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STJ - Perícia inconclusiva leva STJ a manter indenização a paciente por erro em prótese dentária

3ª turma do STJ nega recurso de empresa e determina que clínica dentária de SP pague indenização por erro em prótese dentária de paciente. No recurso, a empresa argumentava não haver prova de defeito no produto. Para o STJ, diante do conhecimento técnico que possui, a empresa deveria ter apresentado quesitos suplementares aptos a sanar a lacuna do laudo pericial.

12/5/2011


Laudo

STJ - Perícia inconclusiva leva STJ a manter indenização a paciente por erro em prótese dentária

3ª turma do STJ nega recurso de empresa e determina que clínica dentária de SP pague indenização por erro em prótese dentária de paciente. No recurso, a empresa argumentava não haver prova de defeito no produto. Para o STJ, diante do conhecimento técnico que possui, a empresa deveria ter apresentado quesitos suplementares aptos a sanar a lacuna do laudo pericial.

Depois de se submeter a tratamento bucal na clínica, o paciente ficou sem dois dentes superiores dianteiros, impossibilitado de usar a prótese dentária e com mordida irregular. Por isso, a clínica foi condenada a indenizá-lo. O valor corresponde ao da prótese com problema mais o necessário para uma nova, além de dez salários mínimos por danos morais.

A empresa recorreu ao STJ para revisão da decisão. Segundo alegou, a decisão do TJ/SP afirmara que o laudo pericial foi inconclusivo, sem esclarecer se o grampo que prendia os dentes apresentou defeito em razão do uso indevido da prótese ou por sua má confecção. Mesmo assim, o TJ/SP teria condenado a empresa, sem apurar o motivo da quebra do grampo.

A ministra Nancy Andrighi, autora do voto-vista, negou provimento ao recurso. Ela compreendeu que a empresa, apesar de deter conhecimento técnico, não alegou na perícia a hipótese de mau uso pelo cliente. Conforme a ministra, diante do conhecimento técnico especializado da clínica, era de se esperar que ela atentasse para as lacunas existentes no laudo e apresentasse quesito suplementar para esclarecer o ponto específico. A maioria dos ministros seguiu este entendimento.

Veja abaixo a íntegra do acórdão.

__________

RECURSO ESPECIAL Nº 1.178.105 - SP (2010/0019198-8)

RELATOR : MINISTRO MASSAMI UYEDA

R.P/ACÓRDÃO : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : CLÍNICA INTEGRADA DE ATENDIMENTO ODONTOLÓGICO CIAO

ADVOGADO : SÉRGIO GERAB E OUTRO(S)

RECORRIDO : JOÃO CAVACA

ADVOGADO : JOSÉ FERNANDO ANDRAUS DOMINGUES E OUTRO(S)

EMENTA

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. HIPOSSUFICIÊNCIA TÉCNICA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. POSSIBILIDADE. DANOS MORAIS. VALOR. REVISÃO PELO STJ. POSSIBILIDADE, DESDE QUE IRRISÓRIO OU EXORBITANTE.

1. Ação indenizatória fundada na alegação de que, após submeter-se a tratamento bucal na clínica ré, o autor ficou sem os dois dentes superiores frontais e impossibilitado de utilizar prótese dentária. Evidencia-se a hipossuficiência técnica do autor frente à ré, na medida em que a relação de consumo deriva da prestação de serviços em odontologia, o desconhecimento do paciente acerca das minúcias dos procedimentos a serem realizados. A clínica, por sua vez, detém amplo domínio das técnicas ligadas à confecção de próteses, tanto que se dispôs a prestar serviços nessa área.
2. A hipossuficiência exigida pelo art. 6º, VIII, do CDC abrange aquela de natureza técnica. Dessa forma, questões atinentes à má utilização da prótese deveriam ter sido oportunamente suscitadas pela clínica. A despeito da sua expertise , não atuou, porém, de modo a evitar lacunas na perícia realizada, as quais tornaram o laudo inconcludente em relação à origem do defeito apresentado pela prótese dentária.

