mediato. Tal distinção é fácil de ser apreendida, pois o pedido mediato reflete o “bem da vida” – a quantia, o objeto – que se procura obter com o acolhimento do pedido imediato, isto é, com a sentença solicitada.

 

“Essa proibição tinha que ser minimizada para que o juiz pudesse responder à sua função de dar efetiva tutela aos direitos. Melhor explicando, essa regra não poderia mais prevalecer, de modo absoluto, diante das novas situações de direito substancial e da constatação de que o juiz não pode mais ser visto como um “inimigo”, mas como representante de um Estado que tem consciência que a efetiva proteção dos direitos é fundamental para a justa organização social.

 

“Pois bem: os arts. 461 do CPC e 84 do CDC – relativos às “obrigações de fazer e de não fazer” – dão ao juiz a possibilidade de impor a multa ou qualquer outra medida executiva necessária, ainda que não tenham sido pedidas. O art. 461 do CPC, por exemplo, afirma expressamente, no seu §4°, que o juiz poderá impor multa diária ao réu, “independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação”, e no seu §5° que “poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como...”.

 

“No mesmo sentido, o novo art. 461-A – que entrou em vigor em agosto de 2002 -, pois afirma, no seu §3°, que são a ele aplicáveis as regras que estão nos parágrafos do art. 461. Desse modo, caso tenha sido solicitada a busca e apreensão, poderá ser imposta a multa, ou vice-versa.

 

“Nessa linha, é importante perceber que pode ser solicitada sentença executiva, ou seja, capaz de conduzir à tutela do direito mediante coerção direta ou sub-rogação, e o juiz conceder sentença mandamental (ou coerção indireta). Ou o inverso, pois pode ser concedida sentença executiva no lugar de sentença mandamental.

 

“Ademais, está expressa, nos arts. 461 do CPC e 84 do CDC, a possibilidade de o juiz dar conteúdo diverso ao fazer ou ao não-fazer pedido, ou melhor, impor outro fazer ou não-fazer, desde que capaz de conferir resultado prático equivalente àquele que seria obtido em caso de adimplemento da “obrigação originária”. Assim, por exemplo, se é requerida a cessação da poluição, e o juiz verifica que basta a instalação de certa tecnologia para que ela seja estancada (um filtro, por exemplo), outro fazer deve ser imposto.”

 

(...) Se a pretensão é a não comercialização e a não divulgação da composição, o que, como se viu, é materialmente impossível e de conveniência duvidosa, nada obsta a que se imponha outro fazer, “capaz de conferir resultado prático equivalente”, como bem referido por Marinoni.

 

A solução, ao meu ver, está em reconhecer, expressa e judicialmente, que a letra da música indicada efetivamente tem conteúdo que estimula e banaliza a violência sexual contra crianças, ao incesto e à pedofilia, objetivando minimizar seus efeitos, com imposição, a partir daí, de penalização que reverta em benefício do público alvo atingido.

 

Desta forma, impõe-se que os meios de comunicação e divulgação, toda vez que a referida composição for veiculada, consignem, expressa e antecipadamente, que a mesma tem conteúdo que estimula e banaliza a violência sexual contra crianças, ao incesto e à pedofilia, assim reconhecida judicialmente, ressalva que deverá constar, expressamente, na capa de eventuais novas produções que a contenham.

 

Relativamente à comercialização do CD produzido no ano de 2000 (“Se sexo é o que importa, só o Rock é sobre amor”), bem como do DVD da banda “Bidê ou Balde”, que contenha a composição indicada, imponho uma multa de 10% de sua comercialização/ faturamento, a ser recolhida ao Fundo Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente, em trinta dias, sob pena de multa de duas vezes o valor apurado em perícia contábil, se necessária.

 

No que diz respeito ao CD “Acústico MTV Bandas Gaúchas”, a multa fica estipulada em 20% sobre o faturamento da banda da comercialização daí decorrente, tendo em vista que o grupo possui 5 faixas no CD, sendo a composição “E por que não?” uma delas, com recolhimento nos mesmos moldes acima determinados.

 

No relativo aos shows, onde inserida a canção indicada, deve ser recolhida a multa de 10% do total da arrecadação, disso dando-se ciência ao promotor do evento, sob pena de multa estabelecida no dobro do valor devido.

 

Para o cumprimento da decisão poderá o Magistrado solicitar auxílio de servidores do órgão favorecido, sob a supervisão do Ministério Público.

 

Do exposto, dou parcial provimento ao recurso.

