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PGR - Ato que negou extradição de Battisti não pode ser questionado pela Itália

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, enviou parecer ao STF em que se manifesta pelo não-conhecimento e, se conhecida, pela improcedência da reclamação proposta pela República Italiana contra ato do presidente da República, por ter supostamente descumprido decisão proferida pelo STF que concedeu a extradição de Cesare Battisti.

13/5/2011


Caso Battisti

PGR - Ato que negou extradição de Battisti não pode ser questionado pela Itália

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, enviou parecer ao STF em que se manifesta pelo não-conhecimento e, se conhecida, pela improcedência da reclamação proposta pela República Italiana contra ato do presidente da República, por ter supostamente descumprido decisão proferida pelo STF que concedeu a extradição de Cesare Battisti.

Battisti foi preso no RJ, o que levou a Itália a formalizar pedido de extradição executória, com fundamento no Tratado de Extradição firmado com o Brasil. O STF, ao apreciar o pedido, anulou decisão do ministro da Justiça que concedeu ao extraditando a condição de refugiado político e, em seguida, deferiu sua extradição. Em 31/12/10, o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, negou o pedido de extradição, com base em parecer da Advocacia-Geral da União.

Preliminarmente, o procurador-geral da República afirma, no parecer, que não parece ser possível ao STF decidir se o presidente da República descumpriu o Tratado específico firmado entre o Brasil e a Itália ou se praticou algum ilícito internacional ao não extraditar Battisti.

"Se o Brasil não pode interferir nos motivos que ensejaram o pedido de extradição, ao Estado requerente também não é possível interferir no processo de extradição dentro do Estado brasileiro. Tal tentativa de interferência no processo de extradição, de ambas as partes, é violadora do princípio da não-intervenção em negócios internos de outros Estados, regra basilar do Direito Internacional Público", explica.

Roberto Gurgel acrescenta que, apesar da seriedade das acusações apresentadas contra o ato praticado pelo Brasil, considerado pela reclamante como ilícito interno e internacional, a República da Itália não pode submetê-lo ao crivo do STF por se tratar de infração aos princípios internacionais da soberania, autodeterminação dos povos e não-intervenção de um Estado em assuntos internos de outro.

"A República Italiana não é parte no processo extradicional de direito interno atinente a Cesare Battisti. E, não sendo parte, não pode reclamar o cumprimento da decisão dada no processo de extradição", complementa. Para o procurador-geral, são os órgãos de soberania da República Federativa do Brasil que têm a incumbência de atuar para dar curso, pela parte brasileira, à relação jurídica de Direito Internacional Público corporificada no Tratado de Extradição entre o Brasil e a Itália.

Caso as questões preliminares sejam afastadas, o procurador-geral aborda, no parecer, a discussão ocorrida durante o julgamento do feito, pelo plenário do STF, acerca dos papéis da Suprema Corte e do Poder Executivo no processo de extradição.

Roberto Gurgel lembra que, ao apreciar questão de ordem levantada pelo relator, o STF reconheceu que a decisão de deferimento da extradição não vincula o presidente da República. "Considerando a solução dada à questão de ordem, parece evidente que em momento algum o STF determinou ao Presidente da República que efetivasse a extradição de Cesare Battisti", ressalta.

Ele afirma ainda que "o STF, ao deferir a extradição, o fez tão-somente para afirmar que as condenações impostas a Cesare Battisti na Itália são hígidas, pois respeitaram o devido processo legal e demais garantias asseguradas ao extraditando perante o Poder Judiciário italiano e brasileiro, e que o pedido seguiu os ditames do Tratado específico de extradição firmado entre o Brasil e a Itália".

Segundo o procurador-geral, o requisito primordial para que seja proposta a reclamação é o descumprimento de decisão do STF. "Se, como visto, a decisão da Corte não vinculou o presidente da República, nada havia para ser afrontado", conclui.

Veja abaixo a íntegra do parecer.