3. A revisão da condenação a título de danos morais somente é possível se o montante for irrisório ou exorbitante, fora dos padrões da razoabilidade.
4. Recurso especial a que se nega provimento.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei Beneti, por maioria, conhecer em parte do recurso especial e nesta parte negar-lhe provimento. Vencidos os Srs. Ministro Relator Massami Uyeda e Vasco Della Giustina. Votaram com a Sra. Ministra Nancy Andrighi os Srs. Ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino. Lavrará o acórdão a Sra. Ministra Nancy Andrighi.

Brasília (DF), 07 de abril de 2011(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Relator):

Cuida-se de recurso especial interposto por CLÍNICA INTEGRADA DE ATENDIMENTO ODONTOLÓGICO CIAO, fundamentado no artigo 105, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Historiam os autos que JOÃO CAVACA ajuizou ação de reparação de danos morais e materiais em desfavor da CLÍNICA INTEGRADA DE ATENDIMENTO ODONTOLÓGICO - CIAO, sob o argumento de que, ao ser submetido a um tratamento bucal indicado pela clínica ré, ficou sem os dois dentes superiores dianteiros e impossibilitado de usar a prótese dentária, pois a sua mordida estava irregular, situação que deveria ter sido detectada pelo profissional antes de iniciar o tratamento dentário, circunstâncias essas que o impossibilitam de alimentar-se corretamente, causam dor e vergonha (fls. 06/16 e-STJ).

O MM. Juiz julgou procedente o pedido (fls. 85/89 e-STJ).

Ambas partes apelaram (fls. 95/104 e 119/121 e-STJ), tendo a Sétima Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por unanimidade, negado provimento ao recurso do autor da ação e dado parcial provimento ao apelo da clínica ré, em acórdão assim ementado:

"Responsabilidade Civil cc. Danos Materiais e Morais - Tratamento odontológico com confecção de ponte móvel - Laudo pericial que comprovou existência de problemas anteriores ao tratamento realizado - Inexistência de nexo causal - Indenização devida apenas pela má confecção da prótese - Quantum minorado - Recurso do Autor improvido, provido parcialmente o da Ré.". (fl. 146 e-STJ)

Os embargos de declaração assim opostos (fls. 157/ 160 e-STJ) foram rejeitados (fls. 165/170 e-STJ).

Contra esses julgados, a CLÍNICA INTEGRADA DE ATENDIMENTO ODONTOLÓGICO CIAO interpôs recurso especial, fundamentado no artigo 105, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, em que se alega violação dos artigos 165, 458 e 535 do Código de Processo Civil; 186 do Código Civil e 14 do Código de Defesa do Consumidor.

Sustenta a recorrente, em síntese, negativa de prestação jurisdicional, pois, diante da pré-existência do dano estético, não poderia ter sido responsabilizada pelo fato de ter o ora recorrido ficado banguela. Alega, também, que não há se falar em responsabilidade da clínica, pois o laudo pericial foi inconclusivo quanto ao responsável pelo defeito da prótese. Por fim, postula a redução do quantum indenizatório (fls. 173/181 e-STJ).

Decorreu, in albis, o prazo para contrarrazções (fl. 186 e-STJ).

Inadmitido o apelo nobre no Juízo Prévio de Admissibilidade (fls. 187/189 e-STJ), os autos ascenderam a este Superior por força do provimento do Agravo de Instrumento n. 1.159.903/SP (2009/0035514-0) (fls. 243/250 e-STJ).

É o relatório.

EMENTA

RECURSO ESPECIAL - OFENSA AOS ARTIGOS 165, 458 E 535 DO CÓDIGO PROCESSO CIVIL - INEXISTÊNCIA – TRATAMENTO ODONTOLÓGICO - DÚVIDA QUANTO AO RESPONSÁVEL PELO DEFEITO NA PRÓTESE - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - AUSÊNCIA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES - IMPOSSIBILIDADE - ÔNUS DA PROVA DO AUTOR DA AÇÃO (ART. 333 DO CPC) - RECURSO PROVIDO.

1. Os embargos de declaração consubstanciam-se no instrumento processual destinado à eliminação, do julgado embargado, de contradição, obscuridade ou omissão sobre tema cujo pronunciamento se impunha pelo Tribunal, não se prestando para promover a reapreciação do julgado.

