Migalhas Quentes

Chicana literária

Já que a chicana está na boca do povo, vejamos como o verbete já foi empregado alhures.

19/8/2013

Já que a chicana está na boca do povo, vejamos como o verbete já foi empregado alhures.

Em sua substanciosa obra, o irônico Machado de Assis usou pelo menos por quatro vezes o termo “chicana”, para designar a sutileza capciosa em questões jurídicas. Vejamos.

No romance Quincas Borba, o personagem que dá nome à trama morre e deixa sua vasta herança para o “único amigo”, Rubião. De fato, ele “era nomeado herdeiro universal do testador”. Havia, no entanto, uma cláusula condicional na disposição testamentária, que obrigava o beneficiário a cuidar do animal de estimação, cujo nome, para aumentar o mistério das imagens machadianas, tinha o mesmo nome do dono. Chamava-se, pois, Quincas Borba. E não se poupa extravagância na cláusula testamentária, exigindo ao beneficiário que tratasse o cão “como se fosse a ele próprio testador, nada poupando em seu benefício, resguardando-o de moléstias, de fugas, de roubo ou de morte que lhe quisessem dar por maldade; cuidar finalmente como se cão não fosse, mas pessoa humana”. De início “Rubião achava que a cláusula era natural, mas desnecessária, porque ele e o cão eram dois amigos, e nada mais certo que ficarem juntos, para recordar o terceiro amigo, o extinto, o autor da felicidade de ambos”. Até aí tudo bem, não fosse o fato de que, no capítulo anterior à abertura do testamento, Rubião tivesse ordenado a um escravo que levasse o cachorro de “presente à comadre Angélica, dizendo-lhe que, como gostava de bichos, lá ia mais um”. E é no capítulo posterior que ele se dá conta da bobagem. E corre à casa da comadre, de olho na herança. No caminho, imaginou se “algum inimigo, sabedor da cláusula e do presente, fosse ter com a comadre, roubasse o cachorro, e o escondesse ou matasse. Neste caso, a herança...” E é o próprio Rubião quem começa a lucubrar as conseqüências jurídicas : “Não conheço negócios de justiça, pensava ele, mas parece que não tenho nada com isso. A cláusula supõe o cão vivo ou em casa ; mas se ele fugir ou morrer, não se há de inventar um cão ; logo, a intenção principal...” E fazendo-se de advogado do diabo sugeria: Mas são capazes de fazer chicana os meus inimigos. Não cumprida a cláusula...”

Em crônica datada de 15 de março de 1863, Machado de Assis, sob o pseudônimo de Dr. Semana, um advogado amalucado, começa a fazer modelos de petições, que podem ser apresentadas “em qualquer Juízo”. Apresenta-se dizendo que pode ser procurado, a toda e qualquer hora, menos quando estiver dormindo. Assegura resultado pronto e rápido em todos os negócios de que se encarregar, ainda que não seja favorável aos seus constituintes. Não é exigente, e apenas se contenta com o pagamento adiantado. “Conhece todas as fórmulas do foro, mesmo as mais extravagantes e absurdas, e tem, engarrafada e em barrilotes de quinto, a mais superior chicana, tão afamada pelos apreciadores, etc., etc., etc.”

No conto “Aurora Sem Dia”, o Bruxo do Cosme Velho narra a história de Luís Tinoco, servidor do Judiciário, que acredita ter nascido para a poesia. “Ele exercia um modesto emprego no foro, donde tirava o parco sustento”. E Tinoco chega até mesmo a escrever um livro (“Goivos e Camélias - Um volume de 200 páginas 2$000”). Mas enquanto se dedicava às trôpegas estrofes, nosso Tinoco esquecia-se “das lides forenses, donde lhe vinha o pão”. E assim agindo não tardou, pois, a receber o bilhete azul. Conseguiu, depois, um outro emprego: “um lugar de escrevente em casa de um advogado”. Luís Tinoco, por sua vez, disse que não voltaria ao foro. E explica: “Minha inspiração deve crescer outra vez a empoeirar-se nos libelos, a aturar os rábulas, a engrolar o vocabulário da chicana !

No conto “Um sonho e outro sonho”, a bela Genoveva era viúva de um bacharel. Era o finado Marcondes, “que fizera versos aos dezoito anos, e, aos vinte, um romance”. Mas, como já dissemos, está morto, “esquecido dos homens, hóspede dos vermes”. Falemos, então, dos pretendentes da viuvinha. E quantos eram ! Um deles, no entanto, venceu as saudades que ela tinha do marido. Era, também como o finado, um bacharel. Chama-se Oliveira. “Tinha trinta anos, e advogava com tanta felicidade e real talento que contava já um bom pecúlio”. Quando pequeno, Oliveira tivera desejo de ser frade ; “mas levado ao teatro, e assistindo à comedia do Pena, O noviço, o espetáculo do menino, vestido de frade, e correndo pela sala, a bradar : eu quero ser frade ! eu quero ser frade ! fez-lhe perder todo o gosto da profissão”. Mas não tinha mesmo vocação para frade. Ele mesmo confessa que se deu “tão bem com a vida do foro, com esta chicana da advocacia, que não é provável tivesse a vocação contemplativa”.

