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Juiz repudia precariedade do sistema prisional ao interditar presídio

O juiz de Direito Cássio Roberto dos Santos, da 1ª vara de Bataguassu/MS, ao julgar procedente pedido do MP para interditar o Presídio Masculino da cidade, faz um tratado acerca da situação precária do sistema carcerário.

15/9/2011


Sistema carcerário

Juiz repudia precariedade do sistema prisional ao interditar presídio

O juiz de Direito Cássio Roberto dos Santos, da 1ª vara de Bataguassu/MS, ao julgar procedente pedido do MP para interditar o Presídio Masculino da cidade, faz um tratado acerca da situação precária do sistema carcerário.

Citando Vitor Hugo, o magistrado afirma que é dever dos agentes públicos de todos os níves, sejam eles responsáveis diretos ou indiretos pelo cumprimento da pena, "zelar para que, na medida do possível, sejam atendidas condições mínimas de dignidade para o cumprimento das penas".

No caso da comarca de Bataguassu, restou comprovado para o julgador que estavam sendo desatendidos diversos preceitos da lei de Execução Penal (clique aqui) e da CF/88 (clique aqui), dentre os quais: existência de áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva; separação de presos provisórios dos definitivos; lotação compatível com a estrutura e finalidade; área mínima de cela, com salubridade, aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana, entre outros.

__________

Parte ativa: Ministério Público Estadual
Parte Passiva: Estado de Mato Grosso do Sul e outro

Vistos.
Trata-se de Ação Civil Pública, ajuizada pelo Ministério Público Estadual contra o Estado de Mato Grosso do Sul, pessoa jurídica de direito público interno, identificada, e AGEPEN – Agência Estadual do Sistema Penitenciário, também devidamente identificada, em razão dos fatos e fundamentos a seguir expostos.

Alega o autor ação que é de conhecimento público que o Presídio Masculino desta Comarca não atende às mínimas condições legais para a manutenção de presos provisórios, ou daqueles já condenados ao cumprimento de penas privativas de liberdade. Em visitas ao estabelecimento, constatou-se graves violações dos direitos humanos em relação aos internos, sendo que o “Parquet” inclusive ajuizou outra Ação Civil Pública no ano de 2004, visando à reestruturação do estabelecimento, porém até a presente data pouco foi feito.

Ocorre que em março de 2009 foi apresentado laudo pericial nos autos daquela ACP, no qual o “expert” relatou diversas irregularidades que comprometem a segurança e a saúde dos presos e funcionários que ali exercem suas funções. Dentre as irregularidades citou fissuras, trincas inclinadas e mapeadas em diversas paredes, as quais ocasionam infiltrações de água pluvial; vazamentos na instalação hidráulica que atingem principalmente os banheiros das celas; as condições de salubridade das celas estão comprometidas em virtude dos vazamentos, infiltrações, mofo e bolor; a pintura interna e externa se encontra em mau estado; o sistema elétrico está subdimensionado para as condições atuais e a iluminação artificial, interna e externa, é precária; o sistema de esgotamento sanitário está subdimensionado, ocorrendo transbordamento das caixas e solapamento dos sumidouros. Diversas tampas de caixas de inspeção e fossas sépticas estão quebradas; o fechamento geral do estabelecimento penal não oferece segurança, em virtude da altura insuficiente e de parte do muro estar sem proteção com cerca de arame farpado; também não existem obstáculos sobre as coberturas das construções edificadas junto às divisas; não há nenhum tipo de monitoramento eletrônico nem mesmo guaritas que possibilitem a visualização de todo o perímetro interno e externo do Presídio; além disso, o Presídio foi construído para abrigar 24 pessoas, distribuídas em 06 celas coletivas, porém atualmente existem mais de 110 presos, ou seja, um excesso de 358% de ocupação sobre a capacidade normal.

Continua o Ministério Público no sentido de que a omissão do Estado somente vem se perpetrando, agravando-se com o passar do tempo, tornando a situação insustentável, tanto do ponto de vista da segurança, dos direitos dos presos e mesmo da população local. Salienta que as condições mencionadas comprometem a ressocialização dos reeducandos e presos provisórios. O ambiente do presídio é insalubre e não há condições mínimas de conforto, higiene, iluminação e aeração. A umidade do ar é muito elevada, já que não há incidência de luz solar e ventilação adequada; as instalações elétricas são precárias e ainda há fios expostos, os banheiros são inadequados, há imundice de toda a espécie pelo chão e o odor causa náusea.

Menciona ainda que não há servidores públicos em quantidade necessária para a regularidade do funcionamento do estabelecimento.


Prossegue com a afirmação de que o Ministério Público está legitimado para o ajuizamento da presente ação, conforme artigo 129, inciso III, da Constituição da República e outras normas que citou. Afirmou também ser esse o juízo competente para apreciar a questão, conforme disposição expressa da Lei n.º 7.347/85. Mencionou ser o juízo das execuções penais o competente para eventual interdição do estabelecimento penal.

Sobre a necessidade da antecipação da tutela, salientou que o “fumus boni iuris” está configurado, já que existe prova inequívoca de que os direitos dos presos estão sendo violados, além da falta de segurança decorrente da precária estrutura do estabelecimento. Já no que toca ao “periculum in mora”, sustenta que as condições em que se encontram os internos podem causar danos irreparáveis ou de difícil reparação à saúde e integridade física deles, além de haver sério risco da ocorrência de danos também para a população e servidores públicos, em razão da falta de segurança. Citou doutrina, jurisprudência e legislação para embasar a necessidade da concessão da tutela antecipada.

