Anencefalia
Juiz de Campo Grande autoriza interrupção de gravidez de feto anencéfalo
O juiz Carlos Alberto Garcete, da 1ª vara do Tribunal do Júri de Campo Grande/MS, deferiu requerimento para autorizar a interrupção de uma gravidez de feto anencéfalo.
Veja abaixo a íntegra da decisão.
_________________
Autos:
Classe: Ação Penal de Competência do Júri Parte Autora:
Parte Passiva:- I –
xxxx,
brasileira, casada, portadora do RG n. xxxx SSP/XX, inscrita no CPF sob o n. xxxxx, formula pedido de AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ, para o que alega: (i) está na 30ª semana de gravidez, sendo certo que, por meio de exame de ultrassonografia, obteve o diagnóstico de que o feto possui anencefalia fetal; (ii) realizou outros exames, os quais confirmaram a anencefalia fetal e, ainda, atestaram a existência de quatro camadas cardíacas atípicas; (iii) não há relato, na literatura médica, de sobrevida neonatal de fetos com essa anomalia; (iv) a continuação da gravidez pode trazer risco à saúde da requerente, além de desgastá-la emocionalmente.
A inicial foi instruída com os documentos de f. 7-24.
O Ministério Público Estadual manifestou-se favorável ao deferimento da medida pleiteada, sob o argumento de estar a requerente amparada pela excludente de culpabilidade, qual seja a inexigibilidade de conduta diversa, além de não ser razoável prorrogar o sofrimento da gestante, quando clinicamente comprovado não haver expectativa de vida para o feto (f. 26-34).
É o relatório dos autos.
Decido.
- I I –
1 INTRÓITO NECESSÁRIO
.A requerente pleiteia autorização judicial para interromper sua gravidez, uma vez que restou comprovado tratar-se de caso de anencefalia fetal, somado à existência de quatro camadas cardíacas atípicas. Em casos tais, não haveria expectativa de vida extrauterina.
O objetivo de autorização judicial, em casos tais, ocorre porque, como cediço, a legislação brasileira considera crime a prática do aborto, seja pela própria gestante ou por terceiro, consoante previsão expressa dos arts. 124, 125 e 126 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal brasileiro).
2 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ EM CASO DE FETO ANENCEFÁLICO.
A história da evolução do Direito, máxime a partir da fase de sua positivação, acabou por demonstrar que inexistem direitos absolutos, tampouco o direito à vida.
O debate acerca da interrupção de gravidez, em caso de feto anencefálico, tanto em sede doutrinária, quanto em sede jurisprudencial, é ululante.
De um modo geral, os valores materializados na Constituição Federal devem ser sopesados, ao buscar-se o deslinde da temática posta à apreciação judicial e, na hipótese versada, ao ter de enfrentar o título da "interrupção voluntária da gravidez de feto anencéfalo".
Entre esses valores a serem balanceados, postam-se, entre outros, os arts. 1º, inciso IV, 5º, inciso II, 6º, caput, e 196.
O tema da interrupção da gravidez do feto anencefálico, no cenário nacional, está a despertar interesses de toda a sociedade, nomeadamente por sofrer influxos, dentre outros, da Filosofia, da Sociologia e da Teologia.
Muitos são os detratores, os críticos do entendimento de admitir o aborto, sob autorização judicial, em casos tais, porquanto a gestante não teria a disponibilidade de decidir pela vida do feto, muito menos de decidir sobre o momento da interrupção de uma vida.
O fundamento nuclear do entendimento de que o Poder Judiciário não poderia autorizar a interrupção da gravidez seria de que os anencéfalos não estão mortos, uma vez que a Medicina consideraria equivalente à morte a cessação total da atividade encefálica, e não apenas a ausência de atividade elétrica cerebral. O feto anencéfalo, conquanto não possua parte do cérebro, possuiria cerebelo e tronco encefálico.
Para outros, todavia, seria constitucional e lícito ao Poder Judiciário autorizar a interrupção da gravidez do feto anencéfalo, pois que não constituiria um ato antijurídico, na medida em que o Direito protege a "vida humana", e não a sua falsa existência, como ocorre com a hipótese em testilha, na qual o feto ou o embrião só estaria vivo por conta do organismo materno.
A trazer esse debate ao direito positivo, no intuito de problematizar as matizes fundadoras das teses antagônicas, alguns juristas, favoráveis ao aborto de feto anencéfalo, adotam o entendimento de que não haveria crime de aborto, por conta da atipicidade material da conduta. Outros, preconizam o entendimento de que seria a hipótese de inexigibilidade de conduta, já que a gestante não mais suportaria carregar em seu ventre um feto sem perspectiva de vida.
De entendimento da ocorrência de inexigibilidade de conduta diversa, coloca-se o festejado penalista Guilherme de Souza Nucci. Di-lo:
Até este ponto, cremos ser razoável a invocação da tese de ser inexigível a mulher carregar por meses um ser que, logo ao nascer, perecerá. Mas não se pode dar margem a abusos, estendendo o conceito de anomalia fatal para abranger fetos ou embriões que irão constituir seres humanos defeituosos ou monstruosos. Afinal, nessa situação, o direito não autoriza o aborto.