_________

PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA

Nº 4268 - PGR - RG

RECLAMAÇÃO Nº 11.243

RECLAMANTE: REPÚBLICA ITALIANA

RECLAMADO: PRESIDENTE DA REPÚBLICA

INTERESSADO: CESARE BATTISTI

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

Reclamação. República Italiana. Alegado descumprimento pelo Presidente da República da decisão do Supremo Tribunal Federal que concedeu a extradição de Cesare Battisti. Questões preliminares impeditivas do conhecimento do pedido. Improcedência da reclamação por inexistir afronta à decisão da Suprema Corte. Parecer pelo não conhecimento da Reclamação e, se conhecida, pela improcedência.

I

1. Trata-se de reclamação, com pedido de liminar, ajuizada pela República Italiana contra ato do Presidente da República, por alegado descumprimento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da Extradição nº 1.085, que deferiu o pedido formulado em relação a Cesare Battisti.

2. Em 18 de março de 2007, Cesare Battisti foi preso no Rio de Janeiro, tendo a Itália formalizado pedido de extradição executória do seu nacional, com fundamento no Tratado de Extradição firmado com o Brasil e promulgado pelo Decreto n° 863/1993.

3. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o pedido, anulou decisão do Ministro da Justiça que concedera ao extraditando a condição de refugiado político e, em seguida, deferiu a sua extradição, assentando, por maioria, em questão de ordem levantada pelo Relator do feito, o eminente Ministro Cezar Peluso, por força de requerimento apresentado pela ora reclamante, que o acórdão da Suprema Corte não vinculava o Presidente da República.

4. Confira-se, nesse sentido, o extrato da ata da sessão de julgamento:

“(...)
Decisão: Suscitada pelo Relator questão de ordem no sentido de retificar a proclamação da decisão quanto à vinculação do Presidente da República ao deferimento da extradição, o Tribunal, por maioria, acolheu-a, vencidos os Senhores Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto. O Tribunal, por unanimidade, retificou-a, para constar que, por maioria, o Tribunal reconheceu que a decisão de deferimento da extradição não vincula o Presidente da República, nos termos dos votos proferidos pelos Senhores Ministros Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Marco Aurélio e Eros Grau. Ficaram vencidos quanto a este capítulo decisório os Ministros Cezar Peluso (Relator), Ricardo Lewandowski, Ellen Gracie e Gilmar Mendes (Presidente). Não votou o Senhor Ministro Celso de Mello por ter declarado suspeição. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Senhor Ministro Dias Toffoli. Plenário, 16.12.2009.”

5. Em ato publicado na edição extra do Diário Oficial da União de 31 de dezembro de 2010, o então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, negou o pedido de extradição de Cesare Battisti nos termos seguintes:

“ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

Processo nº 08000.003071/2007-51. Parecer nº AGU/AG - 17/2010, adotado pelo Advogado-Geral da União Substituto, referente ao pedido de Extradição nº 1.085, requerido pela República Italiana. Em face dos fundamentos, aprovo o Parecer e nego a extradição. Em 31 de dezembro de 2010”

6. Contra este ato do Presidente da República foi ajuizada a presente Reclamação ao argumento de que a negativa da extradição afrontou a decisão do Supremo Tribunal Federal que a deferiu, deliberação plenária que teria enfrentado todas as questões pertinentes ao tema, inclusive as razões posteriormente utilizadas pelo chefe do poder executivo para negar a extradição.

7. Afirma a reclamante “que é possível exercer-se o controle do ato presidencial ora impugnado por via da presente reclamação”, ressaltando que “o interesse jurídico da República Italiana, ora reclamante, na cassação do ato presidencial impugnado é manifesto por consubstanciar legítima e inafastável faculdade de impugnar a recusa da extradição por ela solicitada ao Brasil nos termos de tratado específico firmado e vigente entre os dois países”.

8. O Estado Italiano também busca desqualificar o parecer da Advocacia-Geral da União que serviu de base para a decisão presidencial, afirmando que as razões ali expostas são incongruentes e ilógicas, escritas apenas para fundamentar a decisão que afrontou o acórdão do Supremo Tribunal Federal. Informa que a decisão que negou o pedido de extradição de Cesare Battisti foi publicada no Diário Oficial da União desacompanhada do parecer que a embasou, circunstância que tornaria o referido ato nulo, “porquanto não se atendeu a requisito indispensável à sua validez”. Segundo afirma, o ato administrativo, mesmo que tenha adotado fundamentação per relationem, deveria ter sido publicado na íntegra, fazendo constar inclusive as razões posteriormente utilizadas pelo chefe do Poder Executivo para negar a extradição.

