"Na toca dos leões"
Justiça condena Fernando Morais a pagar indenização ao deputado Federal Ronaldo Caiado por danos morais
Recente sentença do juiz Ricardo Teixeira Lemos, da 7ª vara Cível de Goiânia, coloca na pauta interessante questão acerca da responsabilidade dos biógrafos (ao narrar declarações colhidas) e das editoras (ao publicar biografias).
O biógrafo, no seu nobre mister de contar histórias apuradas, deve ser responsabilizado por eventual ofensa de fato que teve conhecimento ?
Segundo decisão da Justiça goiânia, sim.
O caso trata do livro de autoria de Fernando Morais : "Na toca dos leões – A história da W/Brasil, uma das agências de propaganda mais premiadas do mundo".
A obra, por enquanto, tem custado caro à Editora Planeta, ao publicitário Gabriel Zellmeister e ao autor, pois todos eles foram condenados a pagar polpudas indenizações por danos morais em ação movida pelo deputado Federal Ronaldo Caiado.
Ocorre que no livro o jornalista relata uma conversa ocorrida, em 1989, entre o então candidato à presidência da República Ronaldo Caiado (quem não se lembra da napoleônica imagem dele em seu inseparável cavalo branco ?) e o publicitário Gabriel Zellmeister.
Fernando Morais aparentemente apenas descreve o que lhe foi narrado pelo angelical publicitário :
" - O cara [Ronaldo Caiado] era muito louco. Contou que era médico e tinha a solução para o maior problema do país, 'a superpopulação dos estratos sociais inferiores, os nordestinos'. Segundo seu plano, esse problema desapareceria com a adição à água potável de um remédio que esterilizava as mulheres."
Melhor dizendo, nas palavras do juiz Ricardo Teixeira Lemos, da 7ª vara Cível de Goiânia :
"Versa a lide sobre pedido de indenização por danos morais e materiais pelo fato de que na página 301 do capítulo 12 do livro (...), o requerido Fernando Gomes de Morais afirmou que o autor disse, em reunião realizada com o demandado Gabriel Douglas Zellmeister no período da campanha eleitoral de 1989, ocorrida na sede da Agência W/Brasil, que teria a solução para o problema da superpopulação brasileira, que seriam os nordestinos ou 'estratos sociais inferiores', consistente em adicionar remédio de esterilização na água potável servida às nordestinas".
O fato é que, segundo consta nos autos, Fernando Morais teria sido informado sobre o teor dessa conversa por Gabriel Zellmeister o qual, no decorrer do processo judicial, se contradisse em relação a ter mencionado a informação ao jornalista.
O publicitário Washington Olivetto, que na ocasião participou "parcialmente" da reunião, afirmou em seu depoimento não se lembrar de tal citação por parte de Caiado, mas se de fato ela ocorreu "deve ter sido feita em tom de piada politicamente incorreta".
Segundo o magistrado, os réus não conseguiram provar que Caiado disse efetivamente a frase em questão, decidindo, assim, em favor do deputado por considerar os danos morais que sofreu (i) perante sua família, visto que é casado com uma nordestina; (ii) na sua profissão, já que é médico assistencialista; e, por último, (iii) como político, por ter seu mandato ameaçado de cassação.
O juiz fixou a indenização por danos morais em um R$ 1 milhão para a Editora Planeta e para Gabriel Zellmeister, e em R$ 500 mil para Fernando Morais.
Curiosamente, justificando a diferença, o magistrado diz que - "embora ostente casas de praia, onde escreve seus livros" - Fernando Morais, "por sua posição de escritor, detém condição econômica inferior aquela dos demais réus".
Os réus foram autorizados, porém, a reimprimir, distribuir e comercializar a obra, desde que o conteúdo ofensivo ao deputado Federal Ronaldo Caiado fosse retirado.
Mas o fato é que a decisão (clique aqui), conquanto tenha 104 laudas, não se aprofunda neste constitucional aspecto da responsabilidade do biógrafo e da editora.
A propósito da profusão sentencial, impossível não notar que das 104 páginas, 10 são dedicadas ao festejado currículo do deputado Caiado. (clique aqui)
Quanto à conduta do jornalista, o magistrado limita-se a dizer que ele "agiu com culpa nas modalidades imprudência e negligência".
E, como nexo causal, afirma que "ao repetir, através da sua redação e vocabulário pessoal, o fato dito por sua 'fonte de informação' ou entrevistado, confiando inteiramente na veracidade dos fatos alegados por ela sem certificar-se de pedir provas do fato ou circunstâncias que pudessem auxiliar uma investigação mais precisa do fato, foi imprudente".
Em relação à editora, o magistrado diz que ela "também agiu com culpa nas modalidades imprudência e negligência, na modalidade culpa consciente".
Para ele, a editora "foi imprudente ao confiar inteiramente na afirmação do requerido Gabriel Douglas Zillmeisteir, sem provas, e na repetição da declaração conforme as modificações realizadas pelo demandado Fernando Gomes de Morais, publicando a obra escrita pelo mesmo".
O labor editorial
Acerca da responsabilidade da editora, interessante texto de Eça de Queirós, datado de fevereiro de 1869, no jornal "Districto de Évora", que discute a responsabilidade que cabia ao tipógrafo e ao impressor pelos textos divulgados. Na ocasião, o jornalista Eça enfrentou o tema dando sua abalizada opinião, observando que não havia nexo de causalidade entre o conteúdo publicado e o ofício do tipógrafo :
"é incontestável que toda a gravidade dum artigo vem da sua publicação; só assim é lido, comentado, discutido, só assim pode fazer mal aos governos constituídos, ou ser subversivo da ordem."
"No entanto, o tipógrafo, na sua qualidade de operário, não pode tomar responsabilidade por um trabalho ordenado."
O labor biográfico
Muito do que se sabe hoje sobre a civilização grega deve-se a Plutarco (50-120 d.C.), famoso biógrafo da Antiguidade Clássica. Na obra "Vidas Paralelas", ele traçou o perfil de personagens históricos e controversos como Júlio César, Cícero e Alexandre, o Grande. Em sua sabedoria, afirmava que o ser humano não pode deixar de cometer erros, pois é com os erros que os homens de bom senso aprendem a sabedoria para o futuro.
Do mesmo modo que Plutarco, o jornalista Fernando Morais sempre escolheu biografar personalidades polêmicas como Assis Chateaubriand ("Chatô, o Rei do Brasil") e escrever sobre temas acalorados como a misteriosa e invisível organização japonesa Shindo Renmei ("Corações Sujos").
Experiente no labor biográfico, ao esmiuçar a trajetória da W/Brasil o escritor ao que parece fiou-se nas informações que lhe foram fornecidas.
Por conta disso, deve ser condenado ? Será que o velho Plutarco também seria condenado ?
Com efeito, este caso suscita questões como a liberdade de expressão, censura em tempos democráticos e respeito à dignidade.
O que deveria ter feito o biógrafo ? Com mãos de tesoura, promover a autocensura, retalhando comentários polêmicos divulgados por fontes confiáveis, simplesmente porque podem maldizer ou escanecer alguém ?
Fernando Morais, indubitavelmente um dos maiores biógrafos do país, vê-se no epicentro dessa polêmica jurídica e, por que não dizer, da historiografia.
Ele deixa, assim, de narrar a história, para dela fazer parte. Esperamos que tenha um final feliz, para todos. Que venha, então, o recurso.
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