Reparação
TRF condena União por morte do professor Norberto Nehring durante ditadura militar
No julgamento de recurso da União, os desembargadores mantiveram condenação por danos morais e refutaram a indenização por danos materiais. Como nos meses anteriores a sua morte Norberto vivia na clandestinidade, sem trabalho e renda, julgaram não ser cabível a segunda indenização.
O advogado Belisário dos Santos Junior representou Maria Lygia Quartim de Moraes e Marta Nehring, viúva e filha de Norberto. O causídico é sócio do Rubens Naves, Santos Jr., Hesketh - Escritórios Associados de Advocacia, que atua pelas autoras desde a década de 90.
A possibilidade de um recurso em relação à indenização por danos materiais será avaliada, informa o advogado, uma vez que têm sido pagas reparações desse tipo até em casos de morte de crianças, com base na suposição de que poderiam vir a colaborar com o sustento de suas famílias: "Se essa interpretação se aplica a pessoas sem qualificação profissional, o que dizer de um economista que dava aulas na USP e trabalhava em grandes empresas?"
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Processo : 0048228-20.2000.4.03.6100/SP
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0048228-20.2000.4.03.6100/SP
2000.61.00.048228-7/SP
RELATOR : Desembargador Federal MÁRCIO MORAES
APELANTE : Uniao Federal
ADVOGADO : GUSTAVO HENRIQUE PINHEIRO DE AMORIM e outro
APELADO : MARIA LYGIA QUARTIM DE MORAES e outro
ADVOGADO : RUBENS NAVES e outro
CODINOME : MARIA LYGIA QUARTIN DE MORAES NEHRING
APELADO : MARTA MORAES NEHRING
ADVOGADO : RUBENS NAVES e outro
REMETENTE : JUIZO FEDERAL DA 23 VARA SAO PAULO Sec Jud SP
RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Juiz Federal Convocado RUBENS CALIXTO (Relator): Trata-se de ação na qual as autoras objetivam indenização por danos morais e prejuízos patrimoniais oriundos do falecimento de Norberto Nehring, do qual são viúva e filha, aos 25 de abril de 1970, em decorrência de abusos cometidos na vigência do Governo Militar, sob a acusação de participar de grupos de resistência ao regime militar.
A r. sentença de Primeiro Grau julgou procedente o pedido, entendendo que a indenização por dano moral é cabível independentemente de existir ou não qualquer prova de eventual prejuízo concreto decorrente de ato lesivo, no caso, as torturas e perseguições políticas, fixando-a em R$ 200.000,00. Por sua vez, os danos materiais também restaram reconhecidos, vez que as provas dispostas apontam a notável qualificação e capacidade profissional do de cujus, condição esta que lhe proporcionaria muitas oportunidades no mercado de trabalho, cujos frutos reverteriam a favor das autoras, fixando o valor de tal indenização também em R$ 200.000,00, perfazendo, assim, o montante de R$ 400.000,00 (fls. 640/658).
Apelou a União (fls. 661/677) aduzindo, em síntese, que além das autoras não possuírem interesse de agir, o direito de ação das mesmas estaria prescrito em decorrência do lapso temporal superior a cinco anos, e que os pressupostos da pretensão indenizatória estariam ausentes, ante a inexistência de prova cabal. Alegou, ainda, que a fixação dos juros de mora, fixados em 1% ao mês, não deve prosperar, visto que há lei expressa que determina que tais juros, nas condenações impostas à Fazenda Pública para pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados públicos, não podem ultrapassar o percentual de 6% ao ano.
Houve contrarrazões à apelação (fls. 684/707).
As autoras interpuseram apelação adesiva, alegando, em síntese, que a r. sentença fixou a verba de sucumbência em percentual de 10% sobre o valor da causa e não sobre o valor da condenação, o que acarretou sua fixação no valor ínfimo de R$ 1.000,00. Pretende, desta forma, que seja a verba honorária majorada, a fim de que seu valor seja condizente com todo o trabalho desenvolvido por seus patronos (fls. 709/714).
Houve contrarrazões à apelação adesiva (fls. 728/734).
Opinou o Ministério Público Federal, por sua Procuradoria Regional, pelo desprovimento do recurso da União Federal e da remessa oficial, e pelo não conhecimento do recurso adesivo interposto pelas autoras, devendo a União Federal ser condenada ao pagamento de indenização por danos morais e materiais no valor de R$ 400.000,00 (fls. 868/886).
É o Relatório.
