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Justiça garante cobertura de hemodiálise mesmo que contrato exclua tratamento

A 3ª câmara de Direito Privado do TJ/SP garante que cobertura da hemodiálise não pode ser negada pela operadora de saúde, mesmo que no contrato contenha cláusula excluindo o tratamento. O desembargador Beretta da Silveira, relator, entendeu que "limitações constantes no contrato constituem prática abusiva, fundada no abuso do poder econômico, em detrimento da defesa e do respeito ao consumidor".

14/9/2011


Plano de saúde

Justiça garante cobertura de hemodiálise mesmo que contrato exclua tratamento

A 3ª câmara de Direito Privado do TJ/SP garante que cobertura da hemodiálise não pode ser negada pela operadora de saúde, mesmo que no contrato contenha cláusula excluindo o tratamento. O desembargador Beretta da Silveira, relator, entendeu que "limitações constantes no contrato constituem prática abusiva, fundada no abuso do poder econômico, em detrimento da defesa e do respeito ao consumidor".

Na ação, patrocinada pelo escritório Vilhena Silva Advogados, um paciente portador de falência irreversível da função renal entrou com uma ação contra o plano de saúde que queria obrigá-lo a arcar com as despesas tidas com a hemodiálise. O plano negou a cobertura sob o argumento de que o contrato prevê cláusula de exclusão para o tratamento.

Karina Zaia Salmen Silva, membro da banca, conta que todas as cláusulas inseridas em contratos de seguro-saúde que limitam ou retiram do consumidor a possibilidade de sobrevida com dignidade, como a que impede a realização de hemodiálise, são tidas por ilícitas exatamente por descumprirem sua função. "O Judiciário tende a não admitir como válida a cláusula de plano de saúde que exclui a cobertura para procedimentos necessários para a recuperação do paciente, como no caso de portadores de insuficiência renal crônica que necessitam se submeter às sessões de hemodiálise para tratamento da doença, coberta pelo plano."

"Ao negar cobertura para sessões de hemodiálise destinadas ao restabelecimento da função renal do conveniado, o plano de saúde traz um considerável desequilíbrio contratual com risco à própria vida do segurado", afirma a advogada. Em situações como essa, o Judiciário reconhece que a cláusula do contrato de adesão não deve prevalecer e extingue o desequilíbrio contratual criado pela operadora.

Karina ressalta que a cláusula que exclui o tratamento indispensável à cura da doença a qual é obrigada a cobrir é ilegal, já que contrariamente do que se espera quando é contratada, está negando proteção à saúde do segurado. "Ao assinar o contrato de adesão, o consumidor não pode livremente questionar o motivo dos tratamentos excluídos de cobertura e diante da impossibilidade de alterar o que está escrito, o contratante assina e confia que o Judiciário possa protegê-lo em caso de litígio."

A decisão da 3ª câmara, negando recurso da ré, considerou que não se cogita que o plano de saúde tem a obrigação de suprir a omissão do Estado no setor de saúde, mas "enquanto prestadora de serviços de saúde, o dever de preservar a essência primeira do ser humano, qual seja, a vida, ao direito à saúde e de ser tratado".

__________

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação n° 990.10.236868-8, da Comarca de São Paulo, em que é apelante B.S. S/A. sendo apelado H.F..

ACORDAM, em 3a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores BERETTA DA SILVEIRA (Presidente), ADILSON DE ANDRADE E EGIDIO GIACOIA.

São Paulo, 13 de julho de 2010.

BERETTA DA SILVEIRA

PRESIDENTE E RELATOR

VOTO N°: 21210

APELAÇÃO N°: 990.10.236868-8

COMARCA: SÃO PAULO

APELANTE: B.S. S/A

APELADO: H.F.

* Plano de Saúde - Autor portador de HAS - hipertensão arterial sistêmica, insuficiência cardíaca, fibrilação atrial e Parkinson - Limitações constantes no contrato constitui prática abusiva, fundada no abuso do poder econômico, em detrimento da defesa e do respeito ao consumidor - Contrato de adesão submetido aos ditames do Código de Defesa do Consumidor - Cobertura devida - Doutrina e Jurisprudência—Sentença mantida - Recurso improvido. *

Trata-se de ação cominatória, com pedido de tutela antecipada, julgada procedente pela r. sentença de fls., cujo relatório e adota.

Apela a ré alegando, em resumo, que, em nenhum momento, inadimpliu o contrato firmado entre as partes, pois não pode assumir riscos excluídos da apólice. Ademais, conceder a prestação reclamada implicará em violar direito expresso, sem falar no pacta sunt servanda, e na comutatividade do contrato. Requer, pois, a inversão do julgado. Pede provimento do recurso.

É o relatório.

Cuida-se de ação cominatória, com pedido de tutela antecipada, ajuizada por H.F., representado por J.C.F. em face da B.S. S/A, objetivando que a ré custeie todo o o tratamento do autor, que inclui sessões de hemodiálise, fisioterapia e fonoaudiologia, tendo em vista o grave problema de saúde do autor, o qual vem sendo recusado.

Tutela antecipada deferida a fls. 64.

