Gravidez
RS - Mulher que engravidou sob uso de anticoncepcional será indenizada e receberá pensão para filho
Caso
Conforme a autora, após o nascimento de seu terceiro filho, ela foi orientada pelo médico que realizou o parto a utilizar o contraceptivo por ser adequado ao período de lactação. Salientou que contava já com 37 anos, tinha três filhos e sua situação econômica não lhe permitiria suportar uma nova gravidez. No entanto, mesmo usando o anticoncepcional regularmente, ficou grávida.
Em contestação, a empresa fabricante afirmou não ter sido comprovado o uso regular do medicamento ou sua compra no mês em que engravidou, nem a sua prescrição pelo médico. Ressaltou ainda que nenhum contraceptivo tem eficácia de 100%, mas que seu produto aproxima-se muito desse índice.
Sentença
Na avaliação do juiz Clóvis Ramos, deve-se questionar a quem cabe a pequena probabilidade de falha que o medicamento apresenta: à fabricante, que possui o conhecimento técnico e obtém lucro mensal estimado R$ 6 milhões com sua comercialização, ou à consumidora, que teve sua expectativa frustrada.
Para o magistrado, é "evidente que o risco de o anticoncepcional não funcionar como esperado deve ser suportado por quem explora a atividade econômica". Enfatizou que esse é o raciocínio que encontra abrigo no artigo 927 do CC (clique aqui).
O juiz considerou que os documentos que comprovam a aquisição do medicamento e a ocorrência da gestação, bem como as alegações da autora, são suficientes para demonstrar que utilizava o contraceptivo com frequência. Lembrou não ser viável exigir que alguém guarde a nota fiscal de todos os produtos comprados, bem como prove que tomou o anticoncepcional todos os dias.
Ao entender pelo direito da mulher à indenização por danos materiais e morais, ponderou que a gravidez indesejada, "embora traga muitos benefícios e alegrias com o nascimento do novo filho, é causa de severas preocupações, como uma possível gravidez de risco em razão da idade e a dificuldade de criar mais uma criança para uma família de escassos recursos econômicos e com outros filhos para sustentar."
- Confira abaixo a íntegra da decisão.
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COMARCA DE CAXIAS DO SUL
5ª VARA CÍVEL
Rua Dr. Montaury, 2107
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Nº de Ordem:
Processo nº:
Natureza: IndenizatóriaAutor: A. O. C.
Réu: Organon do Brasil Indústria e Comércio LTDA.Juiz Prolator: Juiz de Direito - Dr. Clóvis Moacyr Mattana Ramos
Data: 18/07/2011
Vistos etc.
A. D. C. ajuizou ação indenizatória em face de ORGANON DO BRASIL INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA. Relatou, em suma, ter sido orientada pelo médico que realizou o parto de sua filha para usar um contraceptivo adequado ao período de lactação, uma vez que manifestou sua intenção de não mais engravidar, pois já tinha três filhos e, aos trinta e sete anos, sua situação econômica não lhe permitia suportar uma nova gravidez. O medicamento indicado pelo médico é denominado Cerazette e é fabricado pela demandada. Todavia, não obstante tenha usado regularmente o anticoncepcional, engravidou novamente, fato que a traz a juízo a fim de buscar a indenização devida pela fornecedora do produto.
Discorreu sobre a aplicabilidade do CDC ao caso em tela e sobre a necessidade de a fabricante do contraceptivo arcar com as despesas decorrentes da falha do produto, mediante pagamento de pensão mensal.
Pediu, pois, a antecipação dos efeitos da tutela para que a ré pagasse três salários mínimos mensais necessários ao pagamento das despesas vinculadas à gravidez e ao seu futuro filho. Requereu a inversão do ônus da prova e a concessão do benefício da assistência judiciária gratuita. Por fim, postulou a procedência da demanda para condenar a demandada no pagamento de compensação pelos danos morais sofridos em razão da indesejada concepção no valor de cem salários mínimos vigentes à época do pagamento, bem como a pagar indenização pelos danos materiais, por meio de pensão alimentícia fixada em três salários mínimos mensais.