 

Des. Luiz Felipe Brasil Santos (PRESIDENTE)

 

Estou de pleno acordo com o em. relator quando reconhece o caráter de inequívoca insinuação à pedofilia e ao incesto na letra da música em questão.  Negá-lo é manifestação de cinismo ou ingenuidade, pois está por demais evidente, como bem destacado.

 

Partindo dessa premissa, põe-se diante de nós o problema: o que fazer? Ou, quem sabe, nada fazer, como pretendem alguns, por reconhecer a existência de outras produções musicais cujas letras são ostensivamente pornográficas, e que livremente são veiculadas. A “solução” seria, então, tudo permitir, diante do direito à livre manifestação “artística”?

 

Não! Por certo esta última alternativa não pode ser adotada. A circunstância de que efetivamente existem outras letras de música com conteúdo não apenas erótico, como manifestamente pornográfico, que são veiculadas para crianças e adolescentes, não é, definitivamente, justificativa para que o Estado-Juiz permaneça inerte. Se outros casos há, que sejam tomadas as devidas providências também com relação a eles. Não podemos, porém, sob esse frágil argumento, tal como Pilatos, nos omitir no momento em que, no exercício da atividade jurisdicional, somos chamados a nos pronunciar acerca desse caso específico.

 

É preciso, ainda, atentar que a letra musical em exame, apesar de não ser ostensivamente pornográfica, é mais grave do que isso, pois contém uma clara sugestão de que a pedofilia e o incesto são comportamentos perfeitamente aceitáveis (“E por que não?”), quando sabemos todos que se trata de uma manifestação doentia de personalidade (tecnicamente uma “perversão”), que causa em suas vítimas profundos e indeléveis traumas, que carregarão por toda a vida. Em obra de referência acerca do tema, a em. Procuradora de Justiça Maria Regina Fay de Azambuja 2, que nos honra neste colegiado representando sua Instituição, citando estudo publicado pela UNICEF, assinala que crianças “que sofrem abusos sexuais ficam traumatizadas, incapazes de construir relações de confiança e familiaridade que são essenciais ao seu desenvolvimento”. Lembra ainda, com Rodrigo da Cunha Pereira, que “o incesto é base de todas as proibições, é a primeira lei, ‘é a lei fundante e estruturante do sujeito e, conseqüentemente, da sociedade e, portanto, do ordenamento jurídico” 3.

 

Estudos comprovam que o abuso sexual de crianças e adolescentes se dá predominantemente no ambiente familiar e seus autores são, na maior parte das vezes, pessoas conhecidas dos menores. Volto a citar a obra de Maria Regina 4:

 

“O abuso sexual pode ser dividido em familiar e não-familiar. Autores apontam que “aproximadamente 80% são praticados por membros da família ou por pessoa conhecida confiável”. Cinco tipos de relações incestuosas são conhecidas: pai-filha, irmão-irmã, mão-filho, pai-filho e mãe-filha, sendo possível que o mais comum seja irmão-irmã; o mais relatado é entre pai-filha (75%).  (...) Tentativa de conhecer a demanda envolvendo abuso sexual praticado contra criança vem representada por pesquisa realizada junto aos Conselhos Tutelares do Rio Grande do Sul, no período de setembro de 1997 a fevereiro de 1998, que envolve trinta e seis dos duzentos e quinze municípios existentes à época e que aderiram à proposta. Os dados apontam a figura do pai como o maior abusador (18,46%), seguida do padrasto (16,50%), dos vizinhos (14,56%), amigo/conhecido (6,8%), companheiro/namorado da mãe (4,85%), tio (3,88%), primo (2,91%), irmão (1,94%). Não foram constatados casos de abusos praticados pela mãe, sendo que somente 7,77% dos casos foram atribuídos a pessoas estranhas à família, confirmando a necessidade da adoção de medidas preventivas de enfrentamento da violência sexual intrafamiliar . (...)  A família onde ocorre o abuso sexual intrafamiliar é disfuncional e perturbada na sua constituição, “estrutura de poder, papéis, posicionamento social e respeito específico à individualidade de cada membro”, “sendo do interesse da sociedade e do Estado o desenvolvimento biopsicológico da população infanto-juvenil em condições de normalidade”.” (GRIFO MEU)

 

Em outro trecho de sua memorável obra, que calha à perfeição ao caso em exame, assinala a ilustre autora:

 

“Arthur H. Green alerta no sentido de que “nem todos os pais incestuosos são violentos; alguns iniciam a atividade sexual mediante coerção sutil, aumentando gradativamente os contatos sexuais ao invés de usar a força física”, fator que dificulta ainda mais a identificação precoce do abuso.”  (GRIFO MEU)

 