VOTO
O Exmo. Sr. Juiz Federal Convocado RUBENS CALIXTO (Relator): Em caráter prefacial, cumpre afastar as preliminares de ausência de interesse de agir dado o fato de que a reparação especial prevista na Lei 9.140/95, não impede que o interessado busque indenização sob outro fundamento jurídico.
Por outro lado, deve ser afastada a alegação de prescrição da ação, visto que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido da imprescritibilidade da ação para reparação por danos morais decorrentes de ofensa aos direitos humanos, incluindo aqueles perpetrados durante o ciclo do Regime Militar, conforme denotam os seguintes arestos:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PRISÃO ILEGAL E TORTURA DURANTE O PERÍODO MILITAR. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL PREVISTA NO ART. 1º DO DECRETO 20.910/32. NÃO-OCORRÊNCIA. IMPRESCRITIBILIDADE DE PRETENSÃO INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DURANTE O PERÍODO DA DITADURA MILITAR. RECURSO INCAPAZ DE INFIRMAR OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. São imprescritíveis as ações de reparação de dano ajuizadas em decorrência de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, durante o Regime Militar, afastando, por conseguinte, a prescrição qüinqüenal prevista no art. 1º do Decreto 20.910/32. Isso, porque as referidas ações referem-se a período em que a ordem jurídica foi desconsiderada, com legislação de exceção, havendo, sem dúvida, incontáveis abusos e violações dos direitos fundamentais, mormente do direito à dignidade da pessoa humana.
2. "Não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade" (REsp 816.209/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 3.9.2007).
3. "No que diz respeito à prescrição, já pontuou esta Corte que a prescrição qüinqüenal prevista no art. 1º do Decreto-Lei n. 20.910/32 não se aplica aos danos morais decorrentes de violação de direitos da personalidade, que são imprescritíveis, máxime quando se fala da época do Regime Militar, quando os jurisdicionados não podiam buscar a contento as suas pretensões" (REsp 1.002.009/PE, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 21.2.2008).
4. Agravo regimental desprovido.
(STJ - Primeira Turma - AgRg no Ag 970753 / MG - Relator Ministra Denise Arruda - DJU 12.11.08)
AGRAVO REGIMENTAL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS. TORTURA. REGIME MILITAR. IMPRESCRITIBILIDADE.
1. A Segunda Turma desta Corte Superior, em recente julgamento, ratificou seu posicionamento no sentido da imprescritibilidade dos danos morais advindos de tortura no regime militar (Resp 1.002.009/PE, Rel. Min. Humberto Martins, DJU 21.2.2008), motivo pelo qual a jurisprudência neste órgão fracionário considera-se pacífica. Não-ocorrência de violação ao art. 557 do CPC. Via inadequada para fazer valer suposta divergência entre as Turmas que compõem a Primeira Seção.
(...)
5. Agravo regimental não-provido.
(STJ - Segunda Turma - AgRg no REsp 970697 / MG - Relator Ministro Mauro Campbell Marques - DJe 05.11.08)
As autoras pugnam pela condenação da União ao pagamento de indenização por danos morais que experimentaram em decorrência da morte de Norberto Nhering, militante político da Aliança Libertadora Nacional, que teria sido perseguido, preso, torturado e assassinado, por discordar do governo que comandava o País nos anos conhecidos como "Ditadura Militar".
Inicialmente é de se esclarecer que a morte de Norberto em decorrência das torturas que lhe foram infligidas, quando esteve preso no conhecido e temido DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), vinculado à Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, no mês de abril de 1970, foi reconhecida pela Comissão Especial instituída pelo artigo 4º da Lei nº 9.140/95 conforme demonstram cópia do Diário Oficial da União de fls. 160 e relatório/voto de fls. 518/524.
Apurou-se (e os documentos acostados nestes autos comprovam) que o falecido era membro da Aliança Libertadora Nacional e que, em razão de sua militância política, foi preso em janeiro de 1969. Acuado, passou a viver na clandestinidade, tendo se refugiado no exterior com a família. Posteriormente, tendo retornado ao País, em abril de 1970, foi perseguido, preso e torturado, o que resultou em seu óbito.
Embora as reais circunstâncias da morte do marido e pai das autoras não sejam muito claras, a cronologia dos acontecimentos e a documentação acostada aos autos conduzem à conclusão acima expendida.
Com efeito, o falecido apareceu morto em um quarto de hotel em São Paulo e junto ao seu corpo foi encontrada uma caderneta, que pode ser considerada uma espécie de diário, na qual o falecido registrou seus últimos momentos antes da prisão. A cópia de tal documento se encontra encartada às fls. 511/517 dos autos.