Juntou documentos comprobatórios da aquisição do medicamento e da ocorrência da gestação.
Foi indeferida a antecipação de tutela. O benefício da assistência judiciária gratuita foi concedido.
Citada, a demandada apresentou sua contestação em que, resumidamente, alegou que não há provas de que a demandante fazia uso regular do anticoncepcional, o que pode ser uma das causas da gravidez indesejada. Relatou que a autora não comprovou a compra da medicação no mês em que a concepção ocorreu e não juntou aos autos a prescrição médica orientando a utilização de Cerazette. Disse, ainda, que a eficácia do medicamento que produz não é, assim como os demais contraceptivos, de 100%, mas que muito se aproxima desse índice. Discorreu sobre a inexistência de responsabilidade civil da ré, pois a fabricação se encontra de acordo com as exigências da ANVISA a do Código de Defesa do Consumidor. Tratou de acentuar que possui certificado de qualidade de todos os lotes do medicamento comercializado, o que junta aos autos, sendo que o produto foi regulamente testado e aprovado.
A demandada alegou, por fim, que a gravidez poderia ser resultado de ingestão concomitante com outros medicamentos contraindicados, bem como de reações adversas. Pediu a improcedência da demanda, pois não havia qualquer prova da ocorrência dos danos materiais ou morais, bem como nexo de causalidade que vinculasse tal prejuízo a alguma conduta da ré.
Juntou documentos.Houve réplica.
Na audiência de instrução, foram tomados os depoimentos da parte autora e do representante da demandada; foi inquirida uma testemunha da parte ré.
Os debates finais foram convertidos em memoriais.
Vieram os autos conclusos para sentença.
É O RELATO.
PASSO A DECIDIR.
Merece acolhida, em parte, a pretensão da autora.
Entendo dessa maneira porque, a meu juízo, o cerne da questão restringe-se à resposta da seguinte pergunta: quem deve suportar a falha de 0,01% que o medicamento apresenta?
De um lado, está a fabricante do produto, que, além de possuir todo o conhecimento técnico, aufere o lucro referente à venda mensal de duzentas e cinquenta mil (250.000) caixas do contraceptivo, conforme depoimento da testemunha (fl. 153), o que, se multiplicado pelo valor encontrado na nota fiscal presente nos autos, ultrapassa seis milhões de reais mensais de faturamento. Do outro, a consumidora, que, seduzida pelo anticoncepcional especialmente indicado para lactantes (depoimento do representante da ré, fl. 151), adquiriu e fez uso do medicamento, tendo sua legítima expectativa frustrada. Ora, parece evidente que o risco de o anticoncepcional não funcionar como esperado deve ser suportado por quem explora a atividade econômica. É o raciocínio utilizado para as demais hipóteses semelhantes e encontra abrigo legal no art. 927, parágrafo único, do CC.
Diz a demandada que o produto não tem defeito algum. Não se pode considerar, entretanto, que a gravidez excepcional seja efeito desejado ou esperado do uso de um contraceptivo. Quem produz um anticoncepcional que, assim como todos os outros, não assegura 100% de eficácia, deve arcar com os custos de prejuízos para os direitos dos consumidores. Cite-se, por oportuno, trecho da argumentação da eminente Ministra Nancy Andrighi, do STJ, no julgamento do Recurso Especial n. 866.636/SP:
De forma muito breve, deve-se anotar, apenas a bem da verdade, que o produto por ela fabricado é um anticoncep-cional, cuja única utilidade é a de evitar uma gravidez; por-tanto, a mulher que toma tal medicamento tem a intenção de utilizálo como meio a possibilitar sua escolha quanto ao momento de ter filhos. Nesse contexto, a falha do remédio frustra a opção da mulher, e nisso reside a necessidade de compensação pelos danos morais. O argumento da Sche-ring, da forma irrestrita como está exposto, leva ao parado-xo de se ter uma empresa produtora de anticoncepcionais defendendo que seu produto não deveria ser consumido, pois a maternidade, ainda que indesejada, é associada à idéia de felicidade feminina.