Atente-se para essa relevantíssima observação acerca de que a denominada “coerção sutil” constitui, em muitos casos, a estratégia dos pais incestuosos.  Com efeito, é justamente nesse contexto que obras, ditas “artísticas”, como essa, se inserem, pois, na medida em que busca apresentar o incesto como algo absolutamente normal e aceitável (“E POR QUE NÃO?”), contribuem para que a “coerção sutil” alcance sua abjeta finalidade. Observe-se que para a criança,  o pai, por ser a figura maior de autoridade, é o portador do discurso da verdade.  Logo, o que ele diz é, em princípio, certo e justo. Dessa forma, especialmente em crianças de tenra idade, o incesto pode parecer, de início, algo absolutamente correto e normal, porque assim é apresentado pelo pai. Essa estratégia fica bastante reforçada se forem tidas como aceitáveis obras que buscam banalizar essa conduta. 

 

Apresentado o drama da violência sexual intrafamiliar e da possível contribuição que obras como a que temos ora em exame podem dar para seu incremento, passo a analisar a questão que nos é posta sob o prisma da livre manifestação do pensamento.

 

Nossa Carta Política garante a liberdade de expressão nos seguintes termos:

 

“Art. 5°, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

 

“Art. 5°, IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

 

“Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a. informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

 

“§1° - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV;

 

“§2° - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”

 

Outrossim, no artigo 227 assegura absoluta prioridade aos direitos das crianças e adolescentes, assim dispondo:

 

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (GRIFO MEU)

 

Temos uma típica colisão de princípios (liberdade de expressão x prioridade absoluta à criança e ao adolescente), que deve ser solvida à luz do princípio da proporcionalidade. Como ensina Margarida Maria Lacombe Camargo 5:

 

“(...) os direitos fundamentais, de alto teor valorativo, apresentam-se constitucionalmente sob a forma de “princípios”, como espécies normativas cujo grau de generalidade e abstração não apenas é maior, como demandam do intérprete o máximo de seu aproveitamento. Por isso, toda decisão levada a restringir um direito fundamental, ainda que em benefício de outro (ou do mesmo sob interesse de outrem), deve estar suficientemente amparada num juízo de proporcionalidade. E, como orientação geral do Estado Democrático de Direito, os parâmetros capazes de construir tal juízo traduzem-se numa norma maior, que passa a ser denominada “princípio da proporcionalidade”. (GRIFO MEU) 

 

E, para fundamentar a limitação de um direito fundamental em nome da preservação de outro, em uma perspectiva axiológica, invoca a mesma autora lição de Robert Alexy no seguinte sentido:

 

“Uma interferência em um direito constitucional é desproporcional se não for justificada pelo fato de que a omissão dessa interferência gera uma interferência em outro princípio constitucional (ou no mesmo princípio em relação a outras pessoas ou outros aspectos), esta última interferência sendo no mínimo tão intensa quanto a primeira 6.” (TRADUÇÃO LIVRE)

 

Nessa perspectiva, não há dúvida razoável de que, no caso, se justifica a limitação do direito à livre manifestação artística, em nome da preservação do direito – lembremos sempre que absolutamente prioritário – das crianças e dos adolescentes ao respeito e a serem colocados a salvo de toda forma de negligência, violência, crueldade e opressão, direito este manifestamente atingido pela obra musical em foco, como já visto.

 

E não se diga que, com isso, se estará retornando aos abomináveis tempos da censura, que todos repudiamos.  É que a restrição aqui se dá no âmbito do devido processo legal, sustentáculo e garantia do Estado Democrático de Direito, com amplo acesso ao contraditório e às instâncias recursais, e não de forma arbitrária e recôndita, típica da atividade censória dos tempos ditatoriais.

 

Avançadas tais premissas, passo agora ao exame da adequação das medidas postuladas. É certo que, como destacou o em. relator, a peça musical “E POR QUE NÃO?” já foi lançada há cinco anos, encontrando-se facilmente disponível na INTERNET. Por isso, não há, com efeito, como “apagá-la” do mundo fático. No máximo o que se pode obter é uma restrição razoável em sua distribuição e divulgação pública, além de manifestar o imprescindível juízo de censurabilidade, sem o qual não nos legitimaríamos sequer a condenar futuramente um abusador de crianças, porque teríamos admitido que seu comportamento fora socialmente aceitável. 

