Chave de ouro
Luís Roberto Barroso encerra Conferência da OAB com 10 propostas para o país
Um dos mais importantes constitucionalistas do país, o advogado Luís Roberto Barroso (Luís Roberto Barroso & Associados) apresentou hoje, 24, ao fazer a palestra de encerramento da 21ª Conferência Nacional dos Advogados, um decálogo de propostas para o país nos próximos dez anos, "uma jornada em busca da igualdade de oportunidades, da vida boa e da boa-fé objetiva", como ele sintetizou. Tendo a democracia como premissa, o desenvolvimento como meio e a dignidade humana como fim, Barroso elencou audaciosas propostas para o Judiciário, o Executivo e a sociedade brasileira.
Veja abaixo o discurso na íntegra.
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DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E DIGNIDADE HUMANA:
UMA AGENDA PARA OS PRÓXIMOS DEZ ANOS1
LUÍS ROBERTO BARROSO2
I. INTRODUÇÃO
Eu tenho muito prazer e muita honra de estar aqui para fazer a conferência magna de encerramento da Conferência Nacional da OAB e agradeço, de coração, ao Presidente Ophir Cavalcante Jr. e ao Conselho Federal a distinção da indicação do meu nome. Gostaria de transformar esse momento e esse ambiente em uma oportunidade de pensar construtivamente o Brasil, na perspectiva de um professor de direito, de um advogado e de um cidadão engajado.
Tive duas preocupações centrais ao organizar minhas ideias para compartilhá-las com todos. A primeira foi a de fugir da retórica, das frases de efeito, das proclamações tonitroantes. Impus-me a obrigação de trazer uma proposta objetiva, uma formulação concreta para cada tópico que suscitei. Evidentemente, com os riscos do excesso de simplificação que as circunstâncias impõem. Minha segunda preocupação, em um ambiente plural e democratíco como o nosso, foi o de minimizar as opções pessoais e ideológicas, para procurar estabelecer uma agenda patriótica. Reflexões que possam trazer convergência e sinergia. Mas acho próprio declinar as premissas filosfóficas que me movem nos meus compromissos com o Brasil, que são: (i) criar um país de igualdade de oportunidades no ponto de partida da vida de cada um; (ii) proporcionar à gente brasileira não apenas uma vida melhor, mas uma vida maior, uma vida boa, no sentido da grandeza pessoal e da plenitude existencial; e, por fim, (iii) contribuir para a criação no país de uma cultura de boa-fé objetiva, em que as pessoas sejam essencialmente corretas nas suas relações, sem o ânimo das vantagens indevidas ou o propósito de passar os outros para trás. Este será o ponto culminante de uma revolução silenciosa que precisamos fazer.
Antes, porém, de continuar, gostaria de estabelecer, por convenção, o sentido dos três conceitos que dão título a essa conferência: democracia, desenvolvimento e dignidade humana.
II. OS CONCEITOS ESSENCIAIS
1. Democracia
A democracia ou, mais propriamente, o constitucionalismo democrático, foi a ideologia vitoriosa do século XX, derrotando diversos projetos alternativos e autoritários que com ele concorreram. Trata-se da fusão de duas ideias que tiveram trajetórias históricas diversas, mas que se conjugaram para produzir o modelo ideal contemporâneo. Constitucionalismo significa Estado de direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. Democracia, por sua vez, traduz a ideia de soberania popular, governo do povo, vontade da maioria. O constitucionalismo democrático, assim, é uma fórmula política baseada no respeito aos direitos fundamentais e no autogoverno popular; e um modo de organização social fundado na cooperação de pessoas livres e iguais. Nesse ambiente, o conceito de povo assume uma dimensão humanistica, identificando o conjunto de pessoas ligadas entre si por uma parceria histórica, que se manifesta em valores e projetos comuns, na responsabilidade de uns para com os outros e em compromissos com as gerações futuras. O constitucionalismo democrático – ou o Estado democrático de direito, na terminologia da Constituição brasileira – tem por fundamento e objetivo a dignidade da pessoa humana.
2. Desenvolvimento
Desenvolvimento é um processo de aprimoramento das condições da sociedade, compreendendo diferentes elementos e dimensões. Em sua dimensão econômica, o desenvolvimento está associado à geração de riquezas, tendo como indicadores o Produto Interno Bruto, a renda per capita, o nível de endividamento do país e o saldo da balança comercial, dentre outros. Em sua dimensão social, o desenvolvimento está ligado à distribuição de riquezas e à qualidade geral de vida da população em termos de habitação adequada, acesso à educação e à saúde básicas – incluindo alimentação e saneamento –, níveis de mortalidade infantil, expectativa de vida e serviços públicos adequados. É hoje consenso mundial que o desenvolvimento econômico e social deve ser sustentável, a significar que a satisfação das necessidades da geração presente não deve exaurir os recursos necessários às gerações futuras nem comprometer o meio-ambiente em que terão de viver. A verdade é que todas as dimensões do desenvolvimento – às quais se pode acrescentar o desenvolvimento político e cultural – somente se legitimam e se justificam na medida em que conduzam ao desenvolvimento humano, à elevação da condição humana no plano do bem estar físico, mental e ético. Vale dizer: o desenvolvimento tem por fim promover a dignidade humana na sua expressão igualitária, libertária e compatível com a justiça intergeracional3.
3. Dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana transformou-se em um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental. Dignidade significa, em primeiro lugar, o valor intrínseco da pessoa humana, que identifica sua posição diferenciada no mundo da criação e a distingue dos outros seres vivos e das coisas. As coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade, um valor que não tem preço4. Da ideia de dignidade se extrai o postulado ético essencial enunciado por Kant: todo homem é um fim em si mesmo, e não um meio para a realização de metas coletivas ou projetos pessoais dos outros5. Do valor intrínseco de cada pessoa decorrem os direitos fundamentais à vida, à igualdade e à integridade física e psíquica. Um segundo conteúdo da dignidade é a autonomia de cada indivíduo, que identifica sua capacidade de autodeterminação, o poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas indevidas. A autonomia privada se manifesta nas liberdades fundamentais, como a de religião, de expressão, de associação, de profissão e a liberdade sexual. A autonomia pública se exterioriza no direito de participação política, não apenas no processo eleitoral, mas também no debate público permanente nos meios de comunicação, nas entidades da sociedade civil e no movimento social. Pré-condição necessária para o exercício da autonomia é a satisfação do mínimo existencial. Para poder ser livre, igual e capaz de exercer sua cidadania, a pessoa humana tem de viver sem privações e ter acesso a um mínimo de condições para uma vida digna, incluindo educação e saúde básicas, renda mínima e informação, dentre outras.
4. Democracia, desenvolvimento, dignidade e o Brasil
Cabe um registro final acerca de onde se encontra o Brasil em relação a cada um desses temas. No que diz respeito ao Estado democrático de direito, o último quarto de século de experiência constitucional representa uma história de sucesso, marcada por eleições periódicas, estabilidade institucional e garantia das liberdades públicas. O ponto baixo dessa trajetória é um sistema político estigmatizado pelo custo astronômico das campanhas, pelos descaminhos do financiamento eleitoral e pela baixa representatividade. Como não há democracia sem instituições legislativas fortes e acreditadas, a reforma política deve estar no topo da agenda do país. No tocante ao desenvolvimento econômico e social, todos os indicadores têm sido ascendentes e auspiciosos. É preciso não desperdiçar a chance que o momento oferece e fazer as escolhas certas em educação, combate à pobreza, infraestrutura, pesquisa e inovação científica e tecnológica, dentre muitas outras necessidades nacionais. Por igual, impõe-se acertar o ponto de equilíbrio político e moral entre progresso e preservação ambiental, que dê lugar a um desenvolvimento verdadeiramente sustentável. Quanto à dignidade humana, na vertente do mínimo existencial, é próprio assinalar que o Brasil tem dois dos maiores programas de inclusão social do mundo: o Bolsa-Família e o Sistema Único de Saúde – SUS. Mas nessa matéria – resgate da dívida social –, estamos atrasados e com pressa. Temos deficits dramáticos em habitação, saneamento básico, universalização do ensino médio, serviços públicos essenciais, acesso à justiça, segurança pública. Um país a construir.
III. UMA AGENDA PARA OS PRÓXIMOS DEZ ANOS
Passa-se, a seguir, a identificar dez temas de alta relevância para o Brasil, que se distribuem por domínios variados. Em relação a cada um deles, apresentam-se duas formulações: a primeira identifica a questão a ser enfrentada; e a segunda traz uma proposta objetiva para equacioná-la. No geral, as soluções situam-se dentro dos limites e possibilidades do Direito e das instituições jurídicas vigentes. Vejam-se, a seguir, cada um desses temas.
1. Uma nova narrativa para o Brasil6
Somos um país de algumas virtudes incomuns, que incluem a diversidade étnica, a tolerância religiosa e a progressiva superação das discriminações raciais, de gênero e de orientação sexual. E temos algumas bem-aventuranças, como riquezas minerais, belezas naturais e índole pacífica, avessa a guerras e ao militarismo. Somos, ademais, o país do bom humor, da alegria de viver, das festas populares e da extroversão. Gente sem medo e sem culpa de ser feliz. A alegria, o calor humano e a felicidade pessoal são energias positivas para o universo. Mas somos, também, o país da desigualdade social extrema; da violência urbana superior à de muitos Estados em guerra; da favelização ampla, que degrada as pessoas, as cidades e o meio ambiente. Dos serviços públicos deficientes e ineficientes que penalizam, sobretudo, os mais pobres, que deles dependem. A convivência de virtudes incomuns, de um lado, e de vícios atávicos, de outro, com se vem de descrever, tem feito com que a autocompreensão do Brasil, manifestada por seu povo e por seus formadores de opinião, oscile entre o ufanismo e a frustração: ou os melhores do mundo ou o sentimento de inferioridade diante de outras experiências nacionais. Precisamos de um exercício de pensamento original que ajude a definir o nosso lugar no mundo, quem somos e o que temos a oferecer. Uma nova narrativa, envolvendo a identificação e o encadeamento dos fatos relevantes, uma interpretação reconstrutiva que lhes dê sentido e a visualização de perspectivas para o futuro. Sem dogmas, nem superstições.
Uma proposta concreta nessa matéria é a realização de um grande concurso nacional multidisciplinar, sob o tema “Uma Nova Narrativa para o Brasil” (ou algo próximo), ao qual poderão concorrer todas as pessoas com o nível de titulação pré-estabelecido. Os prêmios deverão ser convidativos e financiados privadamente. A comissão julgadora será composta por profissionais destacados da área de humanidades ou afins. O objetivo do certame será o de promover, sob perspectiva multidisciplinar, a pesquisa sistemática e o pensamento original, que reflitam sobre a experiência civilizatória brasileira e contribuam para a autocompreensão do país, sua gente e seu lugar na história e no mundo. Estes são elementos essenciais para projetar uma estratégia consciente de desenvolvimento social, econômico e geopolítico, identificando prioridades e desafios. Guardadas as proporções, espera-se que os trabalhos produzidos retomem e atualizem a narrativa do Brasil sobre si mesmo, inaugurada por autores como Joaquim Nabuco, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire, entre inúmeros outros. O INSTITUTO IDEIAS, que reúne um conjunto de professores e pesquisadores na área jurídica, está fazendo a modelagem do prêmio, que será divulgada em breve.