Por fim, requereu: a concessão de liminar de antecipação da tutela, a fim de que seja interditado o Presídio Masculino de Bagaguassu, até que os requeridos reestruturem e reformem o local, providências estas que coincidem com o objeto da Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público em 2004 (Autos de Processo n.º 026.04.100075-2); remoção de todos os presos para outras unidades prisionais, sob pena de multa diária e solidária de R$ 2.000,00 pelo descumprimento da ordem; confirmação da liminar por sentença definitiva; citação dos réus na forma da Lei; produção de todas as provas admitidas em direito, especialmente pericial, testemunhal e documental. Atribuiu à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Juntou documentos.

A tutela antecipada foi concedida por meio da sentença de fls. 153/170.

As rés foram citadas e intimadas da liminar, conforme se comprova por meio das fls. 171/174.v. e fls. 192/197.

A fls. 177/178 as partes juntaram termo de acordo, por meio do qual as rés se comprometeram a tomar algumas providências para amenizar os problemas relatados na inicial, além de requererem a suspensão provisória do feito, o que foi homologado por este juízo.

A ré AGEPEN compareceu a fls. 202/204 para comunicar o cumprimento dos compromissos que assumiu quando da suspensão do feito, sendo que em tal oportunidade juntou os documentos de fls. 205/253.

A fls. 257 o Ministério Público requereu a intimação das rés, a fim de que comprovassem a supressão de todas as irregularidades existentes no estabelecimento penal.

A fls. 260/280 o Estado de Mato Grosso do Sul apresentou contestação, por meio da qual, entre outras coisas, alegou em preliminar litispendência, em razão do objeto desta demanda coincidir, ainda que em parte, com o da Ação Civil Pública 026.04.100075-2, também em trâmite neste juízo. Ainda em sede de preliminar, a parte ré alega que não há interesse de agir na propositura da presente demanda, visto que a situação prisional estadual é crônica e a presente demanda somente viria a agravá-la.

No mérito, a ré alega que não teria o Poder Judiciário possibilidade de ingerir nos assuntos do Poder Executivo, pois o gerenciamento da segurança pública seria atividade tipicamente administrativa e a tal ingerência poderia caracterizar afronta ao mérito do ato administrativo, o que é vedado, segundo sustenta. Alegou também o princípio da reserva do possível, segundo o qual a consecução dos direitos sociais e individuais estaria condicionada a limitações de ordem econômica e orçamentária. Prossegue no sentido de que o Estado de Mato Grosso do Sul está envidando esforços para solucionar a problema carcerário, sendo que eventual procedência da presente demanda, ao invés de contribuir para a solução, somente agravaria a situação caótica em que já se encontra o sistema prisional. Alegou outras questões, direta ou indiretamente, relacionadas às já citadas acima e finalizou requerendo a improcedência da presente demanda.

Sobre a contestação o Ministério Público manifestou-se a fls. 289/296, oportunidade em que refutou os argumentos da ré.

A fls. 303/305 a AGEPEN juntou informações requisitadas por esse juízo.

A fls. 316, de acordo com manifestação do Ministério Público, foi deferida nova suspensão do processo, a fim de que as rés pudessem adimplir acordo assumido nos autos.

Novas informações da AGEPEN a fls. 321/322.

O Ministério Público voltou a se manifestar a fls. 333/334, oportunidade em que alegou que os compromissos assumidos pelas rés não foram cumpridos, requerendo que fosse restabelecida a liminar já deferida nos autos.

Foi expedido mandado de constatação, o qual foi juntado a fls. 340/342.

Esclarecimentos da AGEPEN a fls. 345/346.

O Estado de Mato Grosso do Sul manifestou-se a fls. 350/351, requerendo nova concessão de prazo para conclusão das obras.

Foram juntados novos documentos e concedido às partes prazo para se manifestação, em vista de possível prolação de decisão nos autos.

Somente o Ministério Público manifestou-se, por meio do arrazoado de fls. 366/367, oportunidade em que reiterou o pedido de interdição do estabelecimento penal.

Vieram conclusos.

É a síntese do necessário.

Decido.

Ao analisar os autos, entendo que o feito comporta julgamento antecipado, uma vez que embora a questão seja de fato e de direito, não se faz necessária a produção de outras provas, além das já constantes dos autos, tudo nos termos do que dispõe o art. 330, inciso I, do CPC.

Nos autos já constam provas suficientes para a solução da contenda e a postergação do feito somente traria mais prejuízos às partes, bem como à prestação jurisdicional, o qual já se encontra, de certa forma, atrasada, em virtude dos prazos que foram concedidos para que a parte ré cumprisse os compromissos assumidos com o Ministério Público.

De início, saliento que por se tratar de Ação Civil Pública, afeta à atividade tipicamente jurisdicional do Poder Judiciário, entendo não ser caso de incidência do art. 296 do Código de Normas da Corregedoria deste Estado, já que o procedimento de interdição não seguiu o regramento administrativo previsto no art. 294 e seguintes do Código de Normas já citado.