2. Impossibilidade, na espécie, de inversão do ônus da prova, ante a ausência dos seus requisitos autorizadores.

3. As provas carreadas aos autos tem por finalidade persuadir o magistrado no seu convencimento quanto à verdade real do fato posto em julgamento. Todavia, nos casos em que, apesar de todo o conjunto probatório produzido, persistir alguma dúvida quanto à causa de pedir, deve-se levar em consideração o regramento contido no artigo 333 do Código de Processo Civil, referente ao ônus da prova.

4. Recurso especial provido.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Relator):

Eminentes Ministros da Terceira Turma do colendo Superior Tribunal de Justiça.

O recurso não merece prosperar.

Com efeito.

Inicialmente, não há que se falar em negativa de prestação jurisdicional.

Os embargos de declaração consubstanciam-se no instrumento processual destinado à eliminação, do julgado embargado, de contradição, obscuridade ou omissão sobre tema cujo pronunciamento se impunha pelo Tribunal, não se prestando para promover a reapreciação do julgado (ut REsp 726.408/DF, Rel. Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 18/12/2009; REsp 900.534/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, DJe 14/12/2009 e REsp 1.042.946/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 18/12/2009).

In casu, não se verifica a alegada negativa de prestação jurisdicional, porquanto a questão referente à responsabilidade de clínica pelo dano estético foi apreciada, de forma clara e coerente, naquilo que pareceu relevante à Turma Julgadora a quo.

Observa-se dos autos que, com relação ao pedido indenizatório pela suposta alteração na arcada dentária do ora recorrido, o Tribunal de origem reconheceu a pré-existência do defeito estético, excluindo, inclusive, essa condenação, in verbis :

"Assim, entendo que os problemas do Autor já existiam quando procurou tratamento a ser realizado pela Ré, não sendo possível imputar-lhe qualquer erro grosseiro ou imperícia no tratamento realizado. Esta conclusão, por si só, afasta a pretensão à indenização nos moldes pleiteados na inicial, que se dirige à reabilitação oral total do paciente, com tratamento extenso, por problemas que já existiam anteriormente. Ressaltando que a Ré ofereceu este tratamento mais extenso para o Autor, tendo ele optado pelo de preço mais acessível." (fls. 152/153 e-STJ).

Assim, resultado diferente do pretendido pela parte não implica, necessariamente, em ofensa ao artigo 535 do Código de Processo Civil.

No que se refere à irresponsabilidade da clínica recorrente, ante a dúvida quanto ao causador do defeito na prótese parcial removível, o Tribunal de origem assim se pronunciou:

"De fato, a única conclusão a que se pode chegar com o laudo pericial é que a 'a Prótese Parcial Removível não apresenta condições satisfatórias de uso, uma vez que se encontra com um dos seus grampos fraturados, o que compromete sua retenção e estabilidade'.
Porém, o laudo não esclarece se esse grampo apresentou defeito em razão do uso da prótese ou se por má confecção.
A Doutrina e a Jurisprudência têm reconhecido que a obrigação do cirurgião dentista, ao contrário daquela assumida pelos médicos, é mais tendente ao resultado que ao meio, pois as patologias dentárias são mais comuns e restritas.
(...)
Assim, ante o defeito apresentado pela prótese, entendo cabível a devolução, a título de Danos Materiais, somente dos valores pagos pela prótese inadequada R$230,00 (e, não por toda a reabilitação oral, como pretende o Autor), bem como da quantia necessária para a confecção e colocação de nova Prótese Parcial Removível, utilizando-se o mesmo tratamento pelo qual pagou o Autor, a ser apurado em liquidação de sentença.
Pelo tempo que o Autor permaneceu sem os seus dentes superiores da frente, entendo ser cabível indenização por Danos Morais, ante o constrangimento e dissabor pela qual passou. (...)" (fls. 153/154 e-STJ).

É cediço que as provas carreadas aos autos tem por finalidade persuadir o magistrado no seu convencimento quanto à verdade real do fato posto em julgamento; as provas pertencem aos autos e são dirigidas ao juiz. Todavia, nos casos em que, apesar de todo o conjunto probatório produzido, persistir alguma dúvida quanto à causa de pedir, deve-se levar em consideração o regramento contido no artigo 333 do Código de Processo Civil, referente ao ônus da prova.