9. Ressalta, ainda, que a denegação da extradição abalaria as relações entre os Estados brasileiro e italiano, duas nações amigas, ligadas por laços sanguíneos, tendo em vista os milhares de imigrantes italianos que auxiliaram na construção da identidade sociocultural brasileira.

10. Insurge-se, também, contra a suposta violação do Tratado específico de extradição firmado entre o Brasil e a Itália, alegando que o Presidente da República, por força do referido acordo bilateral, estaria obrigado a efetivar a extradição.

11. As informações foram prestadas pela Presidente da República.

II

12. Preliminarmente, há questões que parecem inviabilizar o conhecimento da pretensão do Estado reclamante.

13. De início, não parece ser possível ao Supremo Tribunal Federal decidir se o Presidente da República descumpriu o Tratado específico firmado entre o Brasil e a Itália ou se praticou algum ilícito internacional ao não extraditar Cesare Battisti.

14. Conforme princípio fundamental do Direito Internacional Público, os Estados soberanos são iguais entre si em suas relações na comunidade internacional.

15. Em interessante lição de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, a ação dos Estados na comunidade internacional é caracterizada da seguinte forma:

Assim como, das relações dos indivíduos entre si e deles com o Estado, nasce um conjunto de regras que disciplina e forma o direito estatal, também das relações que se estabelecem entre os Estados surge um corpo de normas que forma o direito supraestatal.

No primeiro, a unidade é o indivíduo; no segundo, a unidade é o Estado. O papel que o indivíduo desempenha na comunidade estatal é o mesmo papel que o Estado desempenha na comunidade internacional.

Ambos agem como pessoas. São, igualmente, titulares de direitos e de obrigações. Os vínculos que se estabelecem entre os Estados, como afirmamos, pode ter aspecto econômico ou aspecto político. Nem por isso perdem sua natureza jurídica.”1

16. Essa ação do Estado como indivíduo pertencente à comunidade internacional é pautada em diversos princípios integrantes do Direito Internacional Público. O Brasil incluiu no texto constitucional, em seu art. 4º, os princípios regentes de suas relações internacionais2. Estão presentes, entre outros princípios, o da independência nacional, da autodeterminação dos povos, da nãointervenção e da igualdade entre os Estados.

17. A República da Itália, em sua Lei Maior, disciplina suas relações internacionais em base semelhante à brasileira:

Art. 11
A Itália repudia a guerra como instrumento de ofensa à liberdade dos outros povos e como meio de resolução das controvérsias internacionais; consente, em condições de paridade com os outros Estados, nas limitações de soberania necessárias para um ordenamento que assegure a paz e a justiça entre as nações; promove e favorece as organizações internacionais que visam essa finalidade.”3

18. Ambos os Estados, portanto, respeitam a soberania e a autodeterminação de outras nações, primando pela observância do princípio da não-intervenção em negócios internos de outros Estados.

19. O processo de extradição, como ferramenta de cooperação internacional, é um ato de soberania do Estado brasileiro: o Brasil, atendendo à solicitação do Estado requerente e com fundamento nas boas práticas diplomáticas e compromisso de combate à criminalidade internacional, submete o estrangeiro que se encontra em seu território ao processo de extradição.

20. Noutras palavras, para que a República Federativa do Brasil, pessoa de direito público internacional, pratique o ato de soberania consubstanciado na entrega do súdito estrangeiro ao stado requerente, devem ser percorridas todas as etapas do processo de extradição.

21. Todos os atos praticados antes da decisão final do Estado brasileiro são elementos inerentes ao processo de extradição e ocorrem no âmbito das instituições constituintes da estrutura burocrática nacional. Dito de modo diverso: o trâmite do processo de extradição é questão interna corporis da nação requerida, no caso, da República Federativa do Brasil.

22. Sendo assim, se o Brasil não pode interferir nos motivos que ensejaram o pedido de extradição4, ao Estado requerente também não é possivel interferir no trâmite do processo de extradição dentro do Estado brasileiro. Tal tentativa de interferência no processo de extradição, de ambas as partes, é violadora do princípio da nãointervenção em negócios internos de outros Estados, regra basilar do Direito Internacional Público.