Isso se dá em razão da presente demanda se fundar em Legislação Federal, no caso Lei 7.347/85, razão pela qual, por questão de lógica, descarta-se todo regramento que esteja, em termos de hierarquia legislativa, abaixo de tal Lei. É justamente o caso do Código de Normas da Corregedoria local, o qual não ostenta a natureza de Lei em sentido estrito. É norma, mas não oriunda dos órgãos legiferantes previstos na Constituição da República. Trata-se de norma interna da Corregedoria do nosso Estado. É uma norma que mescla conteúdo administrativo e normativo. Vincula apenas os órgãos e agentes que estejam sob sua hierarquia, desde que não contrarie outras normas que estejam em nível legal superior.

Acreditamos que o regramento da Corregedoria local aplica-se somente quando a decisão de interditar o estabelecimento penal parta do próprio juízo das execuções penais, por meio de Portaria, ou provocado, siga tal regramento, pois a decisão de interdição de estabelecimento penal, quando oriunda do procedimento previsto no Código de Normas da Corregedoria, assemelha-se a decisão administrativa, não jurisdicional, como são as em uma Ação Civil Pública.
Com base nas singelas, porém incisivas afirmações, entendo que não há impedimento para que esse juízo aprecie a matéria posta em juízo, mesmo sem a intervenção da Corregedoria Geral da Justiça do Estado.

O Estado de Mato Grosso do Sul, quando apresentou sua contestação, alegou duas preliminares, as quais passo a apreciar.

De início, alegou que há litispendência entre a presente demanda e os autos 026.04.100075-2, que também tramitam nesta Vara. Ao se analisar o objeto daqueles autos, verifico que se trata de uma ação de obrigação de fazer, intentada pelo Ministério Público local, tendo no pólo passivo o Estado de Mato Grosso do Sul.

Cuidando-se especificamente do objeto daquela demanda, temos que os pedidos são os seguintes: remoção de presos; proibição de ingresso de outros; reparos no estabelecimento penal; apresentação de projeto para adequação do estabelecimento penal; remoção em definitivo de internos que cumprem medida de segurança no local e proibição de deslocamento de policiais civis para atender demandas de presos;

Já o objeto da presente demanda, como podemos comprovar por meio da leitura dos pedidos de fls. 22/23, consiste em interdição do estabelecimento penal, até que sejam atendidas as exigências que justamente são objeto dos autos de número 026.04.100075-2, citados pela ré.

Como podemos notar, não existe litispendência entre as demandas, pois embora sejam as partes coincidentes, o objeto de uma ação não se confunde com o da outra.

Nos autos 026.04.100075-2 não consta pedido de interdição do estabelecimento penal, sendo que é justamente esse o objeto da presente demanda, de onde se extraí que não tem razão a ré, quando alega haver litispendência entre as demandas. Assim sendo, por tais argumentos, afasto a alegação em questão.

A outra preliminar alegada consiste na falta de interesse de agir, embora, em nosso sentir, tenha havido certa confusão entre interesse de agir, legitimidade de parte e mérito. Quando alega falta de interesse de agir, a ré sustenta, em síntese, que em vista da situação prisional crônica do Estado, a presente demanda, caso procedente, somente serviria para agravar o estado já caótico do nosso sistema prisional, entre outros empecilhos para o ajuizamento da presente demanda.

Sobre tal alegação, entendo que o Ministério Público tem, entre suas funções constitucionais, zelar pelos interesses difusos e pelo cumprimento da Lei, seja infraconstitucional ou da própria CF.

Nesse contexto, notamos que a pretensão do Ministério Público, na presente demanda, como bem frisado pelo ilustre representante da instituição, é preservar, em primeiro lugar, os interesses e direito dos internos, o que, em contrapartida, faz com que se exija nova postura por parte do Poder Público, frente à eleição de políticas públicas e aplicação dos recursos oriundos das diversas fontes de custeio e manutenção da máquina Estatal. Não vejo qualquer empecilho no ajuizamento da presente demanda, por parte do Ministério Público, pois o que faz, na verdade, é cumprir sua função, expressamente prevista em Lei. É parte legítima para ingressar com esta ação e há, ao contrário do que sustenta a ré, interesse processual no caso dos autos.

Sobre interesse processual, cabe acrescentar que a doutrina especializada nos ensina que tal condição da ação subdivide-se em interesse necessidade e interesse adequação. O primeiro informa que há interesse processual quando a parte não detém meios de resolver a questão posta em juízo por outras formas que não a utilização do Poder Judiciário. Já a adequação consiste na utilização da via correta para buscar o que se pretende.

Ao analisar o caso dos autos, entendo que os dois aspectos do interesse processual então presentes, uma vez que não há, evidentemente, outro meio de se resolver o problema posto na inicial, tanto que mesmo após diversas suspensões do processo, concessão de prazos, até o presente momento a situação relatada na inicial não se revolveu. A via da Ação Civil Pública, em nosso sentir, tendo em vista os interesses envolvidos e a qualidade das partes, serve perfeitamente como instrumento para se atingir o objetivo posto na inicial. Afasto, pois, a alegação de falta de interesse processual.

Passo ao mérito.

O presente processo versa sobre interdição do Estabelecimento Penal Masculino dessa Comarca, o qual, segundo alega a parte autora, não atende a condições mínimas para a manutenção de pessoas em seu interior. As deficiências, segundo consta, são de ordem estrutural, segurança, higiene, salubridade, entre outras.

De fato, em virtude de nossa atuação como juiz da execução penal e corregedor dos presídios nesta Comarca, é de nosso conhecimento que o estabelecimento em questão foi construído para funcionar como Cadeia Pública, com capacidade para 24 pessoas, segundo plano estrutural e informações que constam dos autos.