2. Reforma política
Este, talvez, seja o grande consenso nacional: o Brasil precisa urgentemente, desesperadamente, de uma reforma política. Vive-se, entre nós, um momento de total descolamento entre a sociedade civil e a classe política, vista com indiferença, quando não com desprezo. Não é bom que seja assim. Em sociedades democráticas, política é indispensável e deve ser associada à busca pelo interesse público e pelo bem estar social. A política não pode ser um negócio como qualquer outro. Precisamos de uma reforma política capaz de produzir um arranjo institucional que estimule a identificação entre o cidadão e seus representantes, que diminua de maneira drástica o custo das campanhas, que dê autenticidade aos partidos políticos, que seja capaz de absorver crises políticas e que ajude a formação de maiorias políticas estáveis no parlamento. Um choque de republicanismo, de incentivo às virtudes republicanas, que preserve a integridade pessoal dos agentes públicos e a observância de padrões éticos adequados na gestão da coisa pública. A OAB tem promovido iniciativas importantes e elaborou, recentemente, uma proposta de reforma política visando a esses objetivos, que introduziria uma tríplice transformação. Quanto ao sistema de governo, o semipresidencialismo; quanto ao sistema eleitoral, o modelo distrital misto, que combina a fórmula majoritária e a proporcional, com lista pré-ordenada de candidatos; e quanto ao sistema partidário, fidelidade e mecanismos impeditivos da excessiva pulverização dos partidos.
Não é o caso de se demonstrarem as virtudes do modelo concebido pela Ordem. A proposta concreta que aqui se traz não é de mérito, mas quanto ao encaminhamento da reforma, para superar o impasse atualmente existente, em que todo mundo é a favor, mas cada um tem um projeto diverso em mente. Os conflitos de interesses são muito grandes e o Congresso não consegue produzir uma solução. Diante disso, um procedimento alternativo legítimo para concretizar a reforma política é a realização de um plebiscito, no qual o eleitor responderia a três consultas, fazendo suas escolhas. A primeira, entre (i) sistema proporcional (como é hoje); (ii) sistema majoritário (apelidado de distritão); e (iii) sistema distrital misto. A segunda, entre (i) lista aberta ou não-ordenada (como é hoje) e (ii) lista fechada ou preordenada. E a terceira seria entre (i) financiamento exclusivamente privado (como é hoje), (ii) financiamento exclusivamente público e (iii) financiamento público e de pessoas físicas, com limte máximo de contribuição. No período que precedesse a consulta popular, a Justiça Eleitoral faria uma apresentação didática de cada uma das opções nos meios de comunicação, bem como organizaria a defesa política de cada uma delas pelos grupos respectivos, de acordo com critérios de participação a serem definidos. Em relação a cada opção já deverá existir um texto de emenda constitucional e/ou legislação ordinária prontos, de modo que não haveria um segundo tempo depois do plebiscito, mas uma fórmula que entraria em vigor prontamente, de acordo com o resultado da apuração.
3. Saneamento básico
O saneamento básico é a principal política pública de saúde preventiva, conforme parâmetro mundialmente aceito, além de ser vital para impedir o comprometimento do meio ambiente, pela contaminação do solo, dos mananciais (fontes de água para abastecimento), rios e praias. O saneamento básico constitui um serviço público essencial que se materializa em ações de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, bem como manejo de águas pluviais e dos resíduos sólidos (lixo). Pesquisa do IBGE, recentemente divulgada pela imprensa7, revela indicadores extremamente deficientes em matéria de saneamento básico. De fato, mais da metade dos domicílios brasileiros não tem acesso a uma rede de coleta de esgoto. Além disso, mais de 70% dos Municípios brasileiros não têm qualquer sistema de tratamento de esgoto instalado, despejando-o diretamente no meio ambiente. No tocante aos resíduos sólidos, mais de 50% dos Municípios os destinam a vazadouros a céu aberto, conhecidos como “lixões”. São números muito ruins, decorrentes de investimentos insuficientes. Uma das principais causas do baixo aporte de recursos é a indefinição jurídica acerca de quem é o poder concedente do serviço de saneamento nas regiões metropolitanas – principais concentrações populacionais do país: se o Estado ou os Municípios.
Esta indefinição pode ser debitada à Constituição, à legislação e ao próprio Supremo Tribunal Federal, onde desde o final da década de 90 tramitam duas ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema, ainda sem decisão. A questão tem de fato complexidades: pela Constituição, os serviços de interesse local são da competência político-administrativa dos Municípios, mas as regiões metropolitanas devem ser instituídas pelo Estado. Esta é a origem das divergências. Já a competência legislativa para tratar de saneamento básico é da União. No entanto, ao disciplinar o assunto, a lei federal não solucionou o impasse. Diante do imbroglio jurídico, proponho uma solução compromissória, baseada em fundamentos jurídicos consistentes: a gestão compartilhada paritária, em que o Estado tenha metade do poder decisório e o conjunto dos Municípios metropolitanos a outra. Em caso de empate, é possível pensar em algumas fórmulas de encaminhamento, como por exemplo: a) a posição do Estado prevalece, caso tenha a adesão de pelo menos 25% dos Municípios; ou b) designa-se, previamente à ocorrência do dissensso, um árbitro externo para solucioná-lo, que poderá ser, por ilustração, um órgão ou agência federal (como a Agência Nacional de Águas) ou um painel de técnicos qualificados e independentes. Por fim, a opção pela prestação do serviço por empresa estatal ou mediante concessão à iniciativa privada, sob regulação e fiscalização de órgão paritário de Estado e Municípios, deverá ser pragmática e não ideológica, baseada na existência ou não de recursos públicos para financiar a expansão necessária.