 

Com a vênia do em. relator, entretanto, tenho que sua proposta de solução não é a mais adequada. Permitir a divulgação da peça musical em questão em apresentações do conjunto e a venda de CDs e DVDs que a contenham desde que seja recolhido um percentual (ou multa) ao Fundo da Criança parece-me, com todo respeito, o mesmo que autorizar a livre distribuição de drogas ilícitas uma vez que ao Estado seja dada participação nos lucros. Outrossim, liberar a apresentação da música – reconhecidamente danosa aos direitos das crianças e adolescentes, friso – em rádio e televisão, desde que pronunciado prévio juízo de censurabilidade a respeito de seu conteúdo também não é a melhor solução, assemelhando-se, em muito, à situação da venda de cigarros acompanhada da conhecida tarja de advertência quanto aos males causados pela nicotina.  Ao não evitar a veiculação do conteúdo, o aviso acerca da censurabilidade oficial será, S.M.J., inteiramente inócuo, arriscando-se a ter o efeito inverso de chamar ainda mais a atenção e o interesse de todos em torno da malfadada música.

 

Diante desse conjunto de circunstâncias, estou em deferir as medidas tais como postuladas pelo agravante. Embora reconhecendo que, a esta altura, a eficácia da proibição será bastante restrita, não vejo como deixarmos de pronunciá-la, sob pena de incidirmos em omissão.

 

Por último, não considero que o fato de essa peça musical ter sido lançada já há cinco anos afaste o risco na demora, requisito indispensável à concessão liminar do pleito.  Ocorre que se trata de um dano continuado, cuja consumação não se pode permitir que prossiga.

 

Por todo o exposto é que dou integral provimento ao agravo.

 

DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES

 

Inicio saudando a iniciativa do Ministério Público em pedir providências enérgicas contra essa música de profundo mau gosto intitulada “E por que não?”, que banaliza a violência sexual contra crianças e até incentiva o incesto e à pedofilia, como assevera o eminente Relator.

 

De fato, os seus versos sugerem tratar-se de uma criança:

 

“Eu estou amando a minha menina

 

“E como eu adoro suas pernas fininhas

 

“Eu estou cantando pra minha menina

 

“Pra ver se eu convenço ela a entrar na minha

 

E sugerem tratar-se de um envolvimento entre pai e filha:

 

“E por que não?

 

“Teu sangue é igual ao meu, igual ao meu

 

“Teu nome foi eu quem deu

 

“Te conheço desde que nasceu

 

“E por que não?

 

E evidenciam um desejo anormal, doentio e repugnante do letrista e daqueles que cantam essa música, sugerindo pedofilia:

 

“Eu estou adorando

 

“Ver minha menina

 

“Com algumas colegas

 

“Dela da escolinha

 

“Eu estou apaixonado

 

“Pela minha menina

 

“O jeito que ela fala, olha,

 

“O jeito que ela caminha”.

 

Com razão o eminente Relator na medida em que tais versos não podem ser interpretados de outra forma. Certamente não se trata de uma poesia, nem se cogita de amor paternal, mas de um amor puramente carnal e, acrescento, bestial.

 

Tanto a intenção era chocar e evocar o relacionamento incestuoso, que, como bem flagrou o eminente Relator, houve a supressão, no texto original, da palavra “não” dos versos do refrão:

 

“Teu sangue (não) é igual ao meu...

 

Teu nome (não) fui eu quem deu....”

 

Concordo também com o eminente Relator, que houve manifesto propósito provocativo e atentatório aos mais comezinhos princípios que regem uma vida social minimamente saudável.

 

No entanto, essa música já está sendo tocada à exaustão há aproximadamente cinco (5) anos, sendo encontrada inclusive nos mais diversos sites musicais na Internet, isso sem falar nas incontáveis cópias espalhadas pelo país (e isso sem falar nas outras tantas que são ‘piratas’).

 

Essa música, no entanto, sugere pedofilia e sugere relacionamento incestuoso. Mas não estimula pedófilos ou anormais a prosseguirem na sua senda bestial. Nem tem o condão de transformar tais fatos que ferem a sensibilidade de pessoas normais em fatos normais ou capazes de serem aceitos pela sociedade.

 

É oportuna, no entanto, essa discussão.

 

Vivemos uma época em que é proibido proibir, em que tudo está sendo relativizado, onde a imposição de limites é questionada, onde a licenciosidade grassa até mesmo em programas televisivos infantis, onde vulgaridade está presente sempre, onde pornografia, a promiscuidade e a pederastia são banalizadas e não pedem licença para entrar nos lares e nas escolas.

 

Não é apenas essa música que choca, até por que ela apenas mostra o sentimento de um pedófilo e de um pai que nutre uma atração doentia pela filha. Peço vênia para lembrar os colegas outros exemplos de péssimo gosto, que tocam nas rádios e em programas de televisão, nos mais diversos horários, e estão gravados em CDs à disposição do público consumidor.