Até o ano de 2005 o local era administrado pela Polícia Civil, em situação de improviso, sendo que a AGEPEN somente assumiu a administração do estabelecimento após o Ministério Público ter ingressado com a Ação Civil Pública n.º 026.04.100075-2, a qual tramita nesta Vara.

De lá pra cá pouca coisa foi feita em termos de ampliação, reforma e adequação do presídio, tanto que a ação mencionada logo acima está em trâmite e em vista de ser julgada por esse juízo. Por outro lado, a demanda de presos não acompanhou o ritmo lento do Poder Executivo, ou seja, o número de presos em nossa Comarca, ao menos durante os poucos mais de 04 anos que aqui atuamos, tem aumentado ciclicamente e chegamos, quando do ingresso da presente demanda, a abrigar aproximadamente 110 (cento e dez) presos em um local destinado para apenas 24 (vinte e quatro), situação que melhorou um pouco com a transferência de alguns presos, conforme compromissos assumidos nestes autos e proibição de recebimento de presos que não sejam de processos desta Comarca. Ainda assim, nos últimos meses temos percebido que o número de ocorrências envolvendo pessoas presas tem aumentado, o que dificulta a manutenção de número razoável de internos no Estabelecimento Penal Masculino local.

Por outro lado, presenciamos os esforços dos servidores da AGEPEN e do Conselho da Comunidade em providenciar as adequações do estabelecimento penal, conforme exigências do Ministério Público, mas não vemos o mesmo comprometimento por parte do Poder Executivo Estadual, sobretudo pela Secretaria de Segurança Pública do nosso Estado.

Atualmente, segundo última visita feita por nós no local, percebemos que a ampliação do estabelecimento está em andamento, mas não a reforma e adequação em termos de segurança e salubridade, o que torna preocupante a questão e enseja atuação mais enérgica por parte das autoridades incumbidas de fiscalização dos estabelecimentos penais e do cumprimento das penas e prisões provisórias. A situação acima descrita está clara no auto de constatação de fls. 340/342, bem como documentos que acompanham a inicial .

O resultado do quadro por nós presenciado é a condição carcerária precária que se apresenta em nossa Comarca, a qual não destoa, como é de conhecimento público e notório, do restante do Estado, de modo que com isso se cria uma insuportável acumulação de detentos em espaços reduzidos, gerando muita instabilidade entre eles e falta de segurança, para todos: presos, agentes penitenciários, membros do Poder Judiciário, membros do Ministério Público e mesmo da população de modo geral.

Ao contrário do que pretende o réu Estado de Mato Grosso do Sul, eventual improcedência da presente demanda não pode ser justificada pelo possível agravamento da situação prisional, ou seja, segundo alega, caso procedente a demanda, a conseqüência seria um presídio a menos no Estado, agravando a situação dos outros. Ora, tal alegação é no mínimo inusitada, pois o réu pretende se locupletar da própria inércia. Caso seguido o réu raciocínio, quanto pior estivesse a situação prisional, ainda que decorrente da inércia e irresponsabilidade do Poder Executivo, menos iniciativas poderiam ser tomadas pelo Ministério Público, Poder Judiciário, ou quem de direito. Tal entendimento vai de encontro com todas as conquistas do Estado Democrático de Direito, pautado da Lei e nas diversas garantias previstas na Constituição Federal.

Para agravar a situação descrita logo acima, não podemos esquecer de que a Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84, art. 84) diferencia o preso provisório do preso definitivo ou condenado, sendo que em nosso Estabelecimento Penal não há condições, conforme podemos comprovar pelo que consta dos autos, de que tal distinção seja feita.

Como já dito, a população carcerária continua crescendo e a cada novo preso há a natural perda de espaço e o aumento da superlotação, agravando-se a situação. Para se ter uma idéia do que aqui falamos, quando celebrado acordo nestes autos, em meados do ano de 2009, estipulou-se que o limite de presos deveria girar em torno de no máximo 60 a 65 pessoas, quantitativo que foi obtido no início, logo após a transferência de 30 internos do regime fechado, para outras localidades, e aproximadamente 20 do regime semi-aberto, para a então recente criada ala do semi-aberto da comarca, a qual, diga-se de passagem, somente foi construída e colocada em funcionamento graças ao empenho dos próprios servidores da AGEPEN e do Conselho da Comunidade de Bataguassu.

Atualmente, em recente visita, constatamos que o número de presos do regime fechado está em torno de 80, de modo que podemos concluir que em menos de 02 anos o número de presos no local aumentou em quantitativo aproximado de 35%, quantia extremamente elevada para período tão curto.

Salientamos que desde o acordo celebrado nestes autos não temos mais recebido presos que não sejam de processos que tramitam nesta Comarca, porém a cidade está crescendo e com ela a criminalidade também. Temos dados importantes que precisam ser considerados para fins estatísticos.

Recentemente o Município de Santa Rita do Pardo foi anexado à circunscrição judiciária de Bataguassu, de modo que os presos oriundos daquela cidade, a partir de então, são de nossa responsabilidade. Antes tínhamos apenas um delegado de polícia, atualmente contamos com dois, o que certamente tem gerado maior repressão ao crime e mais prisões. Muitas prisões também têm ocorrido na Rodovia Federal BR 267, que atravessa nossa cidade, em sua maioria por pessoas flagradas na prática de tráfico de substância entorpecente. Todas as circunstâncias citadas contribuem para o incremento da população carcerária e não estão sendo levadas em consideração pelo Poder Executivo Estadual, o qual aparentemente não reconhece que a situação peculiar de Bataguassu, sobretudo o fato de se tratar de rota de tráfico e divida de Estados, demanda atenção especial para a situação carcerária por nós aqui vivenciada.