A r. sentença julgou procedente a ação para o fim de condenar a

ré a assumir todas as despesas com sessões de hemodiálise, fisioterapia e fonoaudiologia, em ambiente hospitalar ou ambulatorial, no Hospital Albert Einstein, com utilização de todos os materiais necessários, até a alta médica definitiva, e ainda, declara inconstitucional a cláusula 3, letras "p" e "q", bem como a ampliação da cláusula 2, para o fim de cobrir a fisioterapia também decorrente da doença, por fim, condenando ao pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios fixados em 20% sobre o valor da causa, incidindo correção monetária desde o ajuizamento da ação e juros legais de 1% ao mês desde a citação.

O recurso não merece prevalecer.

O contrato firmado entre as partes tem por objeto a cobertura de custos e despesas correspondentes à assistência médica, prestada por terceiros aos beneficiários, conforme expressamente definido, bem como garantir o pagamento ou reembolso de despesas médico-hospitalares efetuadas pelo segurado ou seus dependentes incluídos no seguro.

Observa-se que a requerida ora apelante ao negar-se em arcar com as sessões de hemodiálise, fisioterapia e fonoaudiologia, em ambiente hospitalar ou ambulatorial, no Hospital Albert Einstein, com utilização de todos os materiais necessários, até a alta médica definitiva, destinado ao tratamento de doença grave do autor importa em flagrante violação ao direito fundamental à saúde, à vida e ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Portanto, é considerada abusiva a recusa da apelante em arcar com as sessões destinadas ao tratamento do autor apelado necessária inclusive para que sua vida fosse preservada, que tal está inserido dentro da cobertura do seguro contratado, que tem justamente o objeto de reembolsar as despesas médicos/hospitalares.

De outro lado, a contratação do seguro-saúde visa, primordialmente, à saúde do apelado, e sendo indicado os exames e procedimentos para o êxito da recuperação do paciente, aflora como abusiva a restrição esposada pela apelante, embasada em cláusula que coloca em risco o objeto do contrato, ou seja, a preservação da saúde, conforme preceitua o artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa Consumidor. Portanto, a cláusula quinta, item 5.1, inciso XI do contrato, que restringe o custeio de transplantes exceto aos de rim e córnea é abusiva, em face da Lei Consumerista, porque impede a realização completa e adequada de tratamento médico coberto pelo plano de saúde.

Sendo assim, a relação jurídica estabelecida entre as partes se enquadra nos ditames do Código de Defesa do Consumidor, e foi posta em contrato de adesão.

Pois bem.

Ao comentar o artigo 51, inciso IV, da Lei n. 8.078, de 1990, ARRUDA ALVIM, EDUARDO ARRUDA ALVIM e JAMES MARINS asseveram:

"No inciso IV, procura-se atribuir equilíbrio a contrato que envolva relação de consumo, destituído desse equilíbrio, pois se dispõe serem nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam obrigações iníquas, abusivas, ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, assim como aquelas que sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade. É um verdadeiro mandamento aberto, exprimindo conceito vago, a ser preenchido pelo Juiz diante de cada caso, de acordo com as circunstâncias que lhe forem peculiares, quando, então, deverá ser avaliado, in concreto, se trata ou não de cláusula leonina" ("Código do Consumidor Comentado", 2a ed., Editora Revista dos Tribunais, 1995,pág. 252).

Por seu turno, WALDIRIO BULGARELLI ensina, ao abordar as obrigações iníquas, abusivas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada que:

"As iníquas são facilmente identificáveis, pois rompem de maneira excessiva o equilíbrio contratual, afetam a comutatividade e o chamado "sinalagma': por seu turno as abusivas se avizinham das iníquas, e se expressam geralmente também pelo caráter de potestatividade com que são colocadas, e para tanto, o legislador valorou as mais salientes para exemplifícativamente introduzi-las no Código. Aliás, como o fez com a terceira menção, a de desvantagem exagerada, que procurou explicar, através de presunção legal, no § Io do artigo 51, estatuindo que se deve assim considerar, "entre outros casos' (grifamos para acentuar o seu tom explicativo) a vantagem que:

I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;

II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;

III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e o seu conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso."

Trouxe o Código como parâmetro, os princípios da "boa-fé" e "eqüidade" e os "fundamentais" do sistema jurídico a que pertence, este último um tópico de não fácil elucidação, a não ser retornando aos três grandes colocados pelos romanos: "honeste vivere, alterum non laedere e suo cuique tribuere", e que certamente estão presentes hoje, embora geralmente subentendidos, em toda a atividade jurídica, sobretudo, a de interpretação e aplicação do Direito, observando-se ainda que a Lei de Introdução ao Código Civil refere-se no artigo 5o aos "fins sociais" e às "exigências do bem comum" e no artigo 4o aos "princípios gerais do direito" (Questões Contratuais no Código de Defesa do Consumidor", São Paulo, Editora Atlas, 1993, págs. 58-59).

É certo que, em tese, a ordem jurídica oferece a cada um a possibilidade de contratar, e dá-lhe a liberdade de escolher os termos da avença, segundo as suas preferências (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, in "Instituições de Direito Civil", vol. III/ll, 1991). E na interpretação dos contratos, deve, em princípio, ser admitido que as palavras empregadas pelas partes reproduzem o seu pensamento.