Dessa corrente, aliás, mostrou-se prosélito o Ministério Público Estadual, por meio do promotor de justiça que subscrevera o parecer de f. 26-31 (Fernando Martins Zaupa), ao assinalar:
Não obstante a proibição genérica do aborto prevista no Código Penal, na prática há uma possibilidade para autorizar o tipo de abortamento em tela, pelo que já está consagrado como 'inexigibilidade de conduta diversa'.
Como costumeiramente é indagado: é justo exigir-se da mãe conduta diferente da adoção do aborto diante da ciência de que seu filho é um ser anencéfalo?
E no caso dessa mãe ter abortado, é justo condená-la por isso?
[...] Trata-se, nesse caso, de uma exclusão supralegal da culpabilidade. [f. 30]
Destaca o precitado Nucci:
[...] Entretanto, se os médicos atestarem que o feto ou embrião é verdadeiramente inviável, vale dizer, possui malformação que lhe impedirá a vida fora do útero materno, não se cuida de 'vida própria', mas de um ser que sobrevive à custa do organismo da gestante. No caso do anencéfalo (ausência de calota craniana e parcela do cérebro), uma vez que a própria lei considera cessada a vida tão logo ocorra a morte encefálica, não há viabilidade para se sustentar a gravidez.
Assim a ausência de abóbada craniana e de hemisférios cerebrais pode ser motivo mais suficientemente para a realização do aborto, que não é baseado, porém, em características monstruosas do ser em gestação, e sim na sua completa inviabilidade como pessoa, com vida autônoma, for do útero materno, José Aristodemo Pinotti ensina que a 'anencefalia' é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéricos e ambientais durante o primeiro mês de embriogênese […] O reconhecimento de conceito com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borba superior das órbitas que contém globos oculares salientes. O cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína ulmentados no líquido amniótico obtido por amniocentese. A maioria dos anencéfalos sobrevive no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for brida amniótica (rompimento da membrana amniótica, que aprisiona um membro ou parte do feto), podem sobreviver um pouco mais, mas sempre é questão de dias. As gestações de anencéfalos causam, com maior frequência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico) levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado" (anencefalia, p.63). [...]
Em síntese: o fato de o feto ser monstruoso, possuir graves anomalias físicas ou mentais, não é, por si só, motivo para autorizar o aborto, desde que haja viabilidade para a vida extra-uterina, embora possa sê-lo quando a vida for praticamente artificial, sem qualquer possibilidade de se manter a partir do momento em que deixar o ventre da mãe.
À vista dessa celeuma, tanto melhor seria se o Supremo Tribunal Federal (STF), como indiscutível "guardião maior da onstituição" — desde os tempos remotos de debates entre Carl Schmitt e Hans Kelsen acerca de quem deveria interpretar a Constituição —, houvesse se pronunciado a respeito do tema, diante do aparente conflito entre uma Constituição da República e um Código Penal que antecede aos idos de 1940.
Nesse diapasão, deve ser lembrado que, no ano de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde promoveu, perante o STF, a ADPF n. 54-DF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), cujo escopo era que o referido areópago autorizasse, em todo o território nacional, a prática do aborto em casos de nascituros portadores de anencefalia.
Subscrevia a petição inicial dessa ação o constitucionalista brasileiro Luiz Roberto Barroso.
Nesse caso, a ADPF foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio de Melo, que, na qualidade de relator, concedeu, em 1º-7-2004, liminar para admitir, até o julgamento de mérito em definitivo, do plenário do STF, o abortamento de fetos anencéfalos em todo o território nacional.
Nada obstante, o plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, houve por bem revogar a liminar deferida, a fim de que se aguardasse o julgamento definitivo da ADPF. De qualquer modo, continua em vigor a liminar, na parte em que determinou o sobrestamento de todas as ações penais, no território brasileiro, que se refiram a imputações do crime de aborto em casos tais.
Dentro desse contexto, conquanto a comunidade jurídica aguarde até o momento o julgamento, em definitivo, do Supremo Tribunal Federal, acerca da possibilidade de interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo, subsiste a liminar que suspendeu qualquer ação penal que envolva o tema.
A despeito da revogação plenária da liminar concedida pelo Relator da ADPF n. 54, Ministro Marco Aurélio, merece trazer à baila seus fundamentos:
[...] Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor.
A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar.
No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.
3. Ao Plenário para o crivo pertinente.
4. Publique-se.Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas.
Ministro MARCO AURÉLIO
Relator
Expostos todos os debates a respeito de tema extremamente palpitante, passo a expender o entendimento deste Juiz, fruto de formação unipessoal, humanística e, em última razão, técnica, e que decorre, naturalmente, dos influxos de sua existência, de suas experiências e de seu viso sociofilosófico que, seguramente, não tem a pretensão de se pôr como o senhor da razão.
Fá-lo porque o compromisso do juiz é cumprir a Constituição e as leis dentro do plexo de normas que as formam, num sistema aberto de interpretação, com o escopo de, acima de tudo, buscar a solução mais escorreita à entrega da prestação jurisdicional.
François Rigaux assinala que a interpretação judiciária não é puramente receptiva, pois não basta que o juiz tenha compreendido a vontade ou as intenções do legislador, porquanto seu dever é transformá-las em uma decisão que lhe seja própria ao mesmo tempo que aplica a lei.