Nesse contexto, é de extrema relevância consignar que a Lei federal n.º 7210/1984, Lei de Execução Penal, determina as regras e condições mínimas de encarceramento dos estabelecimentos penais, os direitos e deveres dos presos, a assistência (material, à saúde, jurídica, educacional, social, religiosa), dentre outros, além do dever da autoridade judiciária (juízo da execução ou da sentença) de inspecionar e interditar o estabelecimento penal que estiver funcionando em desconformidade com LEP.

Embora a Lei de Execução Penal seja clara quanto às condições mencionadas acima, notamos certo descaso e inércia do Poder Executivo, uando o assunto é sistema carcerário, sendo que chegamos a absurdos em que há nversão de papéis, como é o caso deste Estado, onde por vezes presenciamos esponsabilidades administrativas do Estado serem transferidas a magistrados, rincipalmente no que toca à obtenção de vagas para presos. O que se nota é que o oder Público, no caso Poder Executivo, por seus órgãos e entidades incumbidos de erenciar o sistema carcerário, desrespeita regras mínimas previstas na LEP e CF, eixando com que presos permaneçam em prisões cada vez mais improvisadas, mundas e superlotadas, destituídos de toda assistência ou de perspectivas de elhoria (condições mínimas de salubridade e segurança), vilipendiados nos direitos ão atingidos pela restrição da liberdade, principalmente na integridade física e moral, iolando-se, com isso, como bem lembrado pelo insigne membro do Ministério Público ue ajuizou a presente demanda, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre o tema, trazemos à colação alguns dispositivos da Lei de Execução Penal (Lei n.º 7210/84), assim redigidos:


"Art. 40. Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade ísica e moral dos condenados e dos presos provisórios.
Art. 41. Constituem direitos do preso:
I - alimentação suficiente e vestuário;
II - atribuição de trabalho e sua remuneração;
III - previdência social;
IV - constituição de pecúlio;
V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
XI - chamamento nominal;
XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivador do diretor do estabelecimento.
Art. 42. Aplica-se ao preso provisório e ao submetido à medida de segurança, no que couber, o disposto nesta Seção."8.


Como se não bastasse a situação de superlotação, podemos comprovar pelos documentos que instruem a inicial, bem como pelas demais provas que foram produzidas durante o trâmite do processo, que são inadequadas as instalações físicas, elétricas e hidráulicas e condições de higiene do estabelecimento penal.

Considerando-se a situação em conjunto, presenciamos condições de vida inadequadas, mesmo para pessoas que estão cumprindo penas por crimes que cometeram na sociedade em que vivem.

A fim de comprovar que o rigor das penas não deve ir além dos seus objetivos, acredito ser pertinente citar trecho da célebre obra “Dos Delitos e das Penas”, imputada ao pensador Cesare Beccaria. Vejamos o que disse: 

“(...) É evidente que, pelas simples considerações das verdades até aqui expostas, não é o objetivo das penas atormentar e afligir um ser sensível, nem destruir um crime já cometido. Um corpo político, que, em lugar de proceder por paixões, é o tranqüilo moderador das paixões particulares, pode abrigar esta inútil crueldade, instrumento de furor e do fanatismo, ou dos tiranos fracos- Os gritos de um infeliz arrancariam as ações já consumadas, através do tempo, que não retrocede- O fim, portanto, é impedir que o réu faça novos danos aos seus considadãos, e impedir que os demais cometam outros iguais. Devem ser, portanto, escolhidas aquelas penas e aqueles métodos de aplicá-las que, guardada a proporção, exerçam impressão mais eficaz e duradoura sobre os ânimos dos homens, a menos tormentosa sobre o corpo do réu (...)”

Em vista da situação em que vivem, os presos estão mais propensos a agressões mútuas e em relação aos próprios agentes penitenciários, rebeliões e fugas. A superlotação e baixo número de servidores estatais impede o controle do estabelecimento, além de criar situações em que muitas vezes alguns são obrigados ao revezamento até mesmo para dormir, ocasiões em que, por vezes, impera a Lei do “mais forte”. Em tal situação, eventuais desentendimentos causam ferimentos e mortes, sem contar os inúmeros casos de contágio por doenças infecciosas e letais, acompanhadas do risco de disseminação à população em geral, gerando cada vez maior responsabilidade do Estado, além, é claro, de inevitáveis danos ao já parco e escasso aparato estatal.

Não é sem razão que Evandro Lins e Silva observa:

Prisão é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, como uma forma ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocializar, como sonharam os nossos antepassados- Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou. E o estigma da prisão- Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu pena por crime considerado grave- Os egressos do cárcere estão sujeitos a uma outra terrível condenação: o desemprego. Pior que tudo, são atirados a uma obrigatória marginalização. Legalmente, dentro dos padrões convencionais não podem viver ou sobreviver. A sociedade que os enclausurou, sob o pretexto hipócrita de reinserí-lo depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver alternativa, o ex-condenado só tem uma solução: incorporar-se ao crime organizado. Não é demais martelar: a cadeia fabrica delinqüentes, cuja quantidade cresce na medida e na proporção em que for maior o número de presos ou condenados (In Anais do 1° Encontro Nacional da Execução Penal. LEITE, George Lopes (org.). Distrito Federal: 17 a 20 de agosto de 1998, Fundação de Apoio à Pesquisa no Distrito Federal - FAP/DF, 1998, pp. 41 e 42).

