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Um ano sem cinema americano, o desafio

A recente resolução 16, da Câmara de Comércio Exterior, que instaurou o procedimento de consulta pública sobre as medidas de suspensão de concessões ou obrigações do país relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros, em relação aos Estados Unidos, resultou em uma divertida crônica publicada no último final de semana no Valor Econômico. No texto, dois cinéfilos conversam, aflitos, sobre a hipótese de os filmes feitos nos EUA sofrerem retaliação do Brasil.

31/3/2010


Mais estranho que a ficção

A recente resolução 16 (clique aqui), da Câmara de Comércio Exterior, que instaurou o procedimento de consulta pública sobre as medidas de suspensão de concessões ou obrigações do país relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros, em relação aos Estados Unidos, resultou em uma divertida crônica publicada no último final de semana no Valor Econômico. No texto, dois cinéfilos conversam, aflitos, sobre a hipótese de os filmes feitos nos EUA sofrerem retaliação do Brasil.

Em seguida, o advogado Marcos Bitelli, de Bitelli Advogados, opina sobre o caso. Para o causídico, a história da retaliação de forma cruzada devido às disputas na OMC deixa muitas dúvidas.

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Um ano sem cinema americano

É um desafio à compreensão o início da leitura da Resolução nº 16 (paralelo 16?), assinada por Miguel Jorge em 12 de Março de 2010 como presidente do Conselho de Ministros da Câmera de Comércio Exterior. O texto que submete à consulta pública uma variada gama de retaliações contra os subsídios do governo norte-americano aos seus produtores de algodão, começa assim: “... no uso de suas atribuições, ouvidos os demais Membros, com fundamento nos arts. 2º, I, § 1º, I, “a”, § 2º, e 4º, I, § 7º do Decreto nº 4.732, de 10 de junho de 2003, e o art. 9º da Medida Provisória nº 482, de 10 de fevereiro de 2010, resolve...”

É unânime no Brasil que se deva exercer o direito de retaliação contra os EUA, assegurado pela OMC – Organização Mundial do Comércio. Se não houver acordo entre os países, podemos sobretaxar os seus bens intelectuais e produtos em até US 295 milhões. E entre os bens intelectuais, a lista ameaça tornar quase impossível vermos filmes americanos por um ano. Imaginem um ano sem filmes americanos nos cinemas, na televisão, no nosso imaginário.

Digamos que não haja acordo e o Brasil parta para a sua legítima retaliação. A data limite seria 1º de abril? Vamos avançar um pouco mais no tempo, uns três meses, e imaginar um panorama da perspectiva de dois cinéfilos desconsolados. O interlocutor é Rubens Ewald Filho, conhecido por suas coberturas do prêmio Oscar e um grande benfeitor do cinema brasileiro ao criar a coleção Aplauso, na Imprensa Oficial, com Hubert Alquéres, e do Pólo Cinematográfico de Paulínia. Os dois cinéfilos se encontram por acaso na Rua Augusta.

Rubens está irreconhecível, desalinhado, esquivo, com uma sacola na mão que tenta esconder em vão.

L - Rubens, você está com um aspecto horrível, o que acontece?

R - O que você acha, Leon, nem gosto de lembrar... Desde que veio essa proibição minha vida está um inferno. Como se tivessem derrubado as nossas Torres Gêmeas...

L - Vamos pensar que é só por um ano. Falei com um advogado que entende dessas coisas de direito autoral e ele diz que isso tudo é um imbróglio jurídico sem pé nem cabeça...

R - Tô achando que não vai ter conserto. A briga tá cada vez mais feia. Veio tudo em cascata. Impossível ver os filmes americanos nos cinemas, em DVD, na tevê, no cabo, na internet, tá uma loucura.

L - Na volta de Cannes tentei passar pela alfândega com uns DVDs dos últimos lançamentos americanos na França, fui barrado, multado em uma fortuna e me tomaram todos os discos. A única coisa que não me tomaram depois de uma longa revista até nos pressbooks do festival, foi o que guardei na memória. Se quiser te conto em detalhes o novo Tim Burton “Alice no País das Maravilhas” (estreia anunciada para 21 de abril).