O conteúdo de referida anotação é esclarecedor.
Narra o autor, entre outras coisas, que ao retornar ao Brasil encontrou um conhecido no aeroporto, o que o deixou receoso. Posteriormente terminou por errar seu nome na portaria do hotel, pelo que seguiu para Niterói e a partir daí começou a ser perseguido. Foi para Campos, Vitória, Belo Horizonte, numa peregrinação que durou 06 (seis) dias. Sempre seguido. Com o estreitamento do cerco decidiu vir para São Paulo. Temia que seu fim era iminente. Chegou a escrever: "estou frito". Após relatar a perseguição da qual estava sendo vítima, o falecido declara seu amor pela esposa e pela filha e se despede das duas pedindo perdão "por morrer ou ir preso (e eventualmente morrer lá)".
Cabe registrar que na caderneta constava orientação para que a mesma fosse entregue no endereço que declinava (local de trabalho de sua mãe) sendo que referido relatório se encontrava assinado pelo falecido, com seu nome verdadeiro.
A caderneta só foi entregue à família 3 (três) meses após o ocorrido, sendo certo que o corpo do falecido foi enterrado com o codinome que ele usava, constando em seu atestado de óbito (fls. 139), como causa da morte, asfixia mecânica. Sua efetiva identificação somente foi possível com o exame da arcada dentária, tempos depois.
Também consta documento comprobatório de que a 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo determinou a retificação do Atestado de Óbito de Norberto, para que no mesmo constasse que o falecimento se deu por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas (fls. 170).
É de se registrar, ainda, a declaração firmada por Paulo de Tarso Venceslau, cuja cópia se encontra às fls. 154 dos autos, e que tem o seguinte teor:
"(...)Foi preso político de 1º de outubro de 1969 a 21 de dezembro de 1974. Foi contemporâneo de faculdade, na Universidade de São Paulo, de Norberto Nehring. No primeiro semestre de 1970, não sabe precisar se no final de abril ou no início de maio, era voz corrente entre os policiais que o DEOPS paulista havia prendido o economista Norberto Nehring e que o teria eliminado num dos hotéis da chamada "boca do lixo", nas proximidades do próprio DEOPS. Segundo a versão dos policiais do próprio DEOPS, que muitas vezes escoltavam os presos para depoimentos ou interrogatórios, Norberto Nehring teria sido preso em um aeroporto logo após sua chegada ao Brasil, provavelmente da Checoslováquia. O fato lhe chamou a atenção por tratar de uma pessoa que o mesmo conhecia da faculdade de economia da USP, e, por isso mesmo, despertara-lhe particular interesse em registrar o fato.(...)"
De maneira que o desenrolar dos acontecimentos leva à conclusão de que o marido e pai das autoras foi a óbito em decorrências das torturas a que foi submetido, ou, como consta no documento de fls. 137, em razão de asfixia mecânica por afogamento.
Diante disso, fácil imaginar o sofrimento emocional pelo qual passaram as autoras, sem qualquer informação acerca do paradeiro de Norberto por longos três meses.
Também é possível imaginar o sofrimento que experimentaram ao descobrir o destino que o mesmo tivera; a dor ao ler a desesperada correspondência.
Não se pode olvidar, ademais, que Norberto era economista formado. No documento de fls. 114, seu signatário, Luiz Artaud Berther, Professor da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo, recomendava o falecido para uma bolsa de estudos oferecida pelo Serviço Cultural do Consulado da França, descrevendo-o como "pessoa excepcionalmente dedicada aos estudos da macro-economia e do planejamento econômico", consignando, ainda, que o considerava "um excelente e magnífico candidato a uma das bolsas oferecidas".
Portanto, a morte prematura do marido e pai privou as autoras de uma vida em comum com alguém intelectualmente privilegiado, além de certamente ter reflexos financeiros na vida de ambas a justificar a condenação da União a lhes pagar indenização por danos morais.
A propósito:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. REGIME MILITAR. DISSIDENTE POLÍTICO PRESO NA ÉPOCA DO REGIME MILITAR. TORTURA. DANO MORAL. FATO NOTÓRIO. NEXO CAUSAL. NÃO INCIDÊNCIA DA PRESCRIÇÃO QUINQUENAL - ART. 1º DECRETO 20.910/1932. IMPRESCRITIBILIDADE.
1. A dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, experimenta os mais expressivos atentados quando engendradas a tortura e a morte, máxime por delito de opinião.
2. Sob esse ângulo, dispõe a Constituição Federal: "Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana;" "Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;
(...) III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;" 3. Destarte, o egrégio STF assentou que: "...o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. - A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo."(HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJ 10/08/2001)
4. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento.