Assim, considerando a inconclusão do laudo pericial quanto ao responsável pelo defeito na prótese, caberia ao Autor da ação provar a má confecção da peça, nos termos do do artigo 333, inciso I, do Código de Processo Civil.

Por oportuno, frise-se que, in casu, não há que se cogitar de inversão do ônus da prova, pela ausência dos seus requisitos autorizadores.

O instituto da inversão do ônus da prova, ao contrário do que se possa parecer, não tem o condão de eximir o consumidor do seu ônus probante, pois a regra do artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor não prevalece sobre o artigo 333 do Código de Processo Civil. A princípio, portanto, cabe ao consumidor provar o direito alegado.

O ilustre Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em sua obra, disserta:

"Como, nas demandas que tenham por base o CDC, o objetivo básico é a proteção ao consumidor, procura-se facilitar a sua atuação em juízo. Apesar disso, o consumidor não fica dispensado de produzir provas em juízo. Pelo contrário, a regra continua a mesma, ou seja, o consumidor, como autor da ação de indenização, deverá comprovar os fatos constitutivos do seu direito.
(...)
No Brasil, o ônus probatório do consumidor não é tão extensivo, inclusive com a possibilidade de inversão do ônus da prova em seu favor, conforme será analisado em seguida. Deve ficar claro, porém, que o ônus de comprovar a ocorrência dos danos e sua relação de causalidade com determinado produto ou serviço é do consumidor. Em relação a esses dois pressupostos da responsabilidade civil do fornecedor (dano e nexo causal), não houve alteração da norma de distribuição do encargo probatório do art. 333 do CPC." (in Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor; 3ª ed.; São paulo: Ed. Saraiva, 2010; p. 354)

Não é por outro motivo que é uníssono o entendimento de que a inversão do ônus da prova não é automática, mas uma faculdade do magistrado, diante da verossimilhança ou da hipossuficiência do consumidor. Nesse sentido, confiram-se os seguintes precedentes: AgRg no REsp 728.303/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 28/10/2010; AgRg no Ag 1247651/SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 20/10/2010 e REsp 773.171/RN, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 15/12/2009, este assim ementado, no que interessa:

"PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 6º, VIII, DO CDC. PRESSUPOSTOS LEGAIS. NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. (...). (...).
1. (...).
2. (...).
3. O art. 6º, VIII, do CDC inclui no rol dos direitos básicos do consumidor "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências".
4. A expressão "a critério do juiz" não põe a seu talante a determinação de inversão do ônus probatório; apenas evidencia que a medida será ou não determinada caso a caso, de acordo com a avaliação do julgador quanto à verossimilhança das alegações ou à hipossuficiência do consumidor.
5. A transferência do encargo probatório ao réu não constitui medida automática em todo e qualquer processo judicial, razão pela qual é imprescindível que o magistrado a fundamente, demonstrando seu convencimento acerca da existência de pressuposto legal.
Precedentes do STJ.
6. (...).
7. (...).
8. (...).
9. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido."

Dessarte, verifica-se que, in casu, não foram preenchidos os requisitos autorizadores da inversão do ônus da prova.

A uma, não se verifica a verossimilhança, porquanto o acórdão consignou que não houve qualquer erro grosseiro ou imperícia no tratamento realizado e, ao mesmo tempo, reconheceu que "os problemas do Autor já existiam quando procurou tratamento a ser realizado pela Ré" (fl. 144 e-STJ).

Da mesma forma, como fora realizada perícia técnica, não há que se falar em hipossuficiência, pois, como leciona o professor José Geraldo Brito Filomeno, em seu "Manual de Direitos do Consumidor" , 10ª ed., p. 390, considera-se hipossuficiente o consumidor impossibilitado de "custear perícias e outros elementos que visem demonstrar a viabilidade de seu interesse ou direito ".

Destarte, ausente os pressupostos ensejadores da inversão do ônus da prova, indevida é a condenação da Clínica recorrente, frente à dúvida quanto ao responsável pelo defeito na prótese dentária, já que, nos termos do artigo 333 do Código de Processo Civil, cabe ao autor a prova dos fatos constitutivos do seu direito.

Fica prejudicado, com esse fundamento, a análise da questão referente ao quantum indenizatório.

Assim, amparado no artigo 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil, dá-se provimento ao recurso especial, para julgar improcedente o pedido autoral.

