Migalhas Quentes

As heranças filosóficas e concretas de Miguel Reale

Dando continuidade à homenagem ao ilustre jurista Miguel Reale, Migalhas mostra alguns dos grandes feitos realizados pelo professor.

4/11/2010

Centenário – Miguel Reale

As heranças filosóficas e concretas de Miguel Reale

Dando continuidade à homenagem ao ilustre jurista Miguel Reale, Migalhas mostra alguns dos grandes feitos realizados pelo professor.

Hoje, a colunista Roberta Resende aborda a Teoria Tridimensional do Direito, o Instituto Brasileiro de Filosofia, a Revista Brasileira de Filosofia e sua importante participação na elaboração do Código Civil de 2002.

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Miguel Reale – Um nome na história do Brasil

A Teoria Tridimensional do Direito

Embora continuamente revista e aperfeiçoada, já na primeira edição de Fundamentos do Direito Miguel Reale permitia à comunidade jurídica antever a força daquela que seria mais tarde conhecida como Teoria Tridimensional do Direito.

Em um ambiente fortemente positivista, evolucionista e naturalista, o surgimento da obra Fundamentos do Direito, em 1940, causou grande ebulição. A grande reviravolta deveu-se, sobretudo, ao conceito de “fato” esposado por Miguel Reale, que não se coadunava com a visão kantiana – intermediada no Brasil pelo krausismo – dominante na Filosofia do Direito de então.

O Direito, para Miguel Reale, é experiência humana que se dá por razões concretas, “derivadas do logos concreto do razoável”. Assim, todos os seus trabalhos destacam ser o Direito artefato da cultura, e por conseguinte, um produto histórico.

É o próprio Miguel Reale quem explica que a Ciência do Direito, sobretudo a partir da Segunda Grande Guerra, caracterizou-se “por uma crescente luta contra o formalismo, o que implica repúdio às soluções puramente abstratas”, buscando-se, “cada vez mais correlacionar as soluções jurídicas com a situação concreta na qual vivem os indivíduos e os grupos.”

Nesse contexto, sua Teoria da Tridimensionalidade do Direito insere-se dentro do historicismo axiológico, mesma razão pela qual seus trabalhos iriam, sempre, refletir preocupação com o prestígio acrítico que o normativismo jurídico de Hans Kelsen encontrava em nosso meio jurídico. Sob esse enfoque é correto afirmar que sua Teoria é alerta permanente contra as interpretações unilaterais do Direito.

O cerne da Teoria Tridimensional do Direito é o entendimento do fenômeno jurídico como composto intrinsecamente por três elementos, fato, valor e norma, postos em relação dialética de complementaridade, e não como três visões ou enfoques possíveis ao Direito, de maneira estanque.

Valendo-nos mais uma vez das palavras de Miguel Reale, que são fecundas, “quando um complexo de valores existenciais incide sobre determinadas situações de fato, dando origem a modelos normativos, estes, apesar de sua forma imanente, não se desvinculam do ‘mundo da vida’ que condiciona sempre a experiência jurídica”.

Para Reale, a norma deixa de ser um modelo construído a priori, antes do caso concreto, para conter em si mesmo o ‘momento situacional’ (o fato) como seu componente integrante, o que gera conseqüências profundas no plano hermenêutico.

Posta sua teoria, Miguel Reale sobressai-se como um filósofo do Direito que não se contenta com a Teoria da Justiça, mas igualmente com seu fundamento, vigência e eficácia, preocupações antes abraçadas separadamente por filósofos, juristas e sociólogos.

A Teoria da Tridimensionalidade do Direito, tal como posta por Miguel Reale, obteve grande aceitação não só no Brasil como na Europa, onde foi recepcionada principalmente na Itália, levada pelo emérito professor da Universidade de Bolonha Luigi Bagolini.


O IBF – Instituto Brasileiro de Filosofia

Tomando como ponto de partida a Filosofia do Direito, Miguel Reale traçou trajetória luminosa no âmbito da Filosofia de modo mais amplo, tendo sido responsável por verdadeira revolução no enfoque desta disciplina no Brasil.

Associando suas perquirições jusfilosóficas ao espírito empreendedor que sempre o caracterizou, Miguel Reale dedicou-se a reunir pensadores brasileiros das mais diferentes correntes do pensamento em um mesmo instituto, destinado “à inserção do pensador brasileiro no diálogo universal das idéias”.

Assim é que aos 10 de outubro de 1949 vemos nascer aquela que ao lado da sistematização da Teoria Tridimensional do Direito talvez seja a maior das realizações de Miguel Reale, o Instituto Brasileiro de Filosofia.

A iniciativa visava, sobretudo, desenvolver uma filosofia brasileira, que não fosse mera reprodução das escolas em voga na Europa, cujos trabalhos também não fossem “meros comentários de teorias alienígenas”. Como primeiro passo, contudo, deveria empreender levantamento e publicação dos textos fundamentais dos filósofos e pensadores nacionais e sua revisão crítica. Nesse tópico, porém, não bastaria a fácil constatação das influências recebidas, mas sim “indagar das razões determinantes da preferência dada a esta ou àquela doutrina”, bem como destacar “o papel desempenhado por dada corrente” ao ser abraçada pelos expoentes de nossa cultura.