Na atividade judicante, aliás, não deve o juiz estar inquieto com as pressões populares e com as diversas maneiras de arrostar o problema levado ao exame do Poder Judiciário, pois seu dever é, em última razão, decidir com a isenção necessária.
Comuníssimo, inclusive, o acompanhamento da mídia em casos polêmicos, cuja interpretação jurídica decorre de pontos de vista heterogêneos, como é o caso presente.
Lembra Paulo Machado Cordeiro que a responsabilidade dos juízes não tem por base o controle difuso da opinião pública, embora seja um fato relevante de responsabilização democrática em geral e possa resultar em um controle objetivo eficaz, mas, atualmente, resultaria em impossibilidade material a vinculação do juiz a esse tipo de controle.
Na hipótese versante, reputo, à guisa de prolepse, que a solução que se me afigura a mais justa neste caso é autorizar a interrupção da gravidez, tal como pretendido pela requerente.
Tive a cautela de, em audiência, ouvir os interessados (mãe e pai) e o médico que forneceu o diagnóstico clínico específico, para, a assim agir, ter a consciência de haver decidido da forma mais justa.
A meu ver, restou evidenciado que não há condições biológicas de sobrevida do feto, por se tratar de anencéfalo, conforme bem esclareceu o médico ouvido em audiência. Ademais, os pais demonstraram plena convicção da decisão que tomaram.
Nessa senda, não autorizar a interrupção da gestação seria protrair a via crucis, máxime da genitora, marcada que está pela angústia e pelo sofrimento, sentimentos esses cuja análise não compete a ninguém fazê-lo por empatia, porque é "pessoal"; é "subjetivo"; não pode ser "introjetado" por quem quer seja.
É bem verdade que a Constituição da República assegura, fundamentalmente, o direito à vida, fruto de história indelével da humanidade, evoluída de guerras que exterminaram (e exterminam), até os dias atuais, milhares de seres humanos.
Por essa razão, a vida é valor que deve merecer a luta necessária à sua manutenção, tal como ocorreu até a pres nte data, conforme a História comprova a todos nós desde os bancos escolares até o aprofundamento que decorre de estudo de Teoria Geral do Estado, a desaguar em um Direito Constitucional que (é possível dizer) é novel à sociedade contemporânea, porque sucede do "século das luzes", do Iluminismo.
Entrementes, vida essa que deve ser entendida quando exequível, sem lobrigar; deve sê-la palpável, real, concreta. Não é a situação do feto não viável, ou seja, aquele não disposto à vida extrauterina.
Importante gizar que, literalmente, anencefalia significa a ausência do encéfalo, muito embora, a rigor, o encéfalo seja composto pelo cérebro, cerebelo e tronco cerebral. De qualquer sorte, no sentido comumente dado a essa expressão, o anencéfalo não possui cérebro, ou parte dele, conquanto tenha o tronco cerebral, que é formado pelo bulbo (alongamento da medula espinhal).
De acordo com o Comitê de Bioética do Governo Italiano, define-se este termo uma má-formação rara do tubo neural acontecida entre o 16º e o 26º dia de gestação, na qual se verifica ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela se sobrepõem em grau variado de máformação e destruição dos esboços do cérebro exposto.
À vista desse conceito, a própria Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), na precitada ADPF 54, invocou o art. 3º da Lei n. 9.434, de 3-2-1997 (Lei dos Transplantes), do qual se lê:
A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
Controverte-se, no entanto, acerca do que seria a morte encefálica. O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução n. 1.480, de 8-8-1997, em seu "considerando", observou que "a parada total e irreversível das funções encefálicas equivaleria à morte", o que, como dito, é suscetível de dissensão.
Nada obstante, é fato que não há prognóstico de vida extrauterina na maioria dos casos e, excepcionalmente, quando ocorre, é, em geral, por tempo extremamente reduzido.
Não há divergência considerável, na comunidade médica, a respeito desse diagnóstico e de suas consequências. Vejamos:
Anencefalia é um defeito congênito (do latim "congenitus", "gerado com"). Começa a se desenvolver bem no início da vida intra-uterina. A palavra anencefalia significa "sem encéfalo", sendo encéfalo o conjunto de órgãos do sistema nervoso central contidos na caixa craniana. Não é uma definição inteiramente acurada, pois o que falta é o cérebro com seus hemisférios e o cerebelo: Uma criança com anencefalia nasce sem o couro cabeludo, calota craniana, meninges, mas contudo o tronco cerebral é geralmente preservado (Müller 1991).
Muitas crianças com anencefalia morrem intra-útero ou durante o parto. A expectativa de vida para aquelas que sobrevivem é de apenas poucas horas ou dias, ou raramente poucos meses (Jaquier 2006).
Infelizmente não há tratamento conhecido para uma criança com anencefalia. A anencefalia ocorre quando o final da extremidade superior do tubo neural deixa de se fechar. Crianças com esse distúrbio nascem sem couro cabeludo, calota craniana, meninges, cérebro com seus hemisférios e cerebelo, embora normalmente tenham preservado o tronco cerebral. O tecido cerebral restante é protegido somente por uma fina membrana. A criança é cega, surda e não tem ou tem muito poucos reflexos. Cerca de 40% dos fetos anencefálicos morre intra-útero e 25% ao nascer. Aqueles que sobrevivem têm uma expectativa de vida de poucas horas, poucos dias e muito raramente poucos meses.