Não desconheço que há certa tendência na jurisprudência pátria a reconhecer a inexistência de defeito no produto que enseje a obrigação de indenizar. Todavia, valendo-me de precedentes do direito comparado, especialmente o estadunidense, noto que alguns países definem casos semelhantes como wrongful conception , ou seja, concepção indesejada, caso em que se reconhece que a mulher tem o direito de escolher o momento de ter filhos e, caso utilize algum método que prometa resultados satisfatórios no sentido de impedir a gravidez, toda vez que ela vier a ter sua expectativa frustrada lhe assiste direito à indenização.
Não convence o argumento genérico de que a gravidez poderia ser resultado do mau uso do medicamento, como o esquecimento. Não há como impor à autora que faça prova de que tomou o anticoncepcional todos os dias e, por isso, aplicando o brocardo ad impossibilia nemo tenetur, não leva essa afirmativa à conclusão de que inexiste obrigação de indenizar. Mostra-se também irrelevante o fato de não se encontrar nos autos o comprovante do uso do contraceptivo no mês em que a gravidez ocorreu. Isso porque não se pode exigir que alguém guarde notas fiscais de todos os produtos comprados. As afirmações e os documentos que acompanham a exordial são suficientes para a constatação de que a demandante adquiria regulamente o produto e o utilizava com a esperança de impedir uma gravidez indesejada.
Também não convence a defesa da demandada quando esta diz que a presente ação pode se tratar de um “golpe”. Ora, tendo em vista as recentes manifestações dos tribunais pátrios – negando indenizações em casos análogos -, dificilmente pode se concluir que a autora se submeteria aos incertos rumos da demanda, envolvendo, nisso, uma gravidez, a fim de obter uma indenização ilícita.
Quanto ao dano moral, merece registro o fato de que muitas cortes norte-americanas o negam em situações semelhantes ao caso em tela pelo fundamento de que o nascimento de uma criança é sempre um “evento abençoado”. Contudo, embora seja impossível discordar de tal afirmativa, certo é que não se podem enquadrar os abalos emocionais decorrentes de uma gravidez inesperada na categoria de simples dissabor do dia-a-dia. A concepção indesejada, embora traga muitos benefícios e alegrias com o nascimento do novo filho, é causa de severas preocupações, como uma possível gravidez de risco em razão da idade e a dificuldade de criar mais uma criança para uma família de escassos recursos econômicos e com outros filhos para sustentar. Por isso, tenho como presente o dano moral, malgrado o fixe em valor inferior ao pretendido – cinquenta salários mínimos.
No que tange à pensão, vejo por bem fixá-la em um salário mínimo mensal, desde o nascimento da criança, de modo a não configurar enriquecimento ilícito por parte da demandante, o que parece suficiente para custear as despesas mensais do filho até que complete dezoito anos.
Por esses motivos, evidenciadas a conduta (produção do medicamento contraceptivo cujo consumo traz, ainda que ínfima, a possibilidade de gravidez), o dano (prejuízos patrimoniais a abalos psíquicos com a gravidez inesperada) e o nexo de causalidade (elo etiológico vinculando a possível ineficácia do produto com a concepção), presente está a obrigação de indenizar.
ANTE O EXPOSTO, julgo parcialmente procedente a demanda para condenar a ré ao pagamento de 50 (cinquenta) salários mínimos a título de dano moral e pensão alimentícia no valor de um salário mínimo mensal até que o filho da demandante complete dezoito anos. Condeno a demandada no pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios ao advogado da autora fixados em 15% sobre o valor da condenação, corrigidos pelo IGP-M e com incidência de juros de 1% ao mês desde o julgamento.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.
Caxias do Sul, 15 de julho de 2011.
Clóvis Moacyr Mattana Ramos,
Juiz de Direito
Em Regime de Exceção
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