23. Portanto, sendo a decisão que negou a extradição de Cesare Battisti ato soberano da República Federativa do Brasil, a tentativa por parte da República Italiana de revertê-la, dentro do próprio Estado brasileiro, seria afrontosa à soberania nacional.

24. Confira-se o seguinte trecho da petição inicial da presente Reclamação:

Seja lá o que for isso, o certo é que a motivação apresentada revela claros e induvidosos traços de desvio de poder – tal o volume de incongruências e contradições na argumentação puramente retórica, desencontrada e vazia desenvolvida ao longo do parecer com inequívoco fito de burlar o tratado e contornar o aresto da Suprema Corte. O que sobra disso tudo, a par do chapado ataque ao aresto do STF, é a clara constatação da ocorrência de grave ilícito interno e de grave ilícito internacional, decorrentes do descumprimento do Tratado de Extradição Brasil-Itália.”
(fls. 37 da petição inicial)

25. A despeito da seriedade das imputações aduzidas, o ato praticado pelo Brasil, considerado pela reclamante como ilícito interno e internacional, não pode ser submetido pela República da Itália ao crivo do Supremo Tribunal Federal por força das infrações aos princípios internacionais da soberania, autodeterminação dos povos e nãointervenção de um Estado em assuntos internos de outro.

26. A reclamante, assim, trouxe ao Supremo Tribunal Federal matéria que não se insere na jurisdição da Corte, qual seja, o arbitramento de demanda entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana.

27. Não se trata aqui, sublinhe-se, de litígio entre Estado estrangeiro e a União5, pessoa de direito público interno, mas do embate entre a República Federativa do Brasil, ente de personalidade jurídica internacional dotado de direitos e obrigações perante as demais nações, e a República Italiana.

28. Falta à República Italiana legitimidade para impugnar ou exercer o controle de legalidade do ato do Presidente da República que negou a extradição de Cesare Battisti.

29. O processo de extradição tem por escopo a proteção jurídica do extraditando contra as hipóteses de preterição do estado de direito ou de rigor exacerbado do sistema de justiça criminal no Estado requerente bem como de redundância persecutória transnacional. Pode em seu âmbito haver controvérsia, limitada à verificação dos pressupostos e requisitos da extradição. Mas não há, nele, lide, porque não é processo de partes, nem tampouco, a rigor, processo judicial, na conceituação corrente de realidade jurídica complexa, caracterizada por relação jurídica entre o Estado e os litigantes, destinada à apreciação imperativa, conforme a ordem jurídica, de uma pretensão resistida e organizada em procedimento com essa finalidade.

30. O processo de extradição não tem início por propositura de ação judicial e sim por solicitação diplomática do Estado estrangeiro, transmitida pelo Ministério das Relações Exteriores ao Ministério da Justiça e só então por este ao Supremo Tribunal Federal. Nem tampouco é ele exclusivamente judicial, na medida em que comporta duas fases administrativas, com margens de apreciação próprias, podendo a primeira, inclusive, prejudicar a fase judicial.

31. O interesse que move o processo é titulado pelo próprio Estado brasileiro e não pelo Estado requerente da extradição: trata-se do interesse em prestar cooperação jurídica internacional em matéria penal pelo mecanismo extradicional. Esse interesse é de caráter misto, integrando-se de componentes político e jurídico, sem ser animado por uma pretensão, entendida como propriedade ativa do direito de ação, mesmo porque a decisão extradicional não é integrada exclusivamente por um provimento jurisdicional: é perfeitamente possível que, não obstante autorizada judicialmente uma extradição, o Estado requerente não assuma compromisso condicionador previsto no art. 91 da Lei nº 6.815/80.

32. O escopo da intervenção jurisdicional nesse processo – reitere-se - está em tutelar os direitos fundamentais do extraditando em face de preterições ao estado democrático de direito em seu desfavor ou da hipótese em que a cooperação fosse prestada para finalidade normativa contrária à ordem pública brasileira ou, ainda, de redundâncias persecutórias.