Nesse processo de desenvolvimento embrionário, podem ocorrer, no entanto, malformações de maior ou de menor gravidade. Uma delas – por sinal, a mais severa de todas – é a anencefalia. O tubo neural, na sua porção anterior, deve fechar-se por volta do vigésimo quarto dia após a concepção quando o embrião já possui um tamanho da ordem de 4,5mm. Se o fechamento não suceder, apresenta-se uma anomalia embrionária idônea a produzir gravíssimas alterações anatômicas.
Como descreve Mario Sebastiani, "a anencefalia caracteriza-se pela ausência de uma grande parte do cérebro, pela ausência da pele que teria de cobrir o crânio na zona do cérebro anterior, pela ausência de hemisférios cerebrais e pela exposição exterior do tecido nervoso hemorrágico e fibrótico". O quadro do feto anencéfalo não se resume apenas às seqüelas já referidas. [...] Não obstante os defeitos congênitos já referidos, o feto anencefálico possui, no entanto, o tronco cerebral cuja existência propicia vários reflexos.
Por todas essas graves carências do processo de desenvolvimento embrionário, o anencéfalo guarda, em altíssimo percentual, incompatibilidade com os estágios mais avançados da vida intra-uterina e total incompatibilidade com a vida extra-uterina.
Como bem colocou à reflexão o Ministro Carlos Brito, ao apreciar questão de ordem na ADPF 54:
No caso da gravidez do anencéfalo, volto a usar daquela metáfora, não quero falar de coisa para não coisificar um tema tão importante, tão repassado de espiritualidade como este. O que se tem no ventre materno é algo, mas algo que jamais será alguém. Usei, lembro-me bem, da metáfora do casulo da crisálida e da borboleta. O útero materno é um casulo. O feto anencéfalo é uma crisálida, mas que jamais chegará ao estádio da borboleta, jamais alçará vôo. Eu me pergunto: estamos aqui discutindo sobre o direito de viver, o direito de nascer ou o direito de nascer para morrer? Existe esse direito de nascer para morrer? Não tenho resposta para isso e, por isso, pedi vista do processo.
Mas, quando as leis penais naturalmente criminalizam o aborto, elas o fazem no pressuposto da interrupção de uma vida em gestação, ou seja, o que se procura impedir é que, pelo aborto, se interrompa um destino, se inviabilizasse uma trajetória mundana, se impeça alguém de ter um destino próprio extra-uterino — não pode ser diferente. Depois, a gravidez vem num circuito envolvente da própria família, não é algo isolado, e, sobretudo, da mulher que tem lá suas expectativas, os seus sonhos, as suas fantasias, que são o conteúdo mais sublime e mais forte de todos os amores: o amor materno.
E conclui:
Pois bem, não é assim mesmo com o feto anencéfalo: Ele está aparentemente vivo, na verdade ele está ligado e por isso respira e por isso se desenvolve. Ele está ligado a uma UTI, chamada útero, mas a partir do momento em que se opera o desligamento do feto desses aparelhos ou dessa UTI, que se chama útero, nada mais resta, não há mais vida.
Embora eu não tenha um ponto de vista que considere definitivo, mas tenho sinais, tenho indicadores que me levam a endossar a decisão corajosa do Ministro Marco Aurélio.
É como voto.
Penso que os debates se travam no plano das ideias, pelos homens, mas a dor, o sofrimento e a tristeza dos verdadeiros interessados — mães e pais — são, no mais das vezes, colocados ao largo; no plano secundário.
Não se trata — consoante muitos asseveram — de, com a autorização de interrupção da gravidez do feto anencéfalo, determinar o momento da interrupção da vida. É a expectativa de trazer ao mundo um novo ser que faz projetá-lo como indivíduo independente; é o prognóstico de existência que justifica o direito inalienável à vida.
Não entendo justo o Direito — o mundo do dever-ser — inadmitir a interrupção da gravidez, em caso de feto anencéfalo, quando os pais estão decididos a isso, notadamente a genitora, por saber que não trará ao mundo um ser que terá a sua própria existência, mas um feto que, ao ser desprendido do vínculo umbilical, terá rompido o suspiro da vida.
Desafortunadamente, a vida nos reserva surpresas, algumas desagradáveis, como bem observou o Ministro Marco Aurélio, por ocasião da concessão da liminar na ADPF 54.
No caso de feto anencéfalo, estudos médicos demonstram que a morte ocorre, durante a vida intrauterina, em mais de cinquenta por cento dos casos. Nos demais, ao chegar-se ao termo de gestação, a sobrevida é diminuta.
Dentro desse contexto, a manutenção da gestação, contrária à vontade da gestante, resulta, iniludivelmente, em danos à integridade moral e psicológica da mulher.