4. O sistema punitivo
O sistema punitivo no Brasil não realiza adequadamente nenhuma das funções próprias da pena criminal: não previne, não ressocializa nem prevê retribuição na medida certa. A sociedade tem uma sensação difusa de impunidade. Mas as estatísticas de encarceramento são as mais elevadas desde sempre: passaram de 140 mil em meados da década de 90 a mais de 500 mil na atualidade8. O número de presos no Brasil só é inferior, em termos absolutos, aos da China e dos Estados Unidos. Temos uma justiça tipicamente de classe: mansa com os ricos e dura com os pobres. Leniente com o colarinho branco e severa com os crimes de bagatela. O sistema punitivo tem como porta de entrada o inquérito policial, passa pelo Ministério Público, pela Magistratura e tem como porta de saída o sistema penitenciário. Seus maiores problemas estão na entrada e na saída. A atividade policial é frequentemente vista como uma atividade menor, menos importante do que a de promotores e juízes. Trata-se de um erro grave. Uma polícia mal treinada, mal equipada e mal remunerada, sujeita a uma vida de riscos, vizinha de porta do crime, é um convite à violência e à corrupção. Nesse contexto, menos de 8% dos homicídios no Brasil são elucidados. E são cerca de 50.000 por ano, número de mortes superior ao de países em envolvidos em conflitos armados. Já o sistema penitenciário é tão degradado e degradante que juízes e tribunais, com um mínimo de visão humanista, apegam-se a qualquer filigrana jurídica para não mandar qualquer pessoa não-violenta para suas entranhas, realimentando o sentimento de impunidade. Em suma: o sistema punitivo brasileiro é uma combinação de truculência, impunidade e degradação.
Recuperar o sistema punitivo envolve a combinação de providências óbvias com algumas soluções criativas. É preciso, dentre outras prioridades, dar dignidade à polícia: status social, qualificação educacional, remuneração adequada, treinamento, equipamento e uma cultura capaz de conciliar eficiência com respeito aos direitos humanos. Vale dizer: capacitação, recursos e uma filosofia de trabalho. Precisamos, igualmente, recolocar em discussão a ideia da proibição de venda de armas de fogo, derrotada no plebiscito de 2005, vítima de contingências do momento político. No sistema penitenciário, é preciso não apenas dar condições mínimas de dignidade às unidades prisionais, como também pensar soluções mais baratas e civilizatórias. Como, por exemplo, a utilização ampla de prisões domiciliares monitoradas, em lugar do encarceramento. Quem fugir ou violar as regras, aí, sim, vai para o sistema. Para funcionar, tem de haver fiscalização e seriedade. Não desconheço as complexidades dessa fórmula, a começar pela circunstância de que muita gente sequer tem domicílio. Mas em muitos casos ela seria viável. Por igual, crimes de colarinho branco e todas as demais formas de criminalidade não violenta devem ter instituições prisionais separadas, mais baratas e de menor segurança, financiadas com as sanções pecuniárias elevadas a serem aplicadas, sobretudo, à criminalidade econômico-financeira. Também aqui, quem fugir ou violar as regras vai para o sistema. E, sobretudo, precisamos organizar um grande evento multidisciplinar de reflexão sobre o sistema punitivo brasileiro: quanto de direito penal, para quem, com quais objetivos. O sistema punitivo brasileiro está desarrumado filosófica, normativa e administrativamente. Precisamos de um exercício de pensamento criativo, de energia construtiva.
5. Educação
Em matéria de educação, a despeito dos progressos dos últimos anos, ainda estamos defasados mesmo em termos de América Latina. Estamos também, sob numerosos aspectos, atrás de todos os outros países do grupo identificado como BRIC, que inclui Rússia, India e China. Um projeto educacional ambicioso deve ter em conta dois grandes objetivos: (i) a capacitação de todos para uma vida melhor, com acesso a conhecimentos essenciais, a uma profissão, à informação e ao exercício esclarecido da cidadania; e (ii) a identificação dos grandes talentos, dos virtuoses, daqueles que devem receber incentivos e investimentos diferenciados, porque serão os líderes da inovação e do avanço social. Precisamos de projetos ambiciosos em relação ao ensino fundamental e ao ensino médio, que compõem hoje o denominado ensino básico; e precisamos de projetos mais ousados ainda para a universidade. No tocante ao ensino fundamental, alcançada a universalização, é preciso investir em qualidade efetiva. Precisamos de programas nacionais periódicos de capacitação de professores, de aumento da carga horária nas escolas para um regime de tempo integral, de alimentação, área de esportes com professores de educação físicia que ajudem a formar o caráter dos jovens, bem como do uso amplo de recursos tecnológicos para educação à distância (com acompanhamento por professores ou tutores locais), de universalização do acesso à internet e utilização máxima do seu potencial para fins educacionais. Além do Bolsa Família, é preciso explorar as potencialidades de incentivos singelos ao aprendizado e à valorização do mérito, como prêmios de desempenho, concursos locais e viagens dos mais destacados à capital do Estado ou do país. Ao final do ensino fundamental, um exame de avaliação deverá permitir selecionar os melhores, que concluirão o ensino básico em instituições modelo9. Em cada agrupamento de aproximadamente 250 mil pessoas, no interior ou nas capitais, haveria uma instituição de ensino que reuniria os melhores. O ensino médio deverá ter a sua universalização elevada à condição de prioridade máxima.