R – Não precisa, já vi... O que você acha que estou fazendo aqui na Augusta... Não tá vendo o mercado persa que virou isso aqui? Se antes faziam vista grossa pra pirataria, agora degringolou de vez.

L – Lembra do tempo da ditadura quando as pessoas voltavam da França contando vantagem porque já tinham assistido ao “Último Tango em Paris”?

R – E lembra que a gente ficava chocado com a pirataria na China, em Cuba, no Irã, onde as pessoas assistiam a todos os lançamentos mundiais graças à rede de distribuição dos piratas? Descemos a esse nível e eu, que sempre fui contra, olha só (erguendo o saco plástico na mão). E tá uma exploração. Antes a gente desprezava uma cópia pirata por cinco, agora está por cinquenta, cem, duzentos cada.

L – E tá uma quebradeira de cinemas pelo interior, tão falando. O público, fora das capitais não foi acostumado a ver filmes europeus, asiáticos... Mesmo aqui as locadoras também não tinham investido da diversidade...

R – E todos os brasileiros que não saem mais de cartaz? O “Chico Xavier” bateu fácil o recorde de 10 milhões de espectadores. Ninguém tinha conseguido superar o sucesso de “Dona Flor e seus dois maridos” desde 1976, imagina?. Agora tem retrospectivas Daniel Filho em tudo quanto é cinema... O pior é retrospectivas da Xuxa. Não sei como ela tá anunciando a partir de julho um filme novo a cada mês...

L – E nem o “Avatar” sai mais de cartaz. As distribuidoras estão voltando com todos os filmes americanos que já tinham autorização de lançamento antes de começar a briga.

R – O que não aguento é festival de cinema iraniano oficial. Com o Panahi preso, o Kiarostami na Itália e o Gohbadi nos Estados Unidos, não dá pra ver os filmes a favor do regime dos aiatolás.

L – O pior é que o próximo filme de Bahman Gohbadi, no exílio, é capaz de ser considerado filme americano...

R – Viu a confusão que foi lançar o “Tetro” (de Francis Ford Coppola, previsto para 7 de maio)? Coitado do Coppola foi buscar recursos na Espanha, Itália e filmou na Argentina. E o distribuidor pra explicar que o filme não era americano?

L – E a burocracia pra fazer a Mostra, então. Tem que assinar um monte de documentos assegurando que não há autores, técnicos ou interesses americanos até pra trazer filme do Uzbequistão. O pior é que a gente nunca sabe como tudo isso vai acabar.

R – Por falar em acabar viu só no que deu a Lei Rouanet? Depois que autorizaram financiar campanha política com renúncia fiscal, não tem mais patrocinador querendo aplicar o seu imposto no cinema nacional.

L – Rubens, mostra aí o que você comprou...

R – Assim, na rua, não... Vamos tomar um café que eu te mostro. Mas leva o saco pro banheiro como se fosse seu, tá?

L – (De volta do banheiro, no ouvido do Rubens, no balcão do café) Caramba, como você conseguiu? Tem “Homem de Ferro 2” (de Jon Favreau, previsto para 30 de abril), “O escritor fantasma” (de Roman Polanski, previsto para 7 de maio), “Robin Hood”, de Ridley Scott, previsto para 14 de maio) e até “Fúria de titãs” (de Louis Leterrier, previsto para 21 de maio) e “Sex and the City 2” (de Michael Patrick Kin, previsto para 28 de maio).

R – O pior é que já tem ‘pré-venda’ nos piratas do “Tropa de Elite 2” (de José Padilha, anunciado para 13 de agosto), você acredita numa coisa desta?

L – Eu lembro que na minha infância o cinema americano era tão distante da nossa realidade que a gente colecionava álbuns de figurinhas e seguia os filmes por revistas de cinema.

R – É, mas nem isso mais vai poder. Ficou parecendo a China. Google e You Tube estão bloqueados para imagens de filmes americanos.