 

São músicas que explicitam e estimulam pornografia, violência sexual, pedofilia, práticas criminosas, uso de drogas e até discriminação racial. Mas não vejo providência alguma ser tomada por qualquer associação. E também não chamaram a atenção do Ministério Público. Mas são músicas que são ouvidas por adolescentes e até por crianças.

 

Destaco para exemplificar, uma dúzia de letras de péssimo gosto, indicando também o nome ‘artista’ ou da ‘banda’ e o nome da ‘música’, com grifo de algumas partes que ferem a sensibilidade e são capazes de constranger qualquer pessoa desavisada, como segue:

 

1) Mc Serginho: “Vai Serginho”. 

2) Tati Quebra Barraco: “Espanhola”. 

3) Mc's Vina E Fandangos: “Festa Da Paula”. 

4) Bonde do Tigrão: “Caçador De Tchutchuquinha”: 

5) Menor do Chapa: “Bonde dos 12 Mola”. 

6) Menor do Chapa: “Do Boldinho”.

 7) Tati Quebra Barraco: “Abre As Pernas, Mete a Língua”. 

8) Tati Quebra Barraco: “Ardendo Assopra”. 

9) Furacão 2000: “Punheta Arretada”. 

10) Furacão 2000: “Quer Bolete?”. 

11) Planet Hemp : “Queimando Tudo”.

12) Mc Frank: “Pra Gatinhas”.

 

Esclareço que estou retirando do voto o inteiro teor das letras dessas músicas, dada a situação de constrangimento que provocam a qualquer pessoa de mediana sensibilidade. Esclareço, também, que no julgamento fiz a leitura das letras.

 

Como se vê, essa músicas são também de péssimo gosto. E não apenas sugerem pedofilia, vista sob a ótica doentia de um pedófilo, mas constituem verdadeiras aulas de pornografia explícita e que estão ao inteiro dispor de crianças e adolescentes. E nessas músicas as crianças e os adolescentes não são meros alvos de um desejo bestial, mas atores de um festival de pornografia. Mas essas ‘obras de arte’ permanecem intocadas, sendo exibidas publicamente, tocadas em rádio e em programas de televisão...

 

Não se trata de consentir que a música “E por que não?” continue a destilar a sua estupidez, mas por reconhecer que retirá-la do mercado, em sede de antecipação de tutela não trará qualquer resultado útil, nem impedirá que continue a ser ouvida, como vem sendo ouvida há cinco anos... Talvez venha apenas a valorizar essa música e chamar a atenção de quem jamais pretendia ouvi-la.

 

Prefiro, portanto, aguardar que o processo tenha seu curso normal, observando-se o devido processo legal, e que seja lançada a sentença definitiva, para então, se for o caso, apreciar, serenamente, o pleito recursal, seja ele qual for. O que me parece inoportuno é, nesse contexto, decidir ao sabor da emoção, ainda que essa emoção seja motivada por uma justa indignação.

 

Estou confirmando, pois, a decisão de primeiro grau.

 

Des. Luiz Felipe Brasil Santos (PRESIDENTE)

 

Tendo em vista o disposto no artigo 196, III, do Regimento Interno deste Tribunal, uma vez constatado não haver maioria para qualquer solução, foi reaberto o debate.

 

Após expostas e reiteradas as razões, resolvo – para evitar a negativa de provimento ao recurso, que seria a solução regimental para a hipótese de manutenção da divergência (artigo 196, III, do Regimento Interno) e embora mantendo a convicção anteriormente manifestada em meu voto supra e todas as razões lá expostas – aderir ao voto do eminente Relator, na conclusão, dando parcial provimento ao recurso.

 

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS - Presidente - Agravo de Instrumento nº 70013141262, Comarca de Porto Alegre: "POR MAIORIA, DERAM PARCIAL PROVIMENTO."

 

Julgador de 1º Grau: JOSÉ ANTÔNIO DALTOÉ CÉZAR. 

 

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1 A formatação original do texto foi alterada, mantida, entretanto, a literalidade do texto.

 

2 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 43.

 

3 Op. cit., p. 68.

 

4 Op. cit., p. 68, 71 e 84.

 

5 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. O Princípio da proporcionalidade sob uma perspectiva hermenêutica e argumentativa.

In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. v. 1, n. 3. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005. p. 229.

 

6 “An interferience with a constitutional right is disproportional if is not justified by the fact that the omition of this interferience gives rise to an interferience with another constitutional principal (or with the same principle with respect to the other persons or in other respects), this latter interferience at least as intensive as the first one.” Op. cit., p. 233.

 

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