Também no que toca ao ensino superior, estamos imensamente atrasados. As instituições públicas custam muito caro em função do retorno que dão para a sociedade. Circunstâncias diversas têm dificultado a capacidade da universidade brasileira de gerar centros de verdadeira excelência e inovação, movidos pelo mérito individual e pelo esforço coletivo. A crítica, por certo, não desmerece o esforço de docentes e pesquisadores abnegados, que enfrentam estruturas burocratizadas e ineficientes, quando não inertes, e ainda assim fomentam núcleos de qualidade acadêmica. Mas não é suficiente o esforço isolado: a universidade tem de ser um catalisador de talentos, de pessoas dispostas a se engajarem em um processo que envolve não apenas a transmissão de conhecimento, mas também a superação das ideias convencionais. Reformas universitárias profundas e radicais costumam desandar, consumidas por resistências políticas e pelo conservadorismo do status quo. Por essa razão, em relação à universidade pública já existente – e que deve continuar a ser pública – faço propostas puramente incrementais, relativamente singelas, mas capazes de mudar o jogo como vem sendo jogado. Por vezes, pequenas transformações graduais são capazes de produzir mais impacto do que propostas de mudanças abrangentes10. Em primeiro lugar, deve-se valorizar particularmente o mérito, que se mede menos em títulos formais e mais na produção científica, sobretudo pela publicação em veículos de qualidade. Deve-se estimular, igualmente, a publicação em revistas estrangeiras de reputação. Esses dois itens deveriam contar para a evolução na carreira e para a remuneração dos docentes. Também deveria ser incentivada a realização de seminários internos nas instituições, de comparecimento obrigatório para os professores, onde cada um deles faria uma apresentação das suas pesquisas em andamento e dos temas que está estudando, propiciando o debate acadêmico e o efetivo compartilhamento de ideias. A universidade deve ser capaz, igualmente, de fazer parcerias e projetos externos, obtendo recursos legítimos da iniciativa privada, que complementem o orçamento público limitado.
Por fim, o país precisa criar uma instituição acadêmica verdadeiramente de ponta. Não existe nenhum grande país sem uma grande universidade. Aqui, precisamos inovar, criando um modelo original. Uma universidade voltada, cumulativamente, para a pesquisa pura, para a inovação tecnológica, para as conquistas da medicina e para o melhor das humanidades. Com graduação e pós-graduação. Possivelmente em uma grande área próxima à capital federal, com prédios para faculdades, bibliotecas, laboratórios e dormitórios. Para ela seriam recrutados, mediante bolsas de estudos e incentivos, os melhores estudantes que concluíssem o ensino básico – para o acesso à graduação – ou o ensino superior – para o acesso à pós-graduação. Os professores viriam tanto do Brasil como do resto do mundo, com recrutamento competitivo e aulas em português, inglês e espanhol. Com planos de carreira e direito de permanência baseados na produtividade e no comprometimento com a instituição. Seria uma instituição pública nos seus objetivos, mas não estatal. Sem propósito de lucro, mas sem as amarras da Administração Pública. Política, só a do mérito acadêmico. Ela seria formada por um capital inicial resultante de dotações voluntárias e incentivadas das grandes empresas nacionais, assim como de todas as pessoas físicas ou jurídicas que desejassem contribuir para o projeto. A instituição seria dirigida por um presidente e dois conselhos de cinco pessoas cada: um, de administração, para gerir os recursos, nomeando os seus gestores; e outro, educacional, para conduzir o projeto pedagógico. Nada excessivamente grandioso em termos de quantidade, mas com especial preocupação em aproximar os melhores alunos dos melhores docentes e pesquisadores. Alunos de tempo integral e pelo menos 75% do corpo docente com dedicação exclusiva. A instituição teria convênios com as principais universidades do mundo para intercâmbio de alunos e professores. O modelo poderia ser replicado em alguns Estados da federação.
6. Trânsito
No ano de 2010, os acidentes de trânsito, no Brasil, causaram mais de 40 mil mortes11. Número próximo ao dos homicídios dolosos, com uma média de 111 por dia. Uma vida se perde a cada 15 minutos. A maior parte das vítimas tem entre 20 e 30 anos. Um genocídio de jovens. Esses são os números de óbitos, sem mencionar os ferimentos graves, inclusive amputações e lesões medulares. O trânsito brasileiro produz 2,5 vezes mais mortos do que o dos Estados Unidos e 3,7 vezes mais do que na Europa12. Precisamos de conscientização, fiscalização e repressão. Nessa ordem e na intensidade correta. Conscientização significa difundir a compreensão de que dirigir um carro é como portar uma arma. O uso impróprio é crime. É preciso tirar o glamour da velocidade irresponsável e o clima de festa da embriaguez. No volante, velocidade e álcool em excesso produzem assassinos potenciais. A conscientização inclui, portanto, chamar as coisas e as condutas pelo seu nome certo. A solução, no entanto, não está no recrudescimento das penas de privação de liberdade, mas sim na fiscalização adequada e na repressão moderada e eficiente.
Minha primeira sugestão, paradoxalmente, é de aumento de tolerância: dois chopps, duas taças de vinho ou uma dose de bebida destilada deveriam ser considerados admissíveis. A política de tolerância zero, no particular, dificulta a efetivação da restrição. Aqui, como em outras situações, o ótimo é inimigo do bom e do possível. Feita a ressalva, a fiscalização do cumprimento da Lei seca deve ser feita com empenho prioritário. De fato, se morrem dezenas de milhares por ano, esta há de ser uma das principais políticas de segurança do país. Equipes nas ruas devem monitorar bairros e locais propícios à direção alcoolizada, assim como pardais e câmeras devem controlar as vias públicas para conter o abuso de velocidade. O direito à não-autoincriminação penal, sobretudo pela não realização do teste do bafômetro, não exclui a avaliação visual da autoridade nem tampouco deve inibir medidas administrativas. A recusa em se submeter ao teste deve acarretar, como consequência necessária, a apreensão do carro por uma semana e a suspensão da carteira por um mês. Em caso de reincidência, a apreensão do veículo será por um mês e a suspensaão da carteira por seis. E, na terceira vez, um ano de carro e carteira apreendidos. Os prazos são mera sugestão para debate. A apreensão do carro pode ser substituída por imobilização das rodas, no local de seu estacionamento permanente. Quem for flagarado dirigindo após ter tido a carteira apreendida, vai preso. Nada de penas absurdas e longas. Podem ser bem breves. Mas tem que ser para valer. Como o sistema penitenciário não é capaz de ressocializar ninguém, a prisão deverá ser domiciliar monitorada, com leituras reeducativas e nova prova de habilitação.