33. O provimento jurisdicional em matéria de extradição é, nesse sentido, autorizativo e prejudicial à decisão extradicional; a atividade jurisdicional consiste em autorizar ou desautorizar o exercício de determinada competência executiva, independentemente da vontade do sujeito passivo, cuja concordância é, inclusive, tida por juridicamente irrelevante.

34. Constituiria claro equívoco, nessa ordem de idéias, divisar em tal processo uma ação proposta perante o Supremo Tribunal Federal pelo Estado estrangeiro em face do extraditando, ignorando um amplo espectro de questões, que vão da densidade do atributo da soberania nacional na decisão extradicional a aspectos mais elementares do próprio formato do processamento da solicitação.

Criaria, ainda, além do risco de ampliação indevida do papel do Poder Judiciário no processo de extradição, o risco adicional de exacerbar, também indevidamente, a capacidade de Estados estrangeiros para estar em juízo no Brasil.

35. A capacidade de Estados estrangeiros para estar em juízo é tema pouco estudado em doutrina, enfrentado apenas obliquamente no estudo da imunidade de jurisdição do Estado e, mesmo assim, bastante mais na hipótese em que o Estado estrangeiro se veja na contingência de figurar no pólo passivo de relação jurídica processual de direito interno.

36. Quando se cogita do limite de atividade processual de Estado estrangeiro no foro brasileiro, impende assentar duas premissas. A primeira aponta que o costume internacional, embora mitigado no que diz respeito aos atos de gestão, preceitua, quanto aos atos de império, que o Estado estrangeiro tem imunidade absoluta. E a segunda recorda que as questões de cooperação jurídica internacional se amoldam ao conceito de ato de império, porque são intrinsecamente ligadas à soberania.

37. Entender que o Estado estrangeiro pode, desembaraçadamente, litigar no foro brasileiro sobre questões de cooperação jurídica internacional constitui grave risco de ruptura ou tumulto dos subsistemas processuais instituídos em nosso ordenamento jurídico para disciplinar esse instituto em suas diversas figuras, além de se mostrar inaceitável à luz da premissa de que o Estado estrangeiro é imune à jurisdição interna por ato de império: se é imune, não há de poder litigar sobre esses atos a seu bel-prazer, apenas quando lhe interesse. O Brasil haveria de contemplar, nesse cenário, a hipótese de Estados estrangeiros transitarem livremente em nossos foros judiciários e manejarem, até o limite, as vias recursais internas quando se vissem contrariados no que lhes interessasse.

38. Em suma, a República Italiana não é parte no processo extradicional de direito interno atinente a Cesare Battisti. E, não sendo parte, não pode reclamar o cumprimento da decisão dada no processo de extradição.

39. É aos órgãos de soberania da República Federativa do Brasil que incumbe atuar para dar curso, pela parte brasileira, à relação jurídica de Direito Internacional Público corporificada no Tratado de Extradição entre o Brasil e a Itália. A Itália, com todas as vênias devidas, não tem nem interesse processual, nem legitimidade ad causam, nem sequer capacidade de estar em juízo, para ajuizar ação visando ao cumprimento da decisão tomada no processo de extradição.

A admitir-se o contrário, forçoso será admitir que ela possa fazê-lo sempre, em qualquer instância, em feitos de cooperação jurídica internacional.

40. Assim, a Procuradoria Geral da República, preliminarmente, manifesta-se pelo não conhecimento da Reclamação.

III

41. Se afastadas as questões preliminares, cabe examinar o mérito, que envolve a grande discussão ocorrida durante o julgamento do feito pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal acerca dos papéis da Suprema Corte e do Poder Executivo no processo de extradição.

42. Duas teses foram apresentadas: i) o Presidente da República está adstrito ao cumprimento do Tratado específico de extradição firmado entre o Brasil e a Itália, devendo atrelar sua decisão aos termos do acordo bilateral, ao qual o Estado brasileiro está vinculado; ii) o Presidente da República, dotado do poder discricionário inerente à posição de chefe do Poder Executivo, poderia conceder ou negar a extradição, fundamentado no juízo de conveniência e oportunidade.

