A 1ª câmara Cível do TJ/MS autorizou um transexual a alterar seu prenome de Hilário para Hillary antes de ser submetido ao processo cirúrgico para mudança de sexo. Ele aguarda na fila do SUS para realizar a cirurgia.
No recurso ao Tribunal, o apelante alegou que sentença recorrida violou os princípios da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana ao entender ser impossível juridicamente o pedido simplesmente porque não se submeteu à cirurgia para alteração de sexo. Isso porque, ele se sente e se porta como mulher, possui estereótipo feminino e apresenta-se na sociedade como mulher.
O desembargador Sérgio Fernandes Martins concordou com os argumentos. Para ele, a sentença confronta a jurisprudência dominante.
O magistrado salientou que ficou comprovado que o apelante há muitos anos se apresenta como mulher e possui estereótipo feminino, sendo conhecido no meio social em que vive como Hillary. Martins também ressaltou que os laudos médicos comprovam transexualidade.
E, desta forma, concluiu que se o autor se considera mulher e assim é visto pela sociedade e pela medicina, "não pode continuar nessa situação degradante e aviltante que afronta os mais relevantes princípios fundamentais da pessoa humana, em razão apenas e tão somente de uma deficiência do Estado, que ainda não possibilitou a conclusão do processo de mudança física de gênero".
Veja abaixo a íntegra da decisão._______
Decisão
Cuida-se de apelação cível interposta por H. D. S. em face da sentença que indeferiu, por impossibilidade jurídica do pedido, a inicial da ação declaratória cumulada com retificação de assentamento em registro civil, na qual requer a expedição de mandado de retificação ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de Fátima do Sul para constar em seu assento de nascimento o sexo feminino e a alteração do prenome para Hillary.
Assevera o recorrente, em apertada síntese, que (i) embora nascida e registrada com nome masculino, possui estereótipo e mente feminina; (ii) seu comportamento feminino é conhecido socialmente; (iii) o laudo médico de f. 41 não deixa dúvida que a apelante se identifica como sexo feminino; (iv) teve deferido pedido administrativo para alterar seu crachá de identificação funcional no Hospital Regional; (v) não há como negar que a apelante é mulher, ainda que biologicamente não tenha nascida assim e ainda que não tenha feito cirurgia de transgenitalização; (vi) ao entender ser impossível juridicamente o pedido da apelante simplesmente porque não se submeteu à cirurgia para alteração de sexo, a sentença recorrida violou os princípios da liberdade, igualdade e o da dignidade da pessoa humana, pois o apelante se sente e se porta como mulher, possui esteriótipo feminino, apresenta-se na sociedade como mulher e assim é vista pela sociedade; (vii) tem a liberdade de buscar melhor qualidade de vida para si, tendo respeitada a sua dignidade, devendo ser tratada sem discriminação alguma; e (viii) o nome Hilário é que representa uma inverdade, razão pela qual tem o apelante o direito de ver retificado seu assento de nascimento para mudar ao menos o seu prenome.
Requer, ao final, o provimento do recurso para, anulada a sentença recorrida, sejam os autos baixados para produção de provas e nova sentença ou, então, para que o pedido seja, com fulcro no artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil, desde logo acolhido para determinar a retificação do prenome do apelante em assentamento de nascimento para que conste Hillary.
A Procuradoria-Geral de Justiça opina pelo provimento do recurso “para o fim de, julgando-se procedente o pedido inicial nos termos do art. 515, §3º do Código de Processo Civil, seja determinada a alteração do prenome no assento de nascimento [...]”.
É o relatório. Decido.
Dou provimento de plano ao recurso
Verifico que a sentença recorrida encontra-se em manifesto confronto com a jurisprudência dominante, ofendendo à toda evidência o princípio da dignidade humana, razão pela qual, com fulcro no § 1º-A do artigo 557 do CPC, dou provimento de plano ao presente recurso.