Ainda sobre o termo chicana, Rui Barbosa o utilizou por pelo menos 39 vezes.

Cita o Conselheiro que o Professor Carneiro o reputava galicismo (Gramática Filos, p. 433). Mas, diz Rui, Castilho Antonio várias vezes o empregou : “Vá promover já já, sem sombra de chicana” (Tartufo, p. 94) / “um é um chicaneiro, que principiou por fiel dos feitos” (Colóquios Aldeões, p. 382).

Em 1914, ano de muito trabalho legislativo, Rui faz uma intervenção no Senado criticando o governo que havia ignorado uma ordem de habeas corpus por ele obtida no Supremo. “A sentença do Supremo Tribunal era de notoriedade pública desde ontem de tarde. As folhas a publicaram, o Governo a soube por todos os telefones. Esta chicana não fica bem à autoridade suprema do Estado diante de uma magistratura como é a do Supremo Tribunal Federal.” (Vl. XLI, Tomo I)

No acervo do jornal O Estado de S. Paulo encontramos o termo citado inúmeras vezes, sobretudo em décadas passadas.

Em carta veiculada no jornal O Estado de S. Paulo de 1891, William Speers, superintendente da São Paulo Railway Company respondia ao advogado da Companhia Sorocabana, Joaquim de Almeida Leite Moraes, que tinha se ofendido com o uso que o inglês fez da palavra chicana. William, no entanto, mostra que foi Leite Moraes quem primeiro o acusou de chicaneiro. E finaliza que o “dr. Leite Moraes não tem o direito de atribuir à Companhia Ingleza a trapaça ou a cavilação, sem fazer injuria a ella, ou a mim como seu representante e sem expor-se a que se lhe atribua a cortezia com igual linguagem, imprópria de Calheiros”.

No Estadão de 29 de julho de 1918, comentando a obra de J. M. de Azevedo Marques (“Acções de despejo e alugueres de predio”), o matutino ensina que não há chicana que resista à energia de um juiz firme, como não juiz que se não faça enérgico quando se veja bem seguro da doutrina que sustenta. E diz mais o centenário jornal, diz que o mal dos nossos juízes é, por via de regra, a timidez intelectual e, às vezes, moral que os traz amarrados ao poste giratório da rotina, fazendo-os escravos cegos dos “julgados dos tribunais” da opinião dos doutores.

Em 4 de julho de 1936, n’O Estado de S. Paulo, Plínio Barreto comenta obras jurídicas, em especial “O dolo e o Direito Judiciário Civil”, de Oscar da Cunha. Ao falar desta, o jornalista assevera que “a chicana, qualquer que seja a sua exteriorização, é uma prática anormal, aberrativa dos princípios que presidem conduta honesta das partes no processo”. E, “no que se refere à protelação, a chicana é a mentira no processo”.

Em abril de 2006 (dia 24) o mesmo Estadão trazia editorial intitulado “O mensalão e a chicana jurídica”. Diz o matutino que “o grande número de recursos desloca as discussões para aspectos processuais. Com isso, os juízes enfrentam dificuldades para decidir as ações no mérito e os advogados se valem de medidas protelatórias para trancar os processos até sua prescrição, desmoralizando a Justiça.”

A Folha de S.Paulo também elenca dezenas de aparições do termo em seu acervo:

Em 21 de abril de 1929, ao comentar decisão do Tribunal de Justiça de SP, reconhecendo a vigência do art. 715 do Reg. 73 de 1850 (acerca da retenção indevida de autos), o matutino traz o júbilo dos causídicos: “Em uma sessão memorável pela avultada concorrência de profissionais, e pela importância dos debates que honram a elevada corporação judiciária, foi decidido que a chicana indecorosa da retenção de autos não pode florescer à sombra da justiça”.

Em 14 de março de 1933, em texto intitulado “A Caminho da Constituinte”, encontramos relato de palestra do dr. Jorge Americano, consultor da comissão de estudos constitucionais criada pelo Instituto de Engenharia. “O jovem advogado e livre docente da nossa tradicional Academia conquista o auditório às suas primeiras palavras. Fez uma palestra com simplicidade, e, sobretudo, com admirável clareza. Esperava-se uma conferência longa e estafante, e ouviu-se uma lição, atraente e leve. O orador não leu. Conversou com seu auditório. E ninguém teve tempo de consultar o relógio. O dr. Americano relata que o grande engenheiro que foi Bicalho costumava dizer que a engenharia é um pouco de bom senso com um pouco de matemática. O Direito, segundo se diz, é um pouco de bom senso... com um pouco de chicana.”

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