Inverte-se os ônus sucumbenciais, admitindo-se a compensação, nos termos da lei, ressalvado o art. 12 da Lei n. 1.060/50.

É o voto.

MINISTRO MASSAMI UYEDA

Relator

VOTO-VISTA

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI:

Cuida-se de recurso especial interposto por CLÍNICA INTEGRADA DE ATENDIMENTO ODONTOLÓGICO CIAO, com fundamento no art. 105, III, “a”, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ/SP.

Ação: de indenização por danos materiais e morais, ajuizada por JOÃO CAVACA em desfavor da recorrente, alegando que, após submeter-se a tratamento bucal na clínica ré, ficou sem os dois dentes superiores frontais e impossibilitado de utilizar prótese dentária. Afirma que sua mordida estava irregular, circunstância que deveria ter sido detectada pelo profissional da clínica antes de iniciar o tratamento dentário.

Sentença: julgou procedentes os pedidos iniciais, condenando a recorrente a arcar com todos os custos inerentes ao restabelecimento dentário do recorrido, bem como ao pagamento de indenização por danos morais arbitrada em 15 salários mínimos (fls. 85/89, e-STJ).

Acórdão: o TJ/SP negou provimento à apelação do recorrido e deu parcial provimento ao apelo da recorrente, limitando a indenização por danos materiais ao valor pago pela prótese, considerada inadequada, e ao montante necessário para a confecção e colocação de nova prótese parcial removível, bem como reduzindo a indenização por danos morais para 10 salários mínimos (fls. 146/154, e-STJ).

Embargos de declaração: interpostos pela recorrente, foram rejeitados pelo TJ/SP (fls. 167/170, e-STJ).

Recurso especial: alega violação dos arts. 165, 458 e 535 do CPC; 186 do CC/02; e 14 do CDC (fls. 173/181, e-STJ).

Prévio juízo de admissibilidade: o TJ/SP negou seguimento ao recurso especial (fls. 187/189, e-STJ), dando azo à interposição do Ag 1.159.903/SP, ao qual foi dado provimento para determinar a remessa dos autos ao STJ (fl. 248, e-STJ).

Voto do Relator: dá provimento ao recurso especial e julga improcedentes os pedidos do autor, concluindo pela ausência dos pressupostos ensejadores da inversão do ônus da prova.

Revisados os fatos, decido.

Cinge-se a lide a determinar a responsabilidade da clínica recorrente pelos danos descritos na petição inicial. Incidentalmente, cumpre determinar de quem é o ônus da prova quanto à origem do defeito apresentado pela prótese dentária utilizada pela clínica no tratamento do recorrido.

I. Da negativa de prestação jurisdicional. Violação dos arts. 165, 458, 515 e 535 do CPC.

Compulsando o acórdão recorrido, verifica-se que a prestação jurisdicional dada corresponde àquela efetivamente objetivada pelas partes, sem vício a ser sanado. O TJ/SP abordou a discussão de todos os aspectos fundamentais do julgado, dentro dos limites que lhe são impostos por lei, tanto que integram o objeto do próprio recurso especial e serão enfrentados logo adiante.

O não acolhimento das teses contidas no recurso não implica obscuridade, contradição ou omissão, pois ao julgador cabe apreciar a questão conforme o que ele entender relevante à lide. O Tribunal não está obrigado a julgar a questão posta a seu exame nos termos pleiteados pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento, consoante dispõe o art. 131 do CPC.

Constata-se, em verdade, o inconformismo da recorrente e a tentativa de emprestar aos embargos de declaração efeitos infringentes. Dessa forma, inexistente vício a macular o acórdão recorrido, correta a rejeição dos embargos de declaração, não havendo de se falar em ofensa dos arts. 165, 458 ou 535 do CPC.

II. Da prova do dano. Violação dos arts. 186 do CC/02 e 14 do CDC.

Alega a clínica que o TJ/SP “deixa claro que o laudo foi inconclusivo, mas condena a recorrente a indenizar o recorrido pelos fatos que decorrem de fato que não existe prova concreta nos autos, ou seja, o próprio v. acórdão declara que não se apurou o motivo da quebra dos grampos mas depois condena a recorrente por tal fato” (fl. 177, e-STJ).