Adiante, no correr dos anos de existência do IBF, quando já participava ativamente de congressos interamericanos, Miguel Reale iria constatar que havia um “modo latino-americano de filosofia”, o que demonstrava que as peculiaridades culturais de um povo moldavam sua recepção às doutrinas estrangeiras. Posto isso, o IBF passou a ambicionar, mais do que uma Filosofia no Brasil, uma Filosofia brasileira, cônscia não só das influências que sofreu, mas sobretudo da maneira e das razões pelas quais teria acolhido e sofrido essas influências. O IBF nutria, portanto, missão elevada, que exigiria dos filósofos nacionais uma visão, inclusive, dos problemas sociais brasileiros.

Como parte do seu método de trabalho, o IBF adotou a promoção de congressos filosóficos nos diversos estados da Federação. Em 1950 instalou-se o primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia, para o qual foram inscritas 42 teses, 23 das quais acerca da cultura brasileira!

No período que vai de 1952 a 1962, Miguel Reale manteve-se atipicamente afastado da política partidária, ocasião em que se dedicou à consolidação do IBF; nessa época, fundou e foi o primeiro presidente da Sociedade Interamericana de Filosofia, instituição responsável por organizar, em 1954, por ocasião do IV Centenário de São Paulo, um Congresso Internacional de Filosofia. Em 1958 Miguel Reale recebeu o título de sócio honorário da Sociedade Italiana de Filosofia do Direito; em 1959, com a finalidade de comemoração dos 10 anos de existência do IBF, foi realizado em São Paulo o III Congresso Nacional de Filosofia, tendo como mote o centenário do nascimento de Clóvis Bevilacqua e Pedro Lessa, e o cinqüentenário da morte de Euclides da Cunha.

Durante quase 20 anos o IBF promoveu cursos e conferências gratuitas, em convênio com entidades particulares e com a municipalidade de São Paulo, organizou congressos em diversos estados do país e participou de congressos internacionais de filosofia ao redor do mundo.

Esse foi, aliás, um dos efeitos do êxito do IBF, que com sua intensa participação em congressos internacionais, bem como a promoção de outros, fez com que grandes pensadores estrangeiros viessem ao Brasil, passassem a ouvir e a responder a pensadores nacionais. Estabeleceu-se, assim, conforme meta inicial, a participação brasileira no “diálogo universal das idéias”, um dos grandes legados culturais de Miguel Reale ao país.

A Revista Brasileira de Filosofia

No ano seguinte à fundação do IBF, surgia a Revista Brasileira de Filosofia, propondo-se a publicação de fascículos trimestrais. Miguel Reale conta-nos, em suas Memórias, que seu surgimento enfrentou grande descrença e até mesmo sarcasmo, mais ainda do que o próprio Instituto.

No entanto, a despeito do descrédito inicial que despertou no meio cultural brasileiro, a Revista também alcançou êxito e vem mantendo sua regularidade por mais de 50 anos.

O Código Civil de 2002

Miguel Reale foi o coordenador da reforma do Código Civil brasileiro, sob o cargo de “Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil” que, instalada em 1969, apresentou em 1975 o anteprojeto que depois de muito discutido pela sociedade viria a ser sancionado pelo Presidente da República pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

A partir de 1998, proferiu conferências sobre o Projeto de Código Civil no Senado Federal, no Superior Tribunal de Justiça, na Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro e na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo. Uma vez sancionada a Lei, as conferências se estenderam por dezenas de cidades do País.

Na exposição de motivos do Código Civil, Miguel Reale explica a toda a sociedade que era necessidade imperiosa atualizar o Código então vigente não só para superar os “pressupostos individualistas que condicionaram a sua elaboração, mas também para dotá-lo de institutos novos, reclamados pela sociedade atual”. Expõe, ainda, que as demandas por uma nova Lei Civil advieram “das profundas alterações havidas no plano dos fatos e das idéias, tanto em razão do progresso tecnológico como em virtude da nova dimensão adquirida pelos valores da solidariedade social”.

Miguel Reale tinha consciência de que a tarefa seria árdua, considerado tanto o monumental trabalho levado a cabo por Clóvis Bevilaqua como o modelo de vernaculidade esculpido por Rui Barbosa, mas ainda assim estava convicto de que a reforma se impunha.

O trabalho foi longo, mas no início do Século XXI a sociedade brasileira viu surgir o novo Código Civil, apresentado em estrutura normativa “destituída de qualquer apego a meros valores formais e abstratos”, dotado de conceitos-chave integradores, como os de boa-fé, equidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência de prestações. Sobre esses princípios, o próprio Reale explicaria: “Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios etico-jurídicos que permita chegar-se à ‘concreção jurídica’, conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa”.

Assim, ainda nas palavras de Miguel Reale, no novo Código Civil brasileiro os fins sociais “se casam com o que há de intocável na liberdade da iniciativa individual”, oferecendo modelos jurídicos abertos, pressupondo maior participação dos juízes na aplicação da lei ao caso concreto.

Sobre a linguagem empregada, Miguel Reale registra que a comissão pautou-se pela preocupação com a clareza e a precisão, que não poderiam de forma alguma restar comprometidas, na medida em que os comandos traduzidos em linguagem forneceriam “modelos e diretivas de ação”, implicando sanções punitivas ou premiais ao cidadão.

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