Cumpre ressaltar que qualquer pessoa que seja detida, ainda que sob a acusação de crime grave, somente poderá ser privada do direito à liberdade, conservando os demais direitos fundamentais inerentes à sua condição humana, tais como os relativos à saúde, à integridade física e moral e ao tratamento digno, os quais não podem ser afetados em vista da restrição da liberdade.
É justamente o que se extrai do art. 3º da Lei de Execuções Penais, assim redigido:

Art. 3.º - Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

Os direitos em questão, não atingidos pela prisão e condenação, derivam, em sua maioria, de preceitos constitucionais, com características de cláusulas pétreas, além de normas constantes de convenções e tratados internacionais de que o Brasil é signatário.

Nesse sentido, o Estado brasileiro elege o princípio da dignidade da pessoa como fundamento da República, conforme estabelece o artigo 1º, da Constituição Federal e a mesma Carta Política prevê, no seu art. 5.°, entre outras coisas, que:

Art. 5.º, “caput” - todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...);
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
XLIX – É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

Já o artigo 10 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16/12/1966 e ratificado pelo Brasil, sem reservas ou declarações restritivas, por meio do Decreto n.º 592, de 06/07/1992, impõe que:

Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana.

Os direitos humanos mínimos para a vida em sociedade estão em voga mundial desde 1948, com A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10/12/1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, pois tal documento proclamou, entre outras coisas, que "ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques."

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgado pelo Decreto n.º 678, de 06/11/1992, impôs deveres aos Estados-Partes, dentre outros, de observarem regras mínimas referentes ao Direito à Vida (art. 4.º), à integridade pessoal (art. 5.º), à liberdade pessoal (art. 7.º), às garantias judiciais (art. 8.º), ao princípio da legalidade e da Retroatividade (art. 9.º), à indenização (art. 10), à igualdade perante a lei (art. 24), à proteção judicial (art. 25).

Tais normas, promulgadas por decreto, estão incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro por força do art. 5.º, § 2.º da Constituição Federal, a qual diz textualmente que "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."

A Lei de Execução Penal prevê uma séria de disposições sobre como as penas devem ser cumpridas, sendo que boa parte já foi transcrita acima, dispensando-se a nova colação, não nos podendo olvidar de que causa evidente constrangimento ilegal a falta de estabelecimento prisional adequado para o cumprimento de penas.

Quando o Estado desatende aos requisitos mínimos exigidos para a punição dos presos e condenados, perde a legitimidade para impor sanções penais aos indivíduos e se sujeita à responsabilização civil, penal e administrativa. A legislação é clara e estipula condições de espaço mínimo e de ambiente saudável para o cumprimento das penas, conforme artigos 88 e 104, da Lei n.º 7.210/84.

Nunca é demais lembrar que a administração pública está adstrita à observância da lei e é justamente o princípio da legalidade, previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal, o qual informa que incumbe ao poder público o dever de aplicar a lei em todas as hipóteses nela previstas, não sendo admissível que a desídia ou a simples vontade da autoridade transcenda, modifique ou adapte o texto legal às suas particulares conveniências, ressalvados os casos de inconstitucionalidade ou excepcionalidade. Em outras palavras, à administração só cabe fazer aquilo que a lei autoriza e determina, dentro do espaço que ela permite, e quando permite, situação que, infelizmente não presenciamos nos autos em análise, já que o Poder Executivo não tem se desincumbido de cumprir o que está na Lei e na Constituição Federal.

Cabe acrescentar que os termos peremptórios constantes da legislação pertinente à restrição da liberdade dos presos e detidos não permitem esfera de discricionariedade às autoridades responsáveis pelo seu atendimento. São atos vinculados, os quais, por fixarem prévia e objetiva tipificação legal do único e possível comportamento da administração em face de situação concreta, não admitem apreciação subjetiva de espécie alguma. Ou seja, ocorrido o fato descrito na norma, deve a autoridade realizar o ato na forma prevista na lei, sem hipótese de flexibilização ou alteração segundo sua conveniência ou oportunidade.

Age arbitrariamente o agente que atropela a lei, que deixa de agir quando a lei impõe uma atitude, ou age de modo a desvirtuar o seu real intento, favorecendo ou prejudicando alguém ou a coletividade em benefício próprio ou alheio, ou por mera comodidade. Trata-se de ato ilegal, e por isso mesmo deve ser corrigido pelo judiciário, além de sujeitar as autoridades à responsabilização devida.

O que temos percebido pelo modo de proceder das rés é que as promessas e compromissos para solução dos problemas apontados permanecem, por vezes, descumpridos, mesmo diante do deferimento de novos prazos e assim o Ministério Público, o Judiciário, os presos, os servidores e mesmo a população, permanecem aguardando soluções que nunca vêm, o que gera, a cada dia, novos e mais difíceis desafios para o gerenciamento da população carcerária, a qual, como já dito, cresce de maneira exponencial.