7. Direitos humanos
Os direitos humanos ou fundamentais são a face jurídica da dignidade humana. Nessa matéria, fizemos muitos progressos no Brasil em relação aos direitos individuais e aos direitos políticos. Também tivemos avanços no tocante aos direitos sociais, que compreendem, dentre outros, educação, saúde, moradia e proteção à maternidade e à infância. Concentro minhas reflexões no tema dos direito sociais, que são aqueles que visam à redução da desigualdade e à proteção dos grupos mais vulneráveis contra os abusos em geral, sejam os decorrentes do poder econômico, do preconceito ou da intolerância. A satisfação dos direitos sociais envolve melhor distribuição de renda e a oferta de serviços públicos de qualidade. Veja-se, então: o Brasil é hoje a sexta economia do mundo, mas encontra-se na 84ª posição no tocante ao IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, da ONU, que leva em conta os indicadores de renda (PIB per capita), saúde (expectativa de vida ao nascer) e educação (taxa de alfabetização e anos de escolaridade). A principal causa dessa defasagem é o abismo de desigualdade na distribuição de renda.
Sobre educação, principal fator de redução da desigualdade, já fiz as reflexões cabíveis em item próprio. Acrescento apenas que ao lado das preocupações com universalização e qualidade, é preciso reter os alunos na escola: o número médio de anos de estudo do brasileiro é de 7,2 anos, quando o mínimo desejável são 11 anos. Em relação à saúde, reitero o registro já feito quanto à importância exponencial do saneamento básico. Além disso, é preciso transparência e justificação no tocante às políticas públicas de saúde, inclusive para ajudar a equacionar o fenômeno da judicialização, que tem transferido para o Judiciário, indevidamente, a discussão política sobre determinadas escolhas trágicas na alocação dos recursos. Vale dizer: o debate político que não é feito no momento da elaboração do orçamento acaba sendo feito em demandas judiciais individuais, o que constitui evidente distorção. No tocante ao direito de moradia, precisamos de projetos de financiamento habitacional de larga escala para famílias de baixa renda, em conjunto com planejamento urbano, ruas e avenidas dimensionadas adequadamente, arborização, praças e construções subsidiadas que substituam as favelas, com ordem e humanização. Precisamos fazer cidades melhores, comunidades melhores, com preocupações ambientais e estéticas. Não podemos viver, eternamente, do desfrute de belezas naturais.
8. A proteção das minorias
Como desdobramento da discussão acerca dos direitos humanos, cabe destacar e enfrentar três tópicos que envolvem os direitos das minorias. A história da civilização é a história da superação dos preconceitos e da discriminação. A principal inspiração desse tópico está nas ideias de tolerância e inclusão social. Não se tem aqui a pretensão de fazer com que qualquer pessoa abdique de suas conviccções, mas apenas que tenha a boa-vontade de tratar os que são diferentes ou pensam diferente com igual respeito e consideração. Onde existam desacordos morais razoáveis, o papel do Estado é o de assegurar que cada grupo possa viver os seus próprios valores, sem utilização do seu poder coercitivo em favor de um dos lados.
(i) As mulheres e a descriminalização do aborto
As mulheres não são uma minoria, em sentido quantitativo. Mas fazem parte de um grupo de maior vulnerabilidade, em uma sociedade que ainda conserva, renitentemente, um viés machista. Pois bem: no tocante ao direito das mulheres, sobretudo das mulheres pobres, é imprescindível incluir na agenda política do país a discussão acerca da descriminalização do aborto. A melhor forma de se enfrentar o aborto – que não é, em si, uma situação desejável para ninguém – é com educação sexual, planejamento familiar e informações sobre meios de prevenção da gravidez, além de apoio à gestante que deseje ter o filho. Porém, tratar como criminosa a mulher que não quer ou não pode levar a gestação a termo constitui uma política pública de efeitos perversos, que devem ser considerados. Em primeiro lugar, porque viola a autonomia da mulher, impedindo-a de fazer uma escolha decisiva para sua vida. Em segundo lugar, pela discriminação social que resulta da criminalização. É que, sem terem acesso a clínicas privadas, e sem poderem recorrer à rede pública de saúde, dezenas de milhares de mulheres pobres morrem ou se lesionam gravemente utilizando técnicas primitivas de interrupção da gestação.
(ii) A questão das ações afirmativas
Ação afirmativa é um conceito que não se limita às eventuais quotas para pobres e negros nas universidades. Ao contrário, as ações afirmativas identificam uma ideia muito mais abrangente, que deve incluir, sobretudo, a atuação proativa em comunidades carentes, levando serviços, cuidados e afeto. Isso inclui o fomento à preservação dos laços familiares, a manutenção de creches e pré-escolas para a iniciação educacional dos filhos de pais que precisam passar o dia trabalhando, a instalação de bibliotecas e o desenvolvimento de atividades educacionais, artísticas e desportivas, ao lado de medidas de incentivo ao estudo e ao aprendizado. Trabalhar para oferecer igualdade de oportunidades no acesso à educação e ao mercado de trabalho é, no longo prazo, uma alternativa melhor do que cotas. O que não invalida, contudo, a legitimidade do emprego eventual desse instrumento, como forma provisória de superação de injustiças históricas.
