O juiz de Direito Dimitrios Zarvos Varellis, da 11ª vara Cível de SP, determinou que o cirurgião plástico Mario Warde Filho e a filha dele sejam incluídos como dependentes do médico infectologista Ricardo Tapajós, sócio do clube Club Athletico Paulistano.
Em agosto de 2010, o Conselho Deliberativo do Paulistano não acolheu pedido do sócio que queria ter como co-titular o companheiro. O clube que aceita um casal, mesmo não casado no papel, tenha título dependente, não permitiu que isso acontecesse com casais do mesmo sexo.
Em outubro do mesmo ano, a Comissão Jurídica do Clube elaborou um parecer favorável ao pedido do sócio. O texto, assinado pelo jurista Euclides Benedito de Oliveira, traz que "os pontos distintivos das uniões de cunho afetivo - familiar, em especial a união estável, conquanto não haja previsão legal específica ou estatutária de determinada instituição particular, abona a tutela jurídica ao ente familiar no seu mais alargado conceito, de modo atender com efetividade aos anseios de garantia do bem-estar da comunidade social que se instale a partir do relacionamento humano".
Mesmo assim, o pedido de Ricardo não foi atendido e ele ingressou com medida judicial contra o clube. O magistrado Dimitrios Zarvos Varellis julgou a ação procedente.
Os advogados João Ricardo Brandão Aguirre e Fabio Simoes Abrao representaram os interesses do sócio no caso.
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Processo: 583.00.2011.132644-6
Veja abaixo a íntegra da decisão.
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Vistos.
RICARDO TAPAJÓS MARTINS COELHO PEREIRA, devidamente qualificado nos autos, propôs a presente AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER em face de CLUBE ATHLÉTICO PAULISTANO, alegando, em síntese, viver em união estável com Mário Jorge Warde Filho e ter tentado incluí-lo junto com sua filha, Mariana Francischini Warde, como dependentes em seu título familiar do clube réu.
Entretanto, seu pedido foi indeferido.
Após sustentar o direito que entendia aplicável ao caso, requereu a antecipação dos efeitos da tutela para que o réu fosse obrigado a incluí-los como dependentes do título familiar, e a procedência da ação com a confirmação da antecipação pretendida. Com a inicial vieram documentos. A antecipação dos efeitos da tutela foi indeferida.
Devidamente citado, o réu apresentou contestação acompanhada de documentos, na qual argüiu carência de ação por falta de interesse processual. Quanto ao mérito, sustentou a impossibilidade da inclusão, conforme artigo 21, §2º, de seu estatuto. Pleiteou a improcedência da ação.
A réplica veio aos autos.
É o relatório.
Fundamento e decido.
A ação comporta julgamento antecipado nos termos do artigo 330, I, do Código de Processo Civil, uma vez que, sendo de fato e de direito a questão de mérito, não há necessidade da produção de outras provas em Juízo. A preliminar de carência de ação fica rejeitada, na medida exata em que não existe a falta de interesse processual referida pelo réu em sua contestação.
O interesse processual é aquele que a parte tem ao ajuizamento da ação na qual, pelo meio processual adequado, busca uma prestação jurisdicional que, em tese, lhe é útil e necessária. É evidente que, no caso dos autos, o requerente possui o interesse processual ao ajuizamento desta ação, na medida exata em que o pedido por ele formulado na esfera administrativa foi indeferido por decisão proferida pelo Conselho Deliberativo do réu, decisão esta sem possibilidade de recurso, como se observa as fls.81.
Observe-se, ainda, que a discussão sobre o acerto, ou não, da referida decisão proferida pelo Conselho Deliberativo do réu não encontra qualquer espaço na preliminar argüida, porque tema próprio do mérito da ação.