Diante a inércia do Poder Executivo, mesmo instado a se manifestar, bem como do evidente descumprimento da Lei, não resta outra alternativa a não ser a intervenção do Poder Judiciário, não se tratando de ingerência em ato discricionário, mas sim vinculado, pois se a Administração só pode agir de acordo com a Lei e esta é clara em seus mandamentos, ao haver a desobediência, surge ilegalidade, abrindo-se, então, campo para a ingerência do Poder Judiciário.

Diante do que foi exposto e consta dos autos, vemos que, de fato, a situação em que se encontram os presos, provisórios e definitivos, no estabelecimento penal masculino desta cidade, é deplorável, mesmo diante do esforço envidado, sobretudo por parte dos atuantes membros do Ministério Público que oficiam na Comarca, bem como por parte deste juízo.

Como já dito, a precariedade do Estabelecimento Penal Masculino é do conhecimento dos réus, seja por meio dos servidores que aqui trabalham, seja por meio de outra ação Ação Civil Pública que já tramita nesta Comarca (autos n.º 026.04.100075-2), na qual o Estado foi devidamente citado, porém até a presente data não se movimentou para resolver a situação. Nos autos foram comprovadas algumas medidas tomadas pelos réus, porém muito longe do ideal e do que se espera por meio das ações judiciais que já foram ajuizadas.

Certo é que as penas, segundo doutrina autorizada, foram criadas como forma de retribuição e prevenção, especial e geral, porém não podem ultrapassar os limites previstos em Lei, o que vem acontecendo em nossa Comarca, situação com a qual tanto o Ministério Público como o Poder Judiciário não podem compactuar, risco de se tornarem coniventes com a omissão Estatal.

O sofrimento é ínsito ao cumprimento de penas privativas de liberdade, porém, como já dito, limites existem para serem seguidos, sob risco da pena tornar-se cruel, com ofensa direta ao previsto na alínea “e” do inciso XLVII da Constituição Federal.

Sobre os limites das penas, as conseqüências que elas trazem ao espírito humano, ouso trazer à colação pequeno trecho de obra literária atribuída ao pensador Vitor Hugo. São seus os seguintes dizeres:

Em outros tempos – porque me parece que anos e não semanas se têm passado - , eu era um homem como qualquer outro. Cada dia, cada hora, cada minuto tinha a sua idéia. O meu espírito jovem e rico estava cheio de fantasia. Divertia-se a desenrolar ante meus olhos uns depois dos outros, sem ordem, nem fim, adornando de inesgotáveis arabescos este rude e fraco tecido da vida. Ora eram donzelas, esplêndidas capas de bispos, batalhas ganhas, teatros cheios de ruído e de luz, ora novas donzelas e sombrios passeios durante a noite sob as copas dos castanheiros. Na minha imaginação vivia uma eterna festa. Eu podia pensar no que queria, era livre. Hoje estou preso. O meu corpo está preso numa masmorra, o meu espírito está preso por uma idéia. Uma horrível, uma sangrenta, uma implacável idéia! Só tenho um pensamento, uma convicção, uma certeza: condenado à morte! (Vitor Hugo, O Último Dia de Um Condenado, Golden Books, São Paulo, 2005, p.10)

Guardadas as devidas proporções, já que o texto trata da pena de morte, ordinariamente inexistente em nosso ordenamento, em vista do que se extrai da leitura acima, bem como pelo que perceptível é ao senso comum, o fato de uma pessoa estar isolada do mundo, cumprindo sua pena privativa de liberdade, já traz, por si só, diversas conseqüências a ela e a todas as pessoas que, de alguma forma, a ela estavam ligadas antes da privação de liberdade. Assim sendo, cumpre aos agentes públicos, de todos os níveis, responsáveis direta ou indiretamente pelo cumprimento da penas, zelar para que, na medida do possível, sejam atendidas condições mínimas de dignidade para o cumprimento das penas, sobretudo as que geram privação do direito de ir e vir.

No caso da nossa Comarca, como já relatado, comprovamos que estão sendo desatendidos diversos preceitos da Lei de Execução Penal e da Constituição da República, dentre os quais, existência de áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva (art. 83, LEP), separação de presos provisórios dos definitivos (art. 84, LEP), bem como primários de reincidentes (parágrafo 1.º do art. 84, LEP), lotação compatível com a estrutura e finalidade (art. 85, LEP), área mínima de cela, com salubridade, aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana (art. 88, LEP), construção afastada do centro urbano (art. 90. LEP), entre tantos outros dispositivos da Lei de Execução Penal.

Em relação à Constituição da República, a manutenção do presídio masculino na situação em que se encontra fere os seguintes princípios: Dignidade da Pessoa Humana, Legalidade e Igualdade.

Como facilmente se denota, o estabelecimento penal masculino local está ferindo regras básicas da existência do ser humano, contrariando todos os avanços que foram adquiridos com o passar dos anos e que hoje se encontram de forma expressa nos Códigos, Leis e na Carta Política.

Sobre a importância dos Direitos Humanos nos dias atuais, vejamos o que nos ensina Bobbio. Diz o sábio:

A princípio, a enorme importância do tema dos direitos do homem depende do fato de ele estar extremamente ligado aos dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Vale sempre o velho ditado – e recentemente tivemos uma nova experiência – que diz inter arma silent leges. Hoje, estamos cada vez mais convencidos de que o ideal da paz perpétua só pode ser perseguido através de uma democratização progressiva do sistema internacional e que essa democratização não pode estar separada da gradual e cada vez mais efetiva proteção dos direitos do homem, acima de cada um dos Estados. Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos não existe democracia, sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indivíduos, entre os grupos e entre as grandes coletividades tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticas que são dos Estados, apesar de serem democrátcias com os próprios cidadãos (Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Editora Campus, Rio de Janeiro, 2004, 9.ª ed, p. 223).