Por outro lado, a só circunstância de serem as obrigações estabelecidas pela vontade predominante de um dos interessados na formação do vínculo jurídico, não o despe das vestes contratuais. Afirma-se a contratualidade da relação pela presença do elemento irredutível, que é o acordo de vontades (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 228.407-2, Relator Desembargador Mohamed Amaro).

Assim, pela interpretação das cláusulas do negócio procurou a jurisprudência evitar a exploração de uma parte contra outra. Regras de hermenêutica, aplicadas sensatamente, alcançaram, por vezes tal efeito.

Dentre as principais, mencionam-se: a) na dúvida, o contrato deve ser interpretado contra quem o redigiu; b) deve-se distinguir entre as cláusulas principais e acessórias, entendendo-se que estas não têm a mesma força vinculante daquelas, pois decerto, chamaram a atenção do contratante; c) as cláusulas impressas, por isso que chamam menos a atenção, devem ser preteridas às manuscritas, pois estas revelam o propósito de revogar as primeiras (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 219.193-2).

Do exame dos autos, infere-se que o ajuste se apresenta como um típico "contrato padrão", cujas cláusulas, pré-estipuladas pela apelante, não restando, ao apelado, sequer, ao que parece, qualquer oportunidade de discussão. Assim, aplica-se, na espécie dos autos, a regra da hermenêutica segundo a qual devem ser interpretadas a favor do contratante (ora beneficiário dos serviços), que aderiu às cláusulas constantes do contratopadrão, impresso em papel timbrado da contratada (prestadora dos serviços), por ela estabelecidas.

Demais, o artigo 51 do CDC, expressamente, dispõe que: "são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade". E, exageradas, presumivelmente, em face da lei, as cláusulas contratuais que estabeleçam vantagem que "restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual" (cf. artigo 51, § Io, inciso II).

Veja-se que a exclusão de cobertura de aparelhos estéticos pode até ser considerada válida, no mais das vezes, quando disser exclusivamente ao embelezamento puro e simples do segurado.

Segue-se que as restrições e condições estabelecidas pela apelante configura típica situação de abuso do direito de contratar, tornando letra morta o princípio da autonomia da vontade, em face da inegável situação de prevalência da parte contratada, ante as deficiências das instituições de saúde pública {Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 232.777-2, Relator Desembargador Gildo dos Santos e Apelações n°s 357.967-4/6-00 e 416.076.4/9-00, de São Paulo, 3a Câmara de Direito Privado, rei Des. Beretta da Silveira).

A interpretação dos contratos pode ser feita pelos Tribunais de um modo liberal, como pondera Serpa Lopes, imprimindo às cláusulas, porventura obscuras, imprecisas ou ambíguas, um sentido favorável aos segurados, justamente partindo da consideração de haverem sido redigidas pelas seguradoras (Pedro Alvim, Dos Seguros, pág. 136).

Também no direito comparado, são unânimes os autores ao ressaltarem essa diretriz da interpretação do Contrato de Seguro (cf. Ivone Lambert-Faivre, Le Contrat de Assurance, Dalloz, Paris, 5a Edição, pág. 68; Halperin, Lecciones de Seguro, Depalma, B. Aires, 1983, pág. 41, b; Donati, Manuale Di Dirrito delle Assicurazioni Private, A. G., 1961, pág. 25), constituindo-se em regra fundamental aquela segundo a qual a interpretação das declarações contidas no Contrato de Seguro deve ser a mais favorável ao segurado e seus beneficiários.

Muito menos vale argumentar que houve livre contratação entre as partes, desde que, para o reconhecimento da existência de cláusulas abusivas, conforme a disciplina do Código do Consumidor, abrangente de qualquer tipo de contrato de consumo, pouco importaria cogitar do acordo de vontades. Nulas "de pleno direito" (artigo 51), devem ser assim pronunciadas, até de ofício pelo Julgador. É que "o direito cominou-lhes o grau mais elevado de invalidade, porque a tutela legal do consumidor opera apesar dele. O interesse lesado não pertence individualmente ao consumidor contratante, mas a toda a comunidade potencialmente prejudicada" (PAULO LUIZ NETO LOBO, "Contratos no Código do Consumidor - Pressupostos Gerais", in, "RT", vol. 705/48).

Ofendendo a ordem pública e o interesse social, a nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas nos contratos de consumo pode ser alegada a qualquer tempo ou grau de jurisdição, cabendo ao Juiz o dever de pronunciá-las de ofício (cf. NELSON NERY JÚNIOR, "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto", Editora

Forense Universitária, 4a ed., págs. 341/343).

Ademais, não se pode olvidar o comando do artigo 196 da Constituição Federal: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação" .

Não se cogita aqui que a co-requerida apelante tem a obrigação de suprir a omissão do Estado no setor saúde. Mas, enquanto prestadora de serviços de saúde, o dever de preservar a essência primeira do ser humano, qual seja, a vida, ao direito à saúde e de ser tratado.

Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso.

Beretta da Silveira

Relator

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