(iii) Os direitos dos homossexuais e o casamento
Todas as pessoas devem ter direito ao casamento civil, se este for o seu desejo. Se a sociedade considera que o casamento é uma instituição positiva – tanto que o cultiva há muitos séculos –, seria uma estranha forma de egoísmo e de discriminação excluir dos seus benefícios pessoas que têm orientação homossexual. Justamente ao contrário, o Estado e a sociedade devem incentivar a inclusão das pessoas, permitir que saiam do gueto e da depreciação de não terem suas relações afetivas reconhecidas, como se não fossem dignas do mesmo respeito e consideração. O Supremo Tribunal Federal fez muito bem em equiparar as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, o que deve importar na possibilidade de conversão em casamento, como decidiu, igualmente, em acórdão luminoso, o Superior Tribunal de Justiça.
9. Transparência
Três disfunções acompanham, desde sempre, a formação social e política do Brasil: o patrimonialismo, que mistura o público com o privado; o oficialismo, que faz tudo que é importante depender das bênçãos do Estado; e o autoritarismo, que concentra poderes para distribuir favores. A consciência desses problemas tem permitido às novas gerações enfrentarem-nos com a intensidade possível. Ao escolher o tema transparência como uma das grandes questões nacionais, moveu-me, acima de tudo, uma preocupação: fugir do discurso difuso e generalizante acerca da corrupção. O imaginário social brasileiro vive assombrado pela desconfiança e pela suposição de que em toda parte estão ocorrendo tenebrosas transações. Embora haja, mesmo, excesso de coisas erradas, essa atitude nihilista mina a cidadania e contagia a todos com o vírus da deseperança: já que ninguém presta, não adianta tentar fazer melhor. E aí, absolvidos pela culpa geral, os bons, que são a maioria, deixam de fazer bem feita a parte que lhes toca. E o mal triunfa. Na história brasileira, a pregação vaga contra a corrupção, sem propostas e soluções específicas, foi o combustível de aventuras autoritárias ou demagógicas. Em busca de transparência, trago ideias simples em relação a três áreas: orçamento, contratos administrativos e cargos em comissão.
(i) Orçamento público
O orçamento público entre nós é uma caixa preta, desconhecido e inacessível, na sua elaboração e execução. Concentro-me na questão da elaboração, lembrando que o orçamento é a lei formal que contém a previsão das receitas públicas e a autorização para realização das despesas públicas. Do ponto de vista político, a elaboração orçamentária é um grande espaço democrático negligenciado. Não há debate público adequado acerca das grandes decisões que nele se materializam: quanto de recursos serão alocados para a saúde, educação, construção de rodovias, pagamento da dívida pública ou publicidade institucional. A sociedade brasileira não participa dessa discussão. Do ponto de vista operacional, tanto no Executivo como no Legislativo, a elaboração do orçamento fica confinada a um número restrito de iniciados que desfrutam de um poder sem controle. Minha proposta: antes de encaminhar o projeto de lei orçamentária ao Congresso Nacional, o Poder Executivo deverá explicitar, de maneira acessível à sociedade – talvez em exposição do Presidente da República em rede nacional –, as prioridades, escolhas e circunstâncias que pautaram suas avaliações, dando publicidade e transparência ao que pretende fazer e permitindo o controle social. Também devem ter transparência e justificação as emendas aprovadas pelo Congresso.
(ii) Contratos administrativos
No tocante aos contratos administrativos, firmados entre o Poder Público e o particular, as causas de desmandos são inúmeras. A começar por uma legislação sobre licitações e contratos cuja complexidade e formalismo impedem o administrador honesto de ser eficiente e não impede os ímprobos de fazerem espertezas. Minha primeira sugestão na matéria: simplificar a legislação para facilitar a sua observância. Ademais, as fraudes em contratações administrativas têm focos localizados, que olhos experientes podem detectar com alguma singeleza. Alguns deles são (a) o direcionamento da licitação por meio de exigências restritivas descabidas, (b) os aditivos contratuais que geralmente se seguem a propostas subfaturadas e (c) as contratações diretas em casos que não eram de dispensa ou de inexigibilidade de licitação, frequentemente pela invocação de uma emergência que não é real. Também aqui, a simplificação na fiscalização, evitando-se controles sobrepostos, sucessivos e formais, poderia dar agilidade e eficiência.
(iii) Cargos em comissão ou de confiança
A Constituição brasileira prevê a existência de cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração pelos agentes políticos dos três Poderes. Pela previsão constitucional, tais cargos devem se limitar aos que envolvam atribuições de direção, chefia e assessoramento. Os cargos em comissão não são um mal em si, pois é normal que os órgãos de direção – sobretudo no Poder Executivo – nomeiem, para determinadas posições, pessoas afinadas com os programas a serem implementados. O problema, no Brasil, está na falta de republicanismo nos critérios de escolha, assim como no número excessivo de cargos de confiança. Quanto à falta de republicanismo, é preciso instituir requsitos de capacitação técnica e mérito capazes de dar transparência ao recrutamento e de coibir práticas clientelistas e de nepotismo. Quanto ao número de cargos, a solução é mais singela: basta a sua drástica redução, o que, de resto, alinharia o Brasil com as boas práticas administrativas do resto do mundo. Apenas no plano do governo federal – onde os desmandos são menores e mais visíveis – existem mais de 23 mil cargos em comissão, em manifesto contraste com Estados Unidos (9 mil), Alemanha (500) e França (550).