Por fim, é imperioso ressaltar que a necessidade de esgotamento da via administrativa à modificação do estatuto do clube pelo autor de forma prévia ao ajuizamento desta ação, tal qual referida em preliminar de contestação, não existe. Tal reconhecimento decorre de um aspecto de natureza estritamente jurídica, a saber, a interpretação do Areópago Supremo Tribunal Federal aos artigos 226, § 3º, da Constituição Federal, e 1.723, “caput”, do Código Civil, ainda que esta interpretação tenha sido consubstanciada no julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 – Rio de Janeiro, ocorrido quando já ajuizada esta ação. Quanto ao mérito, a ação é procedente. A negativa administrativa ao pedido formulado pelo requerente, por parte do Conselho Deliberativo do réu, baseada no parágrafo segundo do artigo 21 do estatuto do clube (fls.81), não mais se sustenta após a interpretação do Areópago Supremo Tribunal Federal aos artigos 226, § 3º, da Constituição Federal, e 1.723, “caput”, do Código Civil, ainda que esta interpretação tenha sido consubstanciada no julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 – Rio de Janeiro, ocorrido quando já ajuizada esta ação. O artigo 21, “caput”, e seu § 1º, do estatuto do réu, dizem que, “in verbis”:
“Artigo 21 – A classe Familiar é representada pelo associado e seus dependentes. São considerados dependentes da família:
§ 1º - O cônjuge, o (a) companheiro (a) em união estável, nos termos dos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, os filhos e enteados menores de dezoito anos”.Pois bem. Como dito acima, após a definitiva interpretação do Areópago Supremo Tribunal Federal aos artigos 226, § 3º, da Constituição Federal, e 1.723, “caput”, do Código Civil, consubstanciada no julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 – Rio de Janeiro, a entidade familiar pode ser constituída da união estável entre pessoas do mesmo sexo, o que torna letra morta a parte inicial do parágrafo segundo do artigo 21 do estatuto do clube, que tem a seguinte redação, “in verbis”:
“§ 2º - A união estável entre o homem e a mulher não impedidos de contrair matrimônio, nos termos da lei civil, é reconhecida como entidade familiar, comprovada com a apresentação da escritura pública e demais meios de prova”.
Confira-se a ementa do julgamento proferido pelo Areópago Supremo Tribunal Federal na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 – Rio de Janeiro, “in verbis”:
“1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO.
Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir "interpretação conforme à Constituição" ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação.
2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA.
O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de "promover o bem de todos". Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana "norma geral negativa", segundo a qual "o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido".
Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da "dignidade da pessoa humana": direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual.
O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.
3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO "FAMÍLIA" NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA.O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos.
A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão "família", não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica.
Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por "intimidade e vida privada" (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família.
Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes.
Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.
4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE "ENTIDADE FAMILIAR" E "FAMÍLIA".
A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas.
Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969.
Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia "entidade familiar", não pretendeu diferenciá-la da "família". Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado "entidade familiar" como sinônimo perfeito de família.
A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice.
Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem "do regime e dos princípios por ela adotados", verbis: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO.
Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição.
6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA "INTERPRETAÇÃO CONFORME"). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES.
Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de "interpretação conforme à Constituição". Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (grifos nossos).
Por fim, é bom observar não haver nos autos questionamento algum do requerido em relação à união estável referida em inicial, que, de resto, foi plenamente comprovada pelo autor com os documentos que instruem a inicial.
Ante o exposto, e de tudo o mais que dos autos consta, julgo procedente a presente ação determinando ao réu a inclusão de Mário Jorge Warde Filho e de sua filha Mariana Francischini Warde como dependentes do requerente em seu título de classe familiar do clube.
Condeno o réu ao pagamento das custas e despesas processuais, devidamente atualizadas a partir do desembolso pelo autor, e de honorários advocatícios que arbitro em R$ 1.500,00, o que faço com amparo no artigo 20, § 4º, do Código de Processo Civil.
P.R.I.C São Paulo, 15 de fevereiro de 2.012.
MITRIOS ZARVOS VARELLIS
Juiz de Direito
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