Nesse sentido, o parecer psicológico ofertado ao caso da requerente:
Conclui-se que a Sra. XXX demonstrou-se abalada emocionalmente, porém apresenta condições emocionais para enfrentar a interrupção da gestação e suportar a perda do filho desejado. Apresenta fortes dores na barriga, um quadro de anemia severa e um desconforto geral. A mulher de gestação de feto anencefálico sofre um desgaste emocional e físico muito intenso, seu corpo sofre transformações e nesse caso inutilmente. Podendo entrar em um quadro depressivo, com muita ansiedade pela espera desgastante como é esse caso.
Não existem motivos plausíveis para que se de continuidade a gestação, sabendo concretamente de se tratar de feto, incompatível com a vida extra-uterina, e, portanto, partindo desse pressuposto, poderá causar grave dano psicológico à gestante (aguardando evolução), bem como risco à vida eminente que sofrerá a mãe ao dar progressão a gestação, faz-se a indicação da interrupção da gestação e psicoterapia.
Sendo assim estará assegurado à gestante a sua integridade física e psicológica, e direito à dignidade humana.
Destarte, findamos este parecer psicológico, acreditando no cumprimento do dever ético profissional a tão almejada justiça.
Consigne-se que, in casu, os laudos de exames de ultrassom obstétrico comprovam tratar-se de feto com anencefalia, má-formação incompatível com a vida extrauterina e incurável (f. 8, 16-17).
Deve ser anotado que, a despeito de toda a celeuma acerca da interrupção de gravidez, no caso de feto anencéfalo, pouco se diz sobre o chamado "aborto humanitário", acerca do qual, diga-se de passagem, nosso Código Penal considera a conduta lícita, quando a gravidez for decorrente de estupro, situação que, a meu particular juízo, me parece muito mais grave.
Trata-se de caso em que, em linhas gerais, se refere a feto com total perspectiva de vida extrauterina, cuja interrupção se dá apenas pela forma como concebido, o que, em princípio, não se afigura compatível com o texto constitucional da Carta da República.
Em casos tais, alerta Afrânio Peixoto:
É santo o ódio da mulher forçada ao bruto que a violou. Concluir daí que este ódio se estenda à criatura que sobreveio a essa violência, é dar largas ao amor próprio ciumento do homem, completamente alheio à psicologia feminina. Um filho é sempre um coração de mãe que passa para um novo corpo.
Sem adentrar o mérito da supracitada hipótese de exclusão de ilicitude, qual seja o abordo decorrente de gravidez oriunda de estupro, fica aqui a reflexão a tal respeito.
Por conseguinte, não tenho dúvida em asseverar que, não permitir que uma gestante possa decidir acerca da interrupção de gravidez, em caso de feto anencefálico, a impor-lhe todos os danos psicológicos da manutenção dessa gestação, é descurar-se que nossa República é inspirada pelo princípio fundamental da dignidade humana (Constituição Federal de 1988, art. 1º, inciso III).
Enfrentada a ótica constitucional deste tema, passo ao posicionamento do Conselho Federal de Medicina, bem como seu enquadramento à luz do sistema jurídico-penal brasileiro.
3 DO POSICIONAMENTO DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
.O Conselho Federal de Medicina, por meio de seu atual Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 1931, de 24-9-2009), em seu art. 14, ao cuidar da responsabilidade profissional, estatui que é vedado ao médico praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação do país.
O art. 15, por sua vez, dispõe que lhe é vedado descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou de tecidos, esterilização, fecundação artificial, abortamento, manipulação ou terapia genética.
Por essa razão, é praxe, em hipótese como a destes autos, o médico assistente orientar a paciente a buscar a autorização judicial necessária à interrupção da gravidez.
4 ASPECTOS JURÍDICO-PENAIS.
A teoria do crime incumbe de estudar as características alusivas às condutas típicas penais.
Em Hans-Heinrich Jescheck:
A teoria do delito se ocupa dos pressupostos jurídicos gerais da punibilidade de uma ação. Alcança não só os delitos [...], mas toda ação punível. [...] A teoria do delito não estuda os elementos de cada um dos tipos de delito, senão os componentes do conceito de delito que são comuns a todo fato punível. Tais são, em particular, as categorias da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade, que, por sua vez, subdividem-se em numerosos subconceitos [...].
Para buscar-se a solução penal ao caso pretendido pela requerente — interrupção de gravidez por feto anencefálico —, deve-se perquirir acerca do conceito de crime.
O primeiro critério é o conceito forma l, segundo o qual crime é a violação da norma penal incriminadora. A conduta humana que viola a lei penal.
Neste particular, impende alinhavar que a estrutura do crime pode ser formulada de modo bipartido (crime = tipicidade e antijuridicidade + culpabilidade) ou de modo tripartido (crime = tipicidade + antijuridicidade + culpabilidade), de acordo com a corrente adotada pelo operador do Direito.
A doutrina brasileira, em sua grande maioria, adota o sistema tripartido.
O segundo critério é o material, a levar em linha de conta o ângulo ontológico do delito. Consubstancia-se no bem protegido pelo Direito Penal. Na lição de Sheila Bierrenbach, o conceito material de crime é a "a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei penal".
É que o Direito Penal, de acordo com a opinião dominante, cuida da proteção de bens jurídicos. Seleciona, assim, os bens reputados merecedores da tutela penal.