10. Transformações no mundo jurídico
A litigiosidade no Brasil chegou ao limite da capacidade de absorção pelo Poder Judiciário. Precisamos mudar a mentalidade de advogados e de juízes para criar uma cultura de soluções consensuais para os litígios. A judicialização é sempre um momento patológico das relações sociais, por significar a impossibilidade de observância espontânea do Direito. Minha primeira sugestão: advogados devem considerar, como seu primeiro papel, construir com o seu ex adverso soluções que componham amigavelmente o conflito, evitando a necessidade de ir a juízo. É preciso, portanto, substituir a postura adversarial tradicional por uma busca pela conciliação e mediação13. Segunda sugestão: no caso de a demanda terminar sendo ajuizada, juízes deveriam considerar como sua primeira missão obter a transação entre as partes, atuando proativamente nessa direção. A esse propósito, merece registro e apoio a Resolução n. 125, de 29.11.2010, do Conselho Nacional de Justiça, que determina a criação, pelos Tribunais, de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, voltados para a conciliação e mediação. Ainda em relação ao Poder Judiciário, uma última proposta: é preciso instituir um Exame Nacional de Magistratura, como requisito para inscrição nos concursos para juiz realizados por tribunais estaduais e regionais. Uma seleção prévia que minimize os riscos de manipulação e favorecimento por oligarquias judiciárias locais, riscos que, infelizmente, não são imaginários.
Por fim, três propostas em relação ao Supremo Tribunal Federal. A primeira: é preciso aprimorar o sistema de repercussão geral. Já há mais recursos extraordinários admitidos dentro do novo sistema do que a capacidade do tribunal de apreciá-los nos próximos anos. O critério de seleção tem de combinar aspectos qualitativos e quantitativos, para não inviabilizar o tribunal nem alimentar um sistema de delegação interna de competências decisórias. Em segundo lugar, é preciso aprimorar os mecanismos de funcionamento do plenário. Duas sugestões: (i) votos orais não deveriam estender-se para além de vinte ou trinta minutos, com síntese das principais ideias, sem prejuízo de o voto escrito ser mais analítico, quando seja o caso; (ii) a minuta do voto do relator – ou, pelo menos, sua tese central – deveria circular previamente, com dois propósitos: quem concordar com ele não precisa ter o trabalho de preparar outro voto para dizer a mesma coisa; e quem discordar já pode preparar a divergência, sem necessidade de pedir vista. Uma última sugestão, uma providência simples que vem se tornando indispensável: após a votação em plenário, o relator para o acórdão deverá submeter a ementa à aprovação da maioria que se formou, para evitar que aconteça – como por vezes ocorre – de a ementa refletir apenas a posição do relator e não a da maioria.
IV. CONCLUSÃO
E aqui concluo a agenda que propus para o país para a próxima década. Uma jornada em busca da igualdade de oportunidades, da vida boa e da boa-fé objetiva. A democracia como premissa, o desenvolvimento como meio e a dignidade humana como fim. Dignidade significa a emancipação das pessoas, a consciência da própria liberdade e a capacidade material e intelectual de realizar seus projetos existenciais. A possibilidade real de buscar a própria felicidade. A realização pessoal não é uma pré-condição para a vida ética, a vida que inclui o outro e a solidariedade. Mas ela certamente ajuda a criar um estado de espírito mais propício para cada um sair de dentro de si, em paz e com segurança, e estender a mão a quem precisa. Nos últimos 25 anos, o Brasil amadureceu institucionalmente, desenvolveu uma consciência social e começa a partilhar os frutos do progresso. Em breve, chegaremos à modernidade. Com atraso, mas não tarde demais. Uma sociedade de pessoas livres, iguais e solidárias. Com alegria de viver. E mais à frente, multiculturais, multirraciais e pacíficos, seremos um exemplo de civilização, fundada na tolerância, no pluralismo e na fraternidade. Um lugar como todos deveriam ser.
1 Conferência Magna de Encerramento da XXI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Curitiba, 24 de novembro de 2011.
2 Advogado. Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor Visitante da Universidade de Brasília – UnB. Mestre pela Universidade de Yale, Doutor pela UERJ, Visiting Scholar na Universidade de Harvard.
3 Na formulação feliz de Amartya Sen, vencedor do prêmio Nobel de 1998, o desenvolvimento é um processo integrado de expansão das liberdades substantivas das pessoas. V. Amartya Sen, Development as Freedom, 1999, p. 8.
4 Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. Paulo Quintela, 2004, p. 77.
5 Idem, p. 68-69.
6 A ideia desse tópico se deu em interlocução com o Professor Paulo Barrozo, do Boston College, nos Estados Unidos.
7 V. Julia Reis, “Mais da metade dos domicílios brasileiros não tem coleta de esgoto, mostra IBGE”, UOL Notícias, 19 out. 2011. Acessível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/2011/10/19/mais-da-metade-dos-domicilios-brasileiros-nao-tem-coleta-de-esgoto.jhtm.
8 As estatísticas utilizadas nesse parágrafo foram colhidas em Luiz Eduardo Soares, “Tranquila e infalível como Bruce Lee”, Tendências/Debates, Folha de São Paulo, 25 out. 2011.
9 Eventualmente, adaptando-se e aperfeiçoando o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) existente.
10 Adrian Vermeulle, Mechanisms of Democracy, 2007, p. 245-47.
11 “Trânsito mata mais de 40 mil e bate recorde”, Folha de São Paulo, 29 out 2011, primeira página e C4.
12 Ruth Aquino, “Uma epidemia que mata 100 por dia”, Revista Época, 8 ago 2011, p. 154.
13 A arbitragem também é uma forma extrajudicial de resolução de conflitos, mas que não evita o litígio, apenas transferindo o poder de decisão para outro órgão ou instituição.
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