Insta registrar, de início, que neste recurso o apelante restringiu seu pedido inicial, postulando, destarte, apenas a mudança do prenome e não mais o pedido de mudança de gênero, o qual, aliás, poderá ser novamente postulado, mormente após a conclusão do procedimento de transgenitalização.
Pois bem. Está devidamente comprovado nos autos que o apelante há muitos anos se apresenta como mulher e possui estereótipo feminino (f. 29), sendo conhecido no meio social em que vive como Hillary, conforme faz prova sua identificação funcional de servidor público estadual (f. 30), obtida, aliás, após fundamentado parecer da Procuradoria Jurídica da Fundação de Saúde de Mato Grosso do Sul (f. 42-43).
Ademais, os laudos médicos juntados aos autos comprovam sua transexualidade, atestando que o apelante, por indicação médica, toma hormônios femininos, confirmando que foi submetido a cirurgia de orquiectomia bilateral (remoção de ambos os testículos) e, ainda, reconhecendo a necessidade proeminente de realização da cirurgia de transgenitalização, a qual somente não foi realizada até agora por culpa do Estado, porquanto o apelante encontra-se aguardando a realização da referida cirurgia na fila do SUS (f. 39-41).
Nesse contexto, portanto, tenho que o simples fato de a cirurgia de mudança de sexo ainda não ter sido realizada - fato este, reitero, não imputável ao recorrente e sim às deficiências do Sistema de Saúde Público - não torna, no conteúdo do que asseverou o magistrado singular, juridicamente impossível o pedido formulado pelo autor, ora apelante, especialmente no que se refere à mudança de prenome.
Ao contrário, as provas existentes nos autos são suficientes para afirmar que a postergação do acolhimento do pedido de mudança de nome nos assentos de nascimento configura, como dito, flagrante violação ao princípio da dignidade humana, pois os laudos médicos acima referidos comprovam que o apelante, de fato, considera-se mulher, tem feições femininas e como mulher é vista pela sociedade, sendo evidente, destarte, que a manutenção do prenome masculino em seus documentos causa-lhe sérios inconvenientes que, de fato, diminuem a sua qualidade de vida e vêm servindo como potencializador de odiosa discriminação.
Por oportuno, registro que há muito a doutrina especializada vem salientando que:
o conceito de sexo não pode ser identificado apenas pelo aspecto anatômico, uma vez que, para a Medicina Legal, não se pode mais considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação plurivetorial, resultante de fatores genéticos, somáticos, psicológicos e sociais. A Psicologia define a sexualidade humana como uma combinação de vários elementos: o sexo biológico (o sexo que se tem), as pessoas por quem se sente desejo (a orientação sexual), a identidade sexual (quem se acha que é) e o comportamento ou papel sexual. Como os fatos acabam se impondo ao Direito, a rigidez do registro identificatório da identidade sexual não pode deixar de curvar-se à pluridade psicosomática do ser humano.
No caso, os médicos reconhecem que, psiquicamente, o autor é uma mulher, sendo que a ingestão de hormônios femininos e a cirurgia de retirada dos testículos já o tornaram, fisicamente, muito mais mulher do que homem.
Ora, se o autor se considera mulher e assim é visto pela sociedade e pela medicina, não pode continuar nessa situação degradante e aviltante que afronta os mais relevantes princípios fundamentais da pessoa humana, em razão apenas e tão somente de uma deficiência do Estado, que ainda não possibilitou a conclusão do processo de mudança física de gênero.
Aliás, ao relatar a Apelação Cível n. 2003.008210-7 – a respeito de pedido de indenização por danos morais em caso de discriminação de homossexual impedido de entrar no Clube Querência Gaúcha -, mantive a condenação da agremiação em danos morais e tive a oportunidade de assentar, inclusive, que:
A Constituição Federal consagra como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa (art. 1º, III) e apregoa entre seus objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), que promova o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Assim, o texto constitucional veda atos discriminórios e preconceituosos, sendo certo que, se isto importar em dano, pode ser objeto de reparação.
