Prefácio
Obra de Jayme Vita Roso é prefaciada por Manuel Alceu Affonso Ferreira
O querido migalheiro Manuel Alceu Affonso Ferreira foi quem prefaciou a obra.
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Confira o texto abaixo :
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PREFÁCIO
Quando recebi, de Jayme Vita Roso, o tocante convite para prefaciar a coletânea, por ele coordenada e centrada na “Auditoria Jurídica”, a honra da lembrança não conseguiu sepultar a sensação aterrorizante do desafio que eu assim assumia. Por que a mim, um bisonho jejuno e colossal apedeuta no assunto, teria o renomado e experiente companheiro de profissão confiado tarefa de tamanho porte? Escrever o que, na introdução de obra quilometricamente distante não só do meu quotidiano advocatício, como também, o que é pior, dos meus horizontes intelectuais?
Enquanto matutava, nas costumeiras madrugadas insones, sobre os cabalísticos motivos da designação, veio-me a resposta, simples como realmente descomplicadas deveriam ser todas as réplicas às mais variadas dúvidas. Na verdade, ao convocar-me para o prefácio o dr. Jayme apenas atendia a um imperativo de amizade, forçando-me a conhecer a essência do conceito de “auditoria jurídica”, como diz ele, “...talvez a única e valiosa ferramenta para colocar a nu o que se esconde, os usos do poder e promover o seu controle, bem como dos processos pelos quais a transparência é, ou não, conquistada.” Ou então, mais brevemente, “... meio salutar para ensaiar a prática da ética nos negócios públicos e privados de forma consistente.”
Noutras palavras, aquilo que, ao apontar as virtudes da especialização jurídico-científica por ele desenvolvida com maestria e profundidade, Vita Roso corajosamente denuncia provir da “...aferição de práticas ilícitas que alguns advogados, nos cinco continentes, na onda do neoliberalismo, armaram, através de construções jurídicas de negócios, modelagens e atividades ilícitas quanto cínicas.” E, com a incontinência guerreira que apenas os justos e os destemidos ostentam, o autor não se limita aos altiplanos genéricos e abstratos. Dá exemplos: “Não é preciso dar relevo a que os executivos que deram os golpes da Parlamat, da Enrom, subprimes e outras tantas mazelas se valeram do concurso de advogados desonestos para a consecução de seus fins celerados, da mesma forma que a construção do Fórum Trabalhista de São Paulo não comportaria a autorização de pagamentos sem a obra acompanhar o cronograma, se não houvesse `pareceres técnicos' vistoriando cada performance.”
Insisto: para o advogado, atender aos primados morais não corresponde a generosidade alguma. Se a reverência à Ética não se originar da consciência, da formação familiar ou da ambientação educacional, então que, ao menos, seja acatada como inafastável obrigação. Não será de espertezas ou ladinices, velhacarias ou ligeirezas, que se alimentará qualquer advocacia digna. O engenho, a argúcia, a inteligência, o conhecimento e a sensibilidade é que marcarão a atividade advocatícia decorosa. A quem honra a investidura, por exemplo, “economia tributária” não será entrevista como achavascado modo de surrupiar, ao Fisco, tudo quanto lhe seja licitamente devido. Nem por isso, contudo, o advogado correto mostrar-se-á pusilânime no aconselhamento ao cliente empresário, cabendo-lhe sugerir tudo quanto a sua ciência e o seu tirocínio sugerirem como expressa ou implicitamente tutelado pela Constituição e pela Lei, sem subterfúgios antagônicos ao Direito e sem manobras escapistas que a arte do bom e do justo reprovam.
Lembro-me do “Godfhater”, que não dispensava a presença, constante e diuturna, do seu advogado. E era graças às alicantinas, aos malabarismos convencionais e às invenções contratuais desse delinquente “conselheiro” que o chefe mafioso imunizava as suas atividades de corromper autoridades, chantagear a outras, explorar os jogos de azar, dominar negócios e fomentar a prostituição.