Nosso ordenamento jurídico pune a conduta do aborto, cuja tutela jurídica é a vida. Ademais, o sistema penal brasileiro contempla hipóteses específicas de exclusão de antijuridicidade, a saber:
Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
A primeira situação é denominada de "aborto terapêutico", que decorre do estado de necessidade, porquanto, entre os dois bens que estão em colisão (vida da gestante e vida do feto ou embrião), o Direito opta pela vida da mãe.
A segunda situação diz respeito ao chamado "aborto humanitário", sob o amparo do princípio constitucional da dignidade humana, no caso de a mulher ter sido vítima de crime de estupro.
A vexata quaestio repousa no fato de não existir previsão legal de exclusão de ilicitude ao aborto em hipótese de feto anencéfalo.
Em princípio, a prática de aborto em situação atual acarreta a responsabilidade criminal tanto à gestante, quanto ao médico que efetive a intervenção cirúrgica (conforme Código de Ética Médica — Resolução CFM n. 1931, de 24-9-2009 —, arts. 14 e 15).
Daí a razão por que a gestante, no caso de discordância quanto à continuidade da gravidez, busca a tutela do Poder Judiciário para obter um alvará.
Neste compasso, como já foi dito, discute-se se o aborto, em hipóteses tais, configuraria uma situação (i) de "atipicidade" ou (ii) de "inexigibilidade de conduta diversa".
Filio-me ao entendimento de que a interrupção da gravidez, na situação de feto anencéfalo, é fato gerador de atipicidade penal. Trata-se da teoria constitucionalista do crime.
Reputo que a objeto jurídico da tutela penal não é malferido, pelo que não cabe cogitar do jus puniendi do Estado. O Direito Penal não pode servir a punir a gestante que, de maneira consciente, decida pela interrupção da gravidez neste caso.
Ainda que, a rigor, pudesse falar-se na chamada tipicidade formal, não visualizo a mencionada tipicidade material.
A meu sentir, o entendimento atual do conceito constitucional de crime é o mais escorreito.
Como ensina Rogério Greco, "esse conceito de simples acomodação do comportamento do agente ao tipo não é suficiente para que possamos concluir pela tipicidade penal, uma vez que esta é formada pela conjugação da tipicidade formal (ou legal) com a tipicidade conglobante".
O fato deve, não só ser antinormativo, como, também, ofender bem jurídico tutelado pelo Direito Penal — tipicidade material.
Cumpre não perder de vista que o Direito Penal, porque dinâmico, esteve a permear a evolução da Teoria do Tipo Penal.
Encetou-se pela "Teoria Causalista", de Von Liszt e Beling (final do século XIX e início do século XX), com um conceito puramente objetivo. A tipicidade consistia em: i) conduta; ii) resultado naturalístico (nos crimes materiais); iii) nexo de causalidade; iv) adequação típica (subsunção do fato à norma).
Ao depois, emergiria a etapa do "Neokantismo" (Frank, Mayer, Radbruch, Sauer, Mezger, entre outros), pela qual se exaltava a necessidade de valoração do tipo penal, na medida em que criticava a concepção neutral da Teoria Causalista.
Com o surgimento da "Teoria Finalista" (Welzel), por volta do ano 1945, o tipo penal passaria a ser composto pelos elementos objetivo e subjetivo. A dimensão subjetiva foi deslocada da culpabilidade para ser inserta na estrutura da tipicidade. Vale lembrar que, ao tempo do causalismo e do neokantismo, o dolo e a culpa constituíam formas de culpabilidade.
A quarta fase de evolução exsurge com a "Teoria Funcionalista" (Claus Roxin), por volta de 1970. Para esta, o tipo penal é valorado em face da finalidade da pena ou da norma. Trata-se de um critério teleológico-racional. O tipo penal seria composto por três dimensões: i) objetiva; ii) normativa; iii) subjetiva.
Hodiernamente, merece ser destacado que, consoante penalistas de nomeada, entre os quais Luiz Flávio Gomes, a Teoria do Delito estaria na fase "Constitucionalista", cuja estrutura conceitual refuta a concepção puramente formal da tipicidade. '
Logo, a tipicidade passa a ser entendida como: tipicidade formal + tipicidade material. Desse modo, não haveria crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico (nullum crimen sine iniuria).
Consoante o magistério de Luiz Flávio Gomes:
A noção (e o conceito) de tipo penal, como se nota, é muito mais abrangente que a de tipo legal. Há requisitos exigidos pela tipicidade penal (resultado jurídico, desaprovação da conduta, imputação objetivo do resultado, dimensão subjetiva nos crimes dolosos) que não fazem parte da literalidade da tipicidade legal. Dizer, portanto, que um fato é típico legalmente não é a mesma coisa que afirmar que ele o seja materialmente (penalmente).
E arremata:
Do exposto se extrai a seguinte conclusão: nem tudo que foi mecanicamente causado pode ser imputado ao agente, como fato pertencente a ele (como obra dele pela qual deva ser responsabilizado). Aquilo que se causa no contexto de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridicamente desaprovado, logo, não é juridicamente imputável ao agente.
Abro um parêntese a fim de pontuar que o intérprete deve atentar à distinção entre causar e imputar, cuja diferenciação decorre de interpretação do art. 13 do Código Penal brasileiro ("O resultado, de que depende a existência do crime, só é imputável a quem lhe deu causa").