Aplicando-se as lições de Bobbio ao processo de execução da pena, chegamos à conclusão de que sem a percepção de que todo o processo de execução da pena está pautado em condições mínimas de dignidade do ser humano, inviável se torna o cumprimento da nossa Constituição Democrática. A pena desnatura-se e perde suas finalidades básicas já mencionadas, quais sejam, retribuição, prevenção, geral e especial, bem como, e acima de tudo, tentativa de reinserir o reeducando ao meio social.

Cria-se, com exemplos como o da nossa Comarca, um “arremedo” de Execução de Penas, que se afasta, em muito, dos padrões mínimos, reconhecidos tanto dentro do nosso país como em nível internacional.

Com o advento da Constituição de 1988 percebe-se a ratificação de diversas garantias e preceitos inerentes ao direito penal e à pessoa do preso, que foram sendo reconhecidos e trabalhados durante os anos, principalmente após a Segunda Grande Guerra, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas, assinada em 1948.

Dentre as importantes conquistas hoje reconhecidas pela Lei Maior do nosso País, citamos a dignidade da pessoa humana, que apesar de não se referir de forma específica ao preso, acaba por ser aplicada a ele, por ingerência lógica. Como se denota, tanto a Constituição Federal como a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) deixam claro o objetivo de reintegração social do condenado, o que demanda, para que isso efetivamente ocorra, condições mínimas de existência e dignidade humanas durante o cumprimento da pena. Não foi por outra razão que a Lei de Execução Penal previu, de forma expressa, ao lado da gama de direitos e obrigações dos presos, a necessidade de estruturação dos locais em que as penas deverão ser executadas.

Com base em tudo o que foi dito, bem como nos documentos que acompanham a inicial, entendo que o caminho a ser seguido é o da procedência do pedido inicial, devendo ser interditado o estabelecimento penal masculino, sob pena de continuidade de ofensas aos direitos citados acima.

Como bem lembrado pelo Ministério Público, além de se encontrar em risco a saúde e segurança dos presos e dos servidores que atuam no local, não se pode descurar de que o estabelecimento penal está localizado em área densamente povoada. A quadra em que está localizado o presídio é circundada por diversas residências, já que o estabelecimento foi construído e atualmente funciona no centro desta pequena cidade.

A segurança é pífia, de modo que o risco de fugas, motins e rebeliões é constante, o que conduz ao perigo iminente à vida, integridade, paz e sossego dos moradores desta cidade, aos servidores da AGEPEN, policiais que fazem segurança externa, bem como aos próprios detentos que, ao acaso, não tomarem parte de atos como os mencionados acima. Como já disse anteriormente, no mesmo local, sem qualquer separação, cumprem pena presos provisórios e definitivos, primários e reincidentes, de compleições físicas variadas.

Ultrapassadas as questões que demandavam análise detida, passo à conclusão propriamente dita.

Diante de todo o exposto e pelo que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO INICIAL, para o fim específico de determinar a interdição do Estabelecimento Penal Masculino de BATAGUASSU/MS, ficando ainda determinada, sob pena de crime de desobediência e sujeição à multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a remoção dos presos do regime fechado para outros estabelecimentos penais, o que deverá ser feito no prazo máximo de 90 (noventa) dias, contados da intimação da presente decisão.

O prazo acima exposto justifica-se em razão de algumas medidas de melhoria já estarem em andamento, as quais poderão ser concretizadas dentro do referido prazo, bem como pela dificuldade em se remover os internos, caso seja necessário, situação essa que é de conhecimento público e notório, sobretudo por parte das autoridades incumbidas de atividades ligadas à Execução das Penas em nosso Estado, como é o caso deste julgador.

Também sob pena de crime de desobediência e sujeição à pena pecuniária acima fixada, fica, a partir da intimação da presente decisão, terminantemente vedado o ingresso de novos presos, provisórios ou definitivos, no estabelecimento em questão, salvo se oriundos de processos dessa comarca, sendo que ultrapassados os 90 dias citados acima, fica vedado o ingresso de qualquer preso, já que o estabelecimento deverá ser totalmente desativado, com a retirada de todos os internos que lá se encontrarem.

A interdição é decreta por prazo indeterminado e perdurará até que exista, na Comarca, no atual local ou em outro, estabelecimento adequado, dentro dos padrões mínimos de segurança, saúde, higiene e humanidade, em especial que atenda aos pedidos que são objeto dos autos 026.04.100075-2, os quais tramitam nessa Comarca.

Como conseqüência, decreto a extinção do processo, com base no art. 269, inciso I, do CPC.

Sem custas, nem honorários.

Independentemente do trânsito em julgado, remetam-se cópias ao Secretário de Segurança Pública do Estado, à Corregedoria Geral da Justiça do nosso Estado e à Corregedoria Nacional da Justiça, junto ao CNJ e à Direção do Estabelecimento penal objeto da demanda.

P.R.I.

Bataguassu, 31 de maio de 2011.
Cássio Roberto dos Santos
Juiz de Direito

__________

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