Por outro lado, não obstante esteja em vigor a regra de imutabilidade do prenome, consoante dispõe o artigo 58 da Lei n. 6.015/73, o que importa, no caso concreto, é adequar-se o direito aos novos fatos, à evolução, assegurando-se ao apelante a adequação de seu nome com a sua personalidade, tal como já decidido em caso similar pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
'É preciso, inicialmente, dizer que homem e mulher pertencem a raça humana. Ninguém é superior. Sexo é uma contingência. Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente no campo sexual, hão de ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros. O direito a identidade pessoal é um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A identidade pessoal é a maneira de ser, como a pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica, e o direito que tem todo o sujeito de ser ele mesmo. A identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes e complexos compreendidos dentro da identidade pessoal, forma-se em estreita conexão com uma pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da personalidade etc., para dizer assim, ao final: se bem que não é ampla nem rica a doutrina jurídica sobre o particular, é possível comprovar que a temática não tem sido alienada para o direito vivo, quer dizer para a jurisprudência comparada. Com efeito em direito vivo tem sido buscado e correspondido e atendido pelos juizes na falta de disposições legais e expressa. No brasil, aí esta o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil a permitir a equidade e a busca da justiça. Por esses motivos é de ser deferido o pedido de retificação do registro civil para alteração de nome e de sexo. (resumo) Caso Rafaela' (AP nº 593110547, Terceira Câmara Cível, TJRS, Relator: Luiz Gonzaga Pila Hofmeister, julgado em 10/03/1994).
Desse modo, nada obstante o atraso na realização da cirurgia de mudança de sexo, que, reitero, somente ainda não foi realizada por deficiência do sistema público de saúde, as provas existentes nos autos confirmam que o autor se crê mulher e como tal é visto pela sociedade, fato que justifica plenamente a excepcional adequação do prenome.
No mesmo sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. ALTERAÇÃO DO NOME E AVERBAÇÃO NO REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração do nome. Enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, o nome assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, atua como uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70013909874, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 05/04/2006)
APELAÇÃO. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALISMO.TRAVESTISMO. ALTERAÇÃO DE PRENOME INDEPENDENTEMENTE DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL E À DIGNIDADE. A demonstração de que as características físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta como mulher, não estão em conformidade com as características que o seu nome masculino representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a sua alteração. A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade social. DERAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70030504070, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 29/10/2009)
REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PRENOME E SEXO. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. AVERBAÇÃO À MARGEM. 1. O fato da pessoa ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão, já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. 2. Diante das condições peculiares da pessoa, o seu nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo, o que justifica plenamente a alteração. 3. Deve ser averbado que houve determinação judicial modificando o registro, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se, assim, a publicidade dos registros e a intimidade do requerente. 4. Assim, nenhuma informação ou certidão poderá ser dada a terceiros, relativamente à alterações nas certidões de registro civil, salvo ao próprio interessado ou no atendimento de requisição judicial. Recurso provido. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70018911594, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 25/04/2007)
Por fim, registro que, se fizermos o difícil - mas necessário - exercício mental de superar influências religiosas, nada há de mal para a sociedade no seu todo em atender o pedido do apelante, enquanto, individualmente, somente o recorrente poderá dimensionar a grandiosidade da alegria, bem como as novas perspectivas que a presente decisão certamente lhe trará.
Desse modo, com fulcro no § 1º do artigo 557 do CPC e de acordo com o parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, dou provimento de plano ao presente recurso para tornar insubsistente a sentença recorrida, bem como para, nos termos do que dispõe o § 3º do artigo 515 do Código de Processo Civil, julgar procedente o pedido inicial com o fim de determinar a alteração do prenome do recorrente em seu assento de nascimento, no qual deve passar a constar Hillary ao invés de Hilário.
P.R.I.C-se.
Campo Grande, 27 de abril de 2012.
Des. Sérgio Fernandes Martins
Relator