Abebero-me, uma vez mais, em Luiz Flávio Gomes:
[...] Causar está no mundo fático (mundo da causalidade). A imputação pertence ao mundo axiológico (ou valorativo ou normativo). O causar é objetivo (pertence ao mundo da causalidade, ao mundo fático). A imputação é normativa (depende de juízo de valor do juiz). O causar é formal. A imputação é normativa e o resultado é o requisito material (de garantia).
Segue-se que deve ser sopesado, inclusive, se, na hipótese versante, haveria verdadeira imputação.
No tipo penal de aborto, o bem jurídico tutelado é a vida humana intrauterina; o sujeito passivo é o feto. Desse modo, para que a interrupção da gravidez tenha tipicidade material, deve haver ofensa à vida do feto.
A antecipação de parto, no caso de feto anencéfalo, não atinge o bem juridicamente tutelado, porquanto a sua morte independente dessa conduta. Vale dizer: não há expectativa de vida extrauterina, sob o ponto de vista biológico, mesmo que se aguardasse o termo da gravidez.
O referido professor Luiz Flávio Gomes, em seu artigo "Aborto Anencefálico: não é crime", assim se posiciona:
Como sabemos, pela letra fria da lei, a prática do aborto anencefálico constitui (melhor, constituiria) delito. Literalmente haveria crime, já que para o Código Penal não são punidos apenas os abortos praticados quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro. Mas, para nós, adeptos da teoria constitucionalista do delito, o fato encontra resposta jurídica e social para deixar de ser considerado materialmente típico ou proibido.
Para esta teoria (constitucionalista do delito) não há crime se o fato não é formal e materialmente típico. Explicamos. Crime é fato típico, antijurídico e, para alguns, culpável. No estudo do fato típico inclui-se a conduta, o resultado o nexo de causalidade e a adequação típica. Para nós, constitucionalistas, para que se possa falar em completa união destes elementos que compõem o fato formal e materialmente típico, o resultado que advém da conduta há de preencher alguns requisitos: que seja concreto, transcendental, relevante, intolerável, objetivamente imputável ao risco criado e que esteja no âmbito de proteção da norma.
Pois bem. Compare-se a uma cadeia da qual retirado qualquer elemento não se tem o resultado final. Para que, tecnicamente, haja crime é preciso atentar para a cadeia acima relatada. No caso da conduta que faz cessar a gestação de um feto anencefálico há verdadeiramente um fato típico? Entendemos que não. Há uma conduta, desta conduta há um resultado previsto pelo ordenamento em norma proibitiva (abortamento – arts. 124 e 126, CP), mas este resultado é desvalioso? Não. Porque não intolerável.
Porque a morte, no aborto anencefálico, não é arbitrária (art. 4º da CADH). Logo, não há fato típico e consequentemente não há crime.
Ninguém pode ser privado da sua vida arbitrariamente (como diz o art. 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos). Constatada a anencefalia e a impossibilidade de vida independente, não há que se falar em arbitrariedade. Mais, a antecipação do abortamento, nesse caso, nos parece bastante razoável e até mesmo permitida pela ordem constitucional visto que a Constituição Federal de 1988, mais do que garantir a vida, quer garantir a todos uma vida digna, por meio do princípio da dignidade da pessoa humana.
Outrossim, não se pode deixar de considerar os demais bens jurídicos em questão: saúde e dignidade da gestante, direitos protegidos constitucionalmente.
Diante dessas considerações, ao ponderar, de um lado, a vida do feto, sem viabilidade extrauterina, e de outro, a dignidade da gestante e a sua saúde física e mental, reputo não haver desvalor do resultado (juízo de reprovação do resultado jurídico) e, portanto, não ter a conduta pretendida pela requerente tipicidade penal material.
Nesse comenos, oportuna a transcrição de trecho do voto proferido pelo Ministro Arnaldo Esteves Lima, do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, no julgamento do Habeas Corpus n. 56.572/SP:
Conforme ressaltado no voto proferido pela eminente Ministra LAURITA VAZ, como relatora do HC 32.159/R , julgado nesta Quinta Turma em 17/2/2004, "O tema em debate é bastante controverso, porque envolve sentimentos diretamente vinculados a convicções religiosas, filosóficas e morais". Contudo, conforme advertiu a relatora daquele writ, "[...] independentemente de convicções subjetivas pessoais, o que cabe a este Superior Tribunal de Justiça é o exame da matéria porta em discussão tão-somente sob o enfoque jurídico. Isso porque o certo ou o errado, o moral ou imoral, o humano ou desumano, enfim, o justo ou o injusto, em se tratando de atividade jurisdicional em um Estado Democrático de Direito, são aferíveis a partir do que suas Leis estabelecem", acrescentando eu, particularmente, que não se deve abandonar, em nenhum circunstância, os princípios fundamentais expressos na Constituição Federal, com especial destaque, na hipótese, à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III). [...]
Nesse momento, parece-me difícil discordar de quem defende que a razão pela qual o Código Penal não autorizou o aborto nos casos de anencefalia fetal incompatível com a vida extra-uterina decorre apenas do fato de que, à época de sua elaboração e edição (1940), a ciência médica ainda não dispunha de instrumentos capazes de, antecipadamente, durante a gestação, oferecer diagnósticos seguros sobre a existência de anomalias fetais severas, que inviabilizam a vida após o parto, como no caso em exame.