L – Isso tudo me lembra o Irã. No ano em que estive lá, o festival de Fajr estava exibindo “Malcolm X”, do Spike Lee, mas só a segunda metade do filme, depois que o personagem se converte ao islamismo. A primeira parte, com o líder devasso, mulherengo, estava oficialmente proibido. “Ridículo”, as pessoas me diziam em boca pequena. “Já vimos faz três anos em DVD clandestino...”'

Leon Cakoff é diretor Mostra Internacional de Cinema

Rubens Ewald Filho autorizou que seu nome fosse utilizado nesta crônica

Parecer jurídico tenta entender roteiro da retaliação

Para o advogado Marcos Bitelli, especialista em direitos autorais, essa história da retaliação do Brasil aos Estados Unidos, de forma cruzada devido às disputas na OMC, deixa muitas dúvidas. “Se é fato que o Brasil está exercendo direitos de retaliação legítimos” ele diz, “este cruzamento de algodão com cinema é algo novo e complexo. Usar direitos intelectuais para o fogo cruzado pode funcionar para alguns setores e para outros não. Ao quebrar patente de um remédio até dá para se produzir um genérico, mas quebrar os direitos de uma obra audiovisual é bem diferente.”

O filme de cinema, o programa de televisão, são obras únicas, produzidas e finalizadas. Não tem como fazer um genérico. Ou você tem o filme ou o programa ou não tem. Uma das sanções colocadas pelo Brasil seria a ‘licença compulsória’, sem remuneração e sem autorização do titular do filme para comunicação ao público, ou seja, para passar no cinema, na televisão ou televisão por assinatura. Dizem que isso ia ser bom para o consumidor.”

Mas como isso seria possível na prática? “As obras audiovisuais precisam ser obtidas através de matrizes analógicas ou digitais ou captação dos sinais de satélite. Se o produtor que está lá fora não entregar, não tem cópia ou retransmissão. Ainda que desse certo, como repassar esse benefício ao consumidor? Dar desconto no ingresso, fazendo a meia da meia entrada?

Bom, isso pode aumentar o público do filme americano que ficaria mais barato que o nacional, se essa for a idéia”, conclui Bitelli. “Ou reduzir o valor da assinatura de televisão? Reduzir o valor da propaganda comercial nas TVs?”, pergunta. “Há uma outra sanção que diz que o Brasil poderá elevar o preço do registro oficial das obras audiovisuais que seriam feitos para fins de sua validade”, lembra. E lembra: “Ocorre que o sistema legal brasileiro de direitos autorais não exige este tipo de registro. Aliás, nem existe o órgão para registrar. Então se vai aumentar o preço do que? Ainda tem uma ameaça de ‘sanções comerciais’ sobre a remuneração que faz jus o produtor norte- americano. Acontece que tais remunerações são tributadas por imposto de renda, que parece que somente pode ser alterado de um ano para o outro. Fosse possível um outro adicional, precisaria se entender qual seria a natureza jurídica disso, uma contribuição, uma taxa ou o que?”, questiona o advogado.

E alerta: “O Brasil menciona poder exigir que o exercício dos direitos seja condicionado a um registro para a obtenção e manutenção dos direitos, o que contraria a Convenção de Berna do qual o Brasil é signatário e, na prática, não temos um órgão para fazer esse registro para fins autorais. A Ancine tem um outro tipo de registro de títulos estrangeiros, regido pela sua lei de criação e não tem efeitos para fins de reconhecimento de direitos autorais”.

Enfim, uma grande confusão que tem um significado político importante, mas nenhum resultado prático em favor dos brasileiros”, conclui. “Todas estas dificuldades práticas podem na verdade dirigir o público em geral a pensar que as obras americanas estariam num ‘limbo’ jurídico que favorece a atuação de pirataria. E pirataria não é bom nem para gregos nem para troianos. Enfim, esta briga não vai fazer surgir um ‘Avatar genérico’ ou um ‘software livre’ nas telas dos cinemas, das TVs ou nos DVD’s. E, nos camelôs do Brasil estas sanções já estão rolando faz tempo....”

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