Ora, na advocacia implementada em prol das empresas, escreveu um emérito historiador da missão advocatícia, “... o profissional dá a medida inteira de suas qualidades latentes, do equilíbrio, da lucidez, imaginação, senso político e lastro cultural que devem informar o conselho e a orientação do cliente.” 1
Aos advogados, lembrava o clássico Adolfo Parry, confiou-se “... a nobre e elevada missão de mantê-la acima dos interesses argentários e defendê-la dos atentados daqueles que pretendem, com interpretações distorcidas, burlar o seu espírito à procura de soluções contrárias à equidade e à moral.”, para então resgatar, da “American Bar Association”, o cânone ético segundo o qual “...nenhum cliente,corporação ou indivíduo, por poderoso que seja, nenhuma causa, privada ou coletiva, por mais importante que possa ser, tem o direito de pretender (nem deve o advogado prestar-se a isso) qualquer serviço ou conselho que envolva deslealdade à lei...”. Resumindo, de todas as virtudes exigíveis ao advogado, “...a mais importante delas traduz, do ângulo moral, a alma da profissão: a probidade. O advogado deve ser profundamente honesto. Deve possuir o sentido inato da retidão, com isso objetivando respeitar a investidura que recebeu e o juramento prestado.” 2
Foi a isso que atentou o saudoso Herotides da Silva Lima, antes de ingressar no Judiciário Paulista, grifando que as regras deontológicas da Advocacia constituiam “...uma espécie de coação moral a encaminhar o advogado na trilha dos bons sentimentos. Com o tempo e a prática, criou o cumprimento desses preceitos para o advogado uma situação de bem estar e consideração sociais que, generosamente, compensam os sacrifícios que enchem a luta profissional.” A ética advocatícia, averbou Herotides, “...não é uma criação arbitrária de indivíduos ou corporações: é o resultado de formações lentas, produto das mais remotas práticas de povos antigos, que resistiram ao tempo e ao espaço pela própria força de seu valor.” Mas, foi além para afirmar, dura e secamente: “O advogado, quando não tiver meios de resistir às tentações indignas que o assediam, e combatê-las, deve renunciar ao ofício e procurar outro.” 3
Ensinança, por sinal, que Plinio Barreto, na “Cronica Forense” que, para gáudio dos assinantes do jornal, estampava em “O Estado de S. Paulo”, havia previamente adotado: “Se o amor à riqueza é, no advogado, maior que o amor à honra, troque de profissão. Procure outra em que, para chegar à riqueza, não seja estranhável que se abandone a honra.” 4
A verdade, todavia, é que todos esses enunciados advocatícios deontológicos nem sempre são obsequiados. Ou seja, malgrado o nosso Código de Ética e Disciplina seja expresso (art. 2°) em que, na implementação dos seus misteres, o advogado deva ser um defensor “da cidadania” e da “moralidade pública”, preservando, em suas ações, “a honra, a nobreza e a dignidade da profissão”, e atuando com “honestidade”, “decoro”, “veracidade”, “dignidade e boa fé”, sendo-lhe proibido “emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana”, no quotidiano da Advocacia infelizmente não são raras, e crescem em proporção geométrica, as agressões a tais cânones. A verificação e a denúncia a tais comportamentos que degradam a profissão é o papel maior que às auditorias jurídicas precisa ser cometido.
Diante dos escândalos que têm abalado a economia privada, com acionistas e investidores lesados pelos desvios, éticos e legais, empreeendidos por administradores desonestos, e à face de outras e contínuas decepções que abalam contribuintes e eleitores quando a má conduta é a dos agentes governamentais, ocorridas na administração direta e no crescente universo da paraestatalidade, fico a imaginar a utilidade que, coadjuvando as ações dos conselhos fiscais, dos tribunais de contas, dos órgãos de controle e do Ministério Público, a institucionalização e o desenvolvimento das auditorias jurídicas poderá eficientemente alcançar.
Em suma, porque longe ainda estamos, nas relações empresariais e nas atividades da Administração Pública, da observância de um grau mínimo daquilo que, dissertando a respeito das linhas mestras do Código Civil de 2002, Miguel Reale chamou de “princípio da eticidade”, imprescindível se faz valorizar inovações que lhe propiciem real concretude. E se, pelos mais variados e díspares motivos, a disciplina corporativa e o existente aparelhamento estatutário fiscalizador não vêm se mostrando aptos a impedir os dislates e as transgressões articulados por maus advogados, a auditoria jurídica surge como promissor instrumento de revisão e intendência.
Instrumento esse, frise-se, cuja valia poderá ser aferida em dois planos. Preventivamente, porque a só certeza da posterior auditoria funcionará como potente fator de desestímulo àqueles para os quais os parâmetros deontológicos representam velharia e anacronismo. Também repressivamente, porque fiscalização desse jaez revelará as transgressões incorridas e, via de efeito, exporá à punição, intra ou extraprofissionalmente, os ladinos que imaginaram tudo lhes ser permitido.
Jayme Vita Roso, na companhia de todos os demais ilustres autores que com ele colaboraram, soube captar, em esmerado trabalho monográfico, as angústias e as aflições éticas da Advocacia. O objetivo e o conteúdo da bela obra merecem os mais entusiasmados elogios, visto convergirem eles com a diuturna preocupação daqueles que se recusam a enxergar, na assessoria, no opinamento e no procuratório jurídicos, inesgotável fonte de botequineiros ganhos, ou rica cornucópia de vergonhosos patacões.
São Paulo, dezembro de 2009.
MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA
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1 Pedro Paulo Filho, "Advogados e Bacharéis – Os Doutores do Povo", Millenium, 2005, p. 180.
2 "Etica da Advocacia", Editorial Juridica Argentina, Buenos Aires, 1940, pp. 67, 72 e 145, trad. livre.
3 "O Ministério da Advocacia", Empresa Graphica e Editorial A Palavra, 1925, pp. 107 e 108.
4 "O Estado de S. Paulo", edição de 1º de fevereiro de 1925.
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