Em primeiro lugar, cumpre frisar que, com base nas conclusões da perícia técnica, o TJ/SP consigna a existência de solução para o problema do recorrido. Nesse sentido, faz alusão a trecho do laudo pericial na qual se afirma que “uma prótese parcial removível bem planejada e confeccionada poderia oferecer condições razoáveis de reabilitação protética desde que o paciente estivesse ciente das limitações de resultado e disposto a aceitá-las” (fl. 151, e-STJ).

O Tribunal Estadual prossegue na análise do parecer técnico, destacando ter o perito concluído que, na hipótese específica dos autos, “a prótese parcial removível não apresenta condições satisfatórias de uso, uma vez que se encontra com um de seus grampos fraturados, o que compromete a sua retenção e estabilidade” (fl. 153, e-STJ).

Não obstante ressalve que “o laudo não esclarece se esse grampo apresentou defeito em razão do uso da prótese ou se por má confecção” (fl. 153, e-STJ), o TJ/SP condena a recorrente pelo mencionado defeito.

Patente, portanto, a inversão do ônus da prova levada a efeito pelo TJ/SP, entendendo que seria da clínica o dever de provar que o defeito da prótese dentária foi fruto de mau uso pelo paciente. Diante disso, confirmada a ausência dessa prova, impôs à recorrente o dever de indenizar.

Ocorre que a recorrente não se insurge contra o cabimento dessa inversão, tampouco contra o momento ou a maneira como o TJ/SP a promoveu, isto é, como regra de julgamento, sem oportunizar à parte a complementação da prova.

Na realidade, a clínica se volta apenas contra a existência de condenação sem prova concreta, aduzindo que “deveria necessariamente existir comprovação de que a prótese quebrou por defeito de confecção” (fl. 180, e-STJ). Tanto é assim que não há alegação de ofensa ao art. 6º, VIII, do CDC, que autoriza a inversão do ônus da prova.

O acórdão recorrido, contudo, não se vale unicamente da inexistência de prova: a partir dela avalia de quem é o ônus da sua não produção, imputando-o à clínica.

Sendo assim, esse ponto do recurso especial não merece ser conhecido, por deficiência de fundamentação. Incide à espécie a Súmula 283/STF.

Outrossim, tendo em vista o teor do voto do i. Min. Relator, enfrentando o mérito do especial, importa acrescentar que, mesmo se, para argumentar, fosse possível conhecer do recurso, não se vislumbra óbice à inversão do ônus da prova.

O art. 6º, VIII, do CDC, com vistas a garantir o pleno exercício do direito de defesa do consumidor, estabelece que a inversão do ônus da prova será deferida quando a alegação por ele apresentada for verossímil ou quando for constatada a sua hipossuficiência.

A hipossuficiência prevista no referido dispositivo legal deve ser analisada não apenas sob o prisma econômico e social, mas, sobretudo, na ótica da produção de prova técnica.

No escólio de Rizzato Nunes, a hipossuficiência que autoriza a inversão do ônus da prova “tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício etc.” (Comentários ao código de defesa do consumidor. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 152).

Outro não é o entendimento desta Corte, que em diversas oportunidades já reconheceu que a hipossuficiência exigida pelo art. 6º, VIII, do CDC, abrange aquela de natureza técnica. Confiram-se, à guisa de exemplo, os seguintes precedentes: AgRg nos EDcl no Ag 977.795/PR, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 13.10.2008; REsp 1.021.261/RS, 3ª Turma, minha Relatoria, DJe de 06.05.2010; e REsp 915.599/SP, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 05.09.2008.

Nesse contexto, tomando por base as “regras ordinárias de experiência” referidas no próprio art. 6º, VIII, do CDC, evidencia-se, na espécie, a hipossuficiência técnica do recorrido frente à recorrente, na medida em que a relação de consumo deriva da prestação de serviços em odontologia, sendo evidente o desconhecimento do paciente acerca das minúcias dos procedimentos a serem realizados. A clínica, por sua vez, detém amplo domínio das técnicas ligadas à confecção de próteses, tanto que se dispôs a prestar serviços nesta área.