43. Expostas as duas teses, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, ao apreciar questão de ordem levantada pelo Relator, Ministro Cezar Peluso, no seguinte sentido:

“Decisão: Suscitada pelo Relator questão de ordem no sentido de retificar a proclamação da decisão, quanto à vinculação do Presidente da República ao deferimento da extradição, o Tribunal, por maioria, acolheu-a, vencidos os Senhores Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto. O Tribunal, por unanimidade, retificou-a, para constar que, por maioria, o Tribunal reconheceu que a decisão de deferimento da extradição não vincula o Presidente da República, nos termos dos votos proferidos pelos Senhores Ministros Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Marco Aurélio e Eros Grau. Ficaram vencidos quanto a este capítulo decisório os Ministros Cezar Peluso (Relator), Ricardo Lewandowski, Ellen Gracie e Gilmar Mendes (Presidente). Não votou o Senhor Ministro Celso de Mello por ter declarado suspeição. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Senhor Ministro Dias Toffoli. Plenário, 16.12.2009.” (sem grifos no original)

44. O Ofício nº 457, encaminhado pelo Supremo Tribunal Federal ao Ministério da Justiça, informou o seguinte resultado do julgamento (fls. 4.204/4.205 da Extradição nº 1.085):

“(...)
VIII) – por maioria, reconhecer que a decisão de deferimento da extradição não vincula o Presidente da República, nos termos dos votos proferidos (...)”

45. Considerando a solução dada à questão de ordem, no sentido de que o Presidente da República não estava vinculado à decisão tomada na extradição, parece evidente que em momento algum o Supremo Tribunal Federal determinou ao Presidente da República que efetivasse a extradição de Cesare Battisti.

46. Com efeito, no acórdão da questão de ordem e no Ofício nº 457, encaminhado ao Ministério da Justiça, está claramente explicitado que o aresto do Supremo Tribunal Federal não vincula a decisão do Presidente da República sobre a entrega do extraditando.

47. Portanto, nas circunstâncias do caso em exame, o Supremo Tribunal Federal, ao deferir a extradição, o fez tão-somente para afirmar que as condenações impostas a Cesare Battisti na Itália são hígidas, pois respeitaram o devido processo legal e demais garantias asseguradas ao extraditando perante o Poder Judiciário italiano e brasileiro, e que o pedido seguiu os ditames do Tratado específico de extradição firmado entre o Brasil e a Itália.

48. O requisito primordial para a propositura de reclamação é o descumprimento de decisão emanada do Supremo Tribunal Federal6. Se, como visto, a decisão da Corte não vinculou o Presidente da República, nada havia para ser afrontado, data maxima venia.

49. Ante o exposto, manifesta-se a Procuradoria Geral da República pelo não conhecimento da Reclamação e, se conhecida, pela sua improcedência.

Brasília, 6 de maio de 2011

ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

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1 A Extradição no Direito Internacional e no Direito Brasileiro, 3a. ed. S. Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1981. p. 59.

2 Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I - independência nacional;

II - prevalência dos direitos humanos;

III - autodeterminação dos povos;

IV - não-intervenção;

V - igualdade entre os Estados;

VI - defesa da paz;

VII - solução pacífica dos conflitos;

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X - concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

3 Tradução do original retirado de:

https://www.senato.it/documenti/repository/costituzione.pdf, acessado em 15.04.2011. Texto original: Art. 11. L’Italia ripudia la guerra come strumento di offesa alla libertà degli altri popoli e come mezzo di risoluzione delle controversie internazionali; consente, in condizioni di parità con gli altri Stati, alle limitazioni di sovranità necessarie ad un ordinamento che assicuri la pace e la giustizia fra le Nazioni; promuove e favorisce le organizzazioni internazionali rivolte a tale scopo.

4 Conforme assentado em diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal: EXT 1.168, Rel.: Ministro Ayres Britto; EXT 1.013, Rel.: Ministro Marco Aurélio e EXT 987, Rel.: Ministro Ayres Britto.

5 Art. 102 da Constituição Federal.

Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

(…)

e) o litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Território;

6 Na lição de Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, a finalidade da Reclamação é “preservar a competência e garantir a autoridade das decisões das cortes às quais é cometida.”. In: Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio de Fabris Editor, 2000. p. 482.

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