5. Consectariamente, não há falar em prescrição da ação que visa implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade.
6. Outrossim, a Lei 9.140/95, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana, perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem estipular-lhe prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do Código Civil no afã de superar a reparação de atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada no respeito à integridade física do ser humano.
7. Ação ordinária proposta com objetivo de reconhecimento de danos materiais e morais, em face do Estado, pela prática de atos ilegítimos decorrentes de perseguições políticas perpetradas por ocasião do golpe militar de 1964, que culminaram na prisão do pai dos autores, bem como na sua tortura, cujas conseqüências alega irreparáveis.
8. A prova inequívoca da perseguição política à vítima e de imposição, por via oblíqua, de sobrevivência clandestina, atentando contra a dignidade da pessoa humana.
9. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Precedentes.
10. Adjuntem-se à lei interna, as inúmeras convenções internacionais firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU, e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a Convenção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
11. A dignidade humana desprezada, in casu, decorreu do fato de ter sido o autor torturado revelando flagrante violação a um dos mais singulares direitos humanos, os quais, segundo os tratadistas, são inatos, universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis.
12. A exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos".
13. A Constituição federal funda-se na premissa de que a dignidade da pessoa humana é inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual.
14. O egrégio STJ, em oportunidades ímpares de criação jurisprudencial, vaticinou:
"RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRISÃO, TORTURA E MORTE DO PAI E MARIDO DAS RECORRIDAS. REGIME MILITAR. ALEGADA PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. LEI N. 9.140/95. RECONHECIMENTO OFICIAL DO FALECIMENTO, PELA COMISSÃO ESPECIAL DE DESAPARECIDOS POLÍTICOS, EM 1996. DIES A QUO PARA A CONTAGEM DO PRAZO PRESCRICIONAL.
A Lei n. 9.140, de 04.12.95, reabriu o prazo para investigação, e conseqüente reconhecimento de mortes decorrentes de perseguição política no período de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de 1998, para possibilitar tanto os registros de óbito dessas pessoas como as indenizações para reparar os danos causados pelo Estado às pessoas perseguidas, ou ao seu cônjuge, companheiro ou companheira, descendentes, ascendentes ou colaterais até o quarto grau.
omissis ... em se tratando de lesão à integridade física, deve-se entender que esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos patrimoniais reflexos e dependentes.
'O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática' (REsp n. 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, in DJ de 17.02.2003).
Recurso especial não conhecido." (REsp 449.000/PE, 2ª T., Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 3/06/2003) 15. Recurso especial provido para afastar in casu a aplicação da norma inserta no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32, determinando o retorno dos autos à instância de origem, para que dê prosseguimento ao feito.
(REsp 1165986/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/11/2010, DJe 04/02/2011)
É certo que não se pode mensurar, em termos monetários, a importância da vítima para sua família, já que não há dinheiro que supra a ausência do ente querido.
De todo modo, na fixação da indenização por dano moral deve-se adotar a ponderação recomendada pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 243093/RJ, em cujo acórdão encontramos a seguinte passagem:
"(...) o arbitramento seja feito com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível socioeconômico do autor e, ainda, ao porte econômico do réu, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e à peculiaridade de cada caso."
Em face disso, penso que a indenização dos danos morais deve ser fixada em valores relativamente altos.
Assim, considerando o princípio da razoabilidade e tendo como parâmetro decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (Resp 41614/SP, Relator Min. Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, data de julgamento 21/10/1999. DJ 11/12/2000 p. 205), entendo razoável os valores fixados na sentença de Primeiro Grau, pelo que nego provimento ao recurso da União.
Também não merece reparo a sentença na parte que fixou os juros de mora em 1% ao mês, porquanto se trata de ação de natureza indenizatória e não de pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados públicos, como alega a União.
Por outro lado, a sentença merece reforma na parte que condenou a União ao pagamento de indenização por danos materiais, visto que não restou efetivamente comprovado qualquer dano emergente ou lucro cessante em face do óbito do marido e pai das autoras.
Cabe consignar que embora o mesmo tivesse um currículo promissor, não restou provado nos autos que à época de sua prisão se encontrava empregado, a demonstrar a existência de efetivo prejuízo material à família do mesmo.
O que transparece dos autos é que o "de cujus", mesmo sendo detentor de boas qualidades intelectuais, estava se dedicando exclusivamente às atividades políticas.