Dessa forma, questões atinentes à má utilização da prótese deveriam ter sido oportunamente suscitadas pela clínica. A despeito da sua expertise , não atuou, porém, de modo a evitar lacunas na perícia realizada, as quais tornaram o laudo inconcludente em relação à origem do defeito apresentado pela prótese dentária. Por ter conhecimento técnico, era de se esperar que a recorrente atentasse para esse fato, apresentando quesito suplementar para esclarecer esse ponto específico.

Valiosas, aqui, as observações de Sérgio Cruz Arenhart, ao comentar as situações em que for constatada manifesta vantagem, em termos de prova, do fornecedor frente ao consumidor. De acordo com o autor, nessa hipótese justifica-se que se atribua àquele o ônus da prova, em relação à ausência de qualquer defeito no produto ou no serviço. Se o fornecedor tem maior facilidade em produzir a prova desta ausência – tendo, ademais, assumido o risco da fabricação do produto ou da prestação do serviço –, razoável é atribuir a ele a imposição de produzir a prova ou, ao menos, arcar com a dúvida judicial (resultante do não-esclarecimento) a respeito do assunto (Ônus da prova e sua modificação no processo civil brasileiro. In Provas. Aspectos atuais do direito probatório. São Paulo: Método, 2009, p. 348-349).

Em complemento a esse raciocínio, Luiz Guilherme Marinoni anota que, em determinados casos, ainda que não seja possível determinar, por meio de prova, que um defeito ocasionou um dando, seja porque as provas não são conclusivas, seja porque as regras de experiência não são absolutas, pode ser viável ao menos chegar a uma convicção de verossimilhança, que é legitimada em razão de que o violador da norma de proteção assumiu o risco da dúvida (...).

Porém, quando não se pode chegar nem mesmo à verossimilhança da alegação, basta a hipossuficiência” (Prova. São Paulo: RT, 2009, p. 195).

Do quanto exposto, fica inconteste a hipossuficiência técnica do recorrido frente à recorrente, bem como a possibilidade de inversão do ônus da prova quanto à origem do defeito apresentado pela prótese dentária utilizada pela clínica no tratamento do recorrido.

Acrescento por derradeiro que, a rigor, a presente controvérsia se soluciona apenas com base nas regras do próprio Código de Processo Civil relativas à distribuição do ônus da prova.

Isso porque, analisando a inicial, constata-se que a causa de pedir assenta no defeito da prótese, circunstância que, como visto, foi confirmada pela prova pericial.

A clínica, por sua vez, jamais afirmou que esse defeito decorreria de mau uso do aparelho, limitando-se a asseverar que “cumpriu integralmente o serviço odontológico em favor do paciente, não tendo em nenhum momento falhado ou prejudicado o autor” (fl. 37, e-STJ).

Nos termos do art. 333, II, do CPC, incumbiria à clínica provar que o dano derivou exclusivamente de culpa da vítima, pelo uso indevido da prótese. A questão, porém, foi suscitada apenas pelo TJ/SP, ainda assim para concluir que o defeito era de responsabilidade da recorrente.

Portanto, ainda que sob a ótica exclusiva do Código de Processo Civil, deve-se imputar à recorrente o ônus da prova quanto à origem do defeito da prótese.

Dessarte, não houve violação dos arts. 186 do CC/02 e 14 do CDC.

III. Da revisão do valor fixado a título de danos morais.

A recorrente afirma que a indenização arbitrada a título de danos morais “é exorbitante, pois, supera em quase vinte vezes o valor da própria prótese” (fl. 180, e-STJ).

Constitui entendimento assente no STJ que a revisão da condenação a título de danos morais somente é possível se o montante for irrisório ou exorbitante, fora dos padrões da razoabilidade. Nesse sentido, os seguintes precedentes: REsp 1.069.288/PR, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe de 04.02.2011; AgRg no Ag 1.192.721/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, DJe de 16.12.2010; e AgRg no Ag 1.179.966/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe de 06.12.2010.

Não é o que se verifica na hipótese dos autos, em que a indenização por danos morais foi fixada em 10 salários mínimos, patamar que, dadas as circunstâncias do caso, não pode ser considerado exagerado.

Forte nessas razões, peço vênia para divergir do voto do i. Min. Relator, conhecendo parcialmente do recurso especial e, nessa parte, lhe negando provimento.

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