[...] No caso, estamos diante de uma deformação irreversível do feto que, de acordo com a ciência médica, devidamente documentada nestes autos, é incompatível com a vida extra-uterina, o que, indiscutivelmente, é motivo de trauma profundo, dor, desespero, frustração inimaginável, aptos a desestabilizar psicologicamente uma gestante, que nem mesmo o mais sensível dos serem humanos tem condições de dimensionar.
[...] Portanto, diante de uma gestação de feto portador de anomalia incompatível com a vida extra-uterina, como no caso dos autos, a indução antecipada do parte não atinge o bem juridicamente tutelado, uma vez que a morte desse feto é inevitável, em decorrência da própria patologia. O Ministro Joaquim Barbosa, do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no julgamento do Habeas Corpus n. 84.025-6/RJ, na mesma linha manifestou-se:
Limitando-me ao problema concreto, ou seja, de feto que, por ser portador de anencefalia, não irá sobreviver muito tempo após o parto, devemos nos ater a qual é o objeto jurídico tutelado pelos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal.
Creio que seja, de um lado, a preservação de uma vida potencial e, por outro, a incolumidade da gestação.
[...] Por essa razão, o feto anencefálico, mesmo estando biologicamente vivo (porque feito de células e tecidos vivos), não tem proteção jurídica. [...]
O feto, desde sua concepção até o momento em que se constatou clinicamente a irreversibilidade da anencefalia, era merecedor da tutela penal. Mas, a partir do momento em que se comprovou sua inviabilidade, embora biológica-mente vivo, deixou de ser amparado pelo art. 124 do Código Penal.
Como dito, a situação dos autos deve ser solucionada no plano da atipicidade de conduta. Não me parece tratar-se de situação de inexigibilidade de conduta diversa, causa supralegal de ausência de culpabilidade, cuja pertinência é altamente discutível de conformidade com a moderna doutrina.
Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini glosam que nosso Código Penal não contempla a inexigibilidade de conduta diversa como causa geral de exclusão de culpabilidade, sendo certo que, nem mesmo a doutrina alemã, que inaugurou a moderna concepção de culpabilidade, não mais admite esse fundamento para absolver o acusado, ao menos nos crimes doloso.
Lembre-se que, no caso de inexigibilidade de conduta diversa, não se pode exigir do agente, no caso concreto, outro comportamento senão aquele praticado. A teoria criada por Frank, no sentido da normalidade das circunstâncias concomitantes, baseia-se no raciocínio de que a conduta, para ser considerada uma infração penal, haveria de ser perpetrada em condições e circunstâncias normais, pois que não haveria como se exigir conduta diversa daquela efetivamente praticada.
Bem por isso, a doutrina admite, em tese, a invocação dessa teoria em duas hipóteses, a saber:
1ª. Coação moral irresistível: coação física (vis absoluta) ou coação moral invencível (vis relativa).
2ª obediência hierárquica: obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, a tornar viciada a vontade do subordinado e a afastar a exigência de conduta diversa.
Como forma supralegal de exclusão da culpabilidade, é forte o entendimento de seu descabimento, conquanto haja vozes em seu favor, como, ad exemplum, do doutrinador Fernando Capez:
[...] em face do princípio nullum crimen sine culpa, não há como compelir o juiz a condenar em hipóteses nas quais, embora tenha o legislador esquecido de prever, verificase claramente a anormalidade de circunstâncias concomitantes, que levaram o agente a agir de forma diversa da que faria em uma situação normal. Por essa razão, não devem existir limites legais à adoção das causas dirimentes. Por conta dessa controvérsia, a tese de inexigibilidade de conduta diversa tem ainda sido admitida apenas nos julgamentos populares pelo tribunal do júri, com evidente discordância de membros do Ministério Público, em cuja arena, por garantia constitucional, a defesa é ampla.
De qualquer sorte, a partir da premissa de que a teoria da aplicabilidade teorética pode ser invocada no ordenamento jurídico pátrio, não vislumbro sua subsunção em caso de a gestante pretender a interrupção da gravidez de feto anencéfalo. Não se trata de situação na qual inexista escolha.
Há, sim, uma escolha (a interrupção) que, sem embargo, não ofende o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Cuida-se (repise-se) de conduta atípica penal.
Por corolário de todo o exposto, deve ser deferida a autorização para interrupção da gravidez da requerente, haja vista se tratar de fato atípico.
- I I I –
Em face do exposto, de acordo com o parecer ministerial, defiro o requerimento formulado por XXXXX, brasileira, casada, portadora do RG n. xxxxxxSSP/MS, inscrita no CPF sob o n. xxxxx, para o fim de autorizá-la a interromper a gravidez de feto anencéfalo.
Expeça-se o alvará.
Intimem-se. Dê-se conhecimento desta decisão ao médico subscritor do laudo acostado aos autos. Oportunamente, arquivem-se os presentes.
Campo Grande(MS), 16 de fevereiro de 2011
Juiz
Carlos Alberto Garcete1ª Vara do Tribunal do Júri
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