Cabe analisar, agora, o recurso interposto pela parte autora que discordou da verba honorária a que foi condenada a União, a qual restou fixada em 10% do valor da causa.
Pelo princípio da causalidade, aquele que deu causa à propositura da demanda deve responder pelos consectários legais.
Cabível, portanto, a condenação da União em honorários advocatícios, já que as autoras tiveram que se valer da contratação de advogados para terem seu direito reconhecido.
No entanto, a sentença merece parcial reforma no que se refere ao quantum fixado.
O caso em análise é de ser considerado complexo, de prova fática, pelo que o valor da condenação - 10% do valor da causa - se mostra irrisório, mormente porque sequer se determinou a correção deste.
A propósito:
PROCESSUAL CIVIL. HONORÁRIOS. REEXAME. MONTANTE IRRISÓRIO (R$ 500, 00). POSSIBILIDADE.
1. Está consolidado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que a revisão da condenação em honorários, salvo nas hipóteses de condenações irrisórias ou excessivas, demanda o revolvimento das circunstâncias fáticas do caso.
2. O caso concreto se subsume às hipóteses excepcionais admitidas por esta Corte para a revisão da condenação em honorários, qual seja, a existência de montante irrisório - in casu, a verba foi fixada em R$ 500,00. Nessas hipóteses, afasta-se a vedação contida na Súmula n. 7/STJ.
3. Em consequência, considera-se razoável fixar o valor dos honorários em R$ 1.500,00 (hum mil e quinhentos reais).
4. Recurso especial provido.
(REsp 1218985/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/02/2011, DJe 14/02/2011)
Assim sendo, o caso é de reforma parcial da sentença, para excluir a condenação da União ao pagamento de indenização por danos materiais e fixar os honorários a serem suportados pela União em 10% sobre o valor da condenação, devidamente corrigido, a teor do disposto no artigo 20, § 3º, do CPC.
Posto isto, meu voto dá parcial provimento à apelação da União e à remessa oficial e dá provimento à apelação das autoras para reformar parcialmente a sentença de Primeiro Grau nos termos da fundamentação supra.
É como voto.
RUBENS CALIXTO
Juiz Federal Convocado
EMENTA
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PRISÃO, TORTURA E MORTE DO PAI E MARIDO DAS AUTORAS. REGIME MILITAR. ALEGADA PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. LEI N. 9.140/95. RECONHECIMENTO OFICIAL DO FALECIMENTO PELA COMISSÃO ESPECIAL DE DESAPARECIDOS POLÍTICOS. DEVER DE INDENIZAR.
1. Não há que se falar em ausência de interesse de agir dado o fato de que a reparação especial prevista na Lei 9.140/95, não impede que o interessado busque indenização sob outro fundamento jurídico.
2. Também deve ser afastada a alegação de prescrição da ação, visto que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido da imprescritibilidade da ação para reparação por danos morais decorrentes de ofensa aos direitos humanos, incluindo aqueles perpetrados durante o ciclo do Regime Militar.
3. A documentação nos autos comprova que o falecido, em razão de sua militância política, foi perseguido, preso e torturado, o que resultou em seu óbito.
4. A morte do pai e marido das autoras em decorrência das torturas que lhe foram infligidas quando esteve preso no conhecido e temido DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), no mês de abril de 1970, foi reconhecida pela Comissão Especial instituída pelo artigo 4º da Lei nº 9.140/95.
5. A morte prematura do marido e pai privou as autoras de uma vida em comum com alguém intelectualmente privilegiado, além de certamente ter reflexos financeiros na vida de ambas a justificar a condenação da União a lhes pagar indenização por danos morais.
6. Considerando o princípio da razoabilidade e tendo como parâmetro decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (Resp 41614/SP, Relator Min. Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, data de julgamento 21/10/1999. DJ 11/12/2000 p. 205), entendo razoável os valores fixados na sentença de Primeiro Grau a título de danos morais.
7. Em que pesem as qualidades intelectuais da vítima, o que transparece dos autos é que estava se dedicando exclusivamente às atividades políticas, de modo a não ficar demonstrada a ocorrência de danos emergentes e lucros cessantes, para fim indenizatório de danos materiais.
8. Apelação da União e remessa oficial que se dá parcial provimento.
9. Apelação da parte autora provida.
10. Sentença parcialmente reformada para elevar o valor fixado a título de verba honorária a ser suportada pela União e para excluir a indenização por danos materiais.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação da União e à remessa oficial e dar provimento à apelação das autoras, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
São Paulo, 01 de março de 2012.
RUBENS CALIXTO
Juiz Federal Convocado
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