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Prof. Luís Roberto Barroso envia roteiro de Conferência proferida na França

26/2/2010


Conferência

Prof. Luís Roberto Barroso envia roteiro de Conferência proferida na França

De Poitiers, na França, onde se encontra como professor visitante até o final de fevereiro, o professor Luís Roberto Barroso envia a versão em português do roteiro de uma das três conferências proferidas naquela universidade: "Transformações da interpretação constitucional nos países de tradição romano-germânica". A partir de 1º de março próximo, entram em vigor na França as novas regras sobre controle de constitucionalidade, uma verdadeira revolução no sistema francês, onde até aqui só existia controle político e preventivo pelo Conselho Constitucional. A partir de agora, será possível, preenchido um conjunto de condições, o controle incidental e concreto, aproximando o sistema francês, em alguma medida, do modelo de outros países europeus.

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TRANSFORMAÇÕES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL NOS PAÍSES DE TRADIÇÃO ROMANO-GERMÂNICA

Poitiers, Fevereiro de 2010

I. INTRODUÇÃO

  • Nos últimos anos, é possível constatar uma visível aproximação entre os dois grandes sistemas jurídicos do mundo: o romano-germânico e o do common Law. Alguns traços visíveis desse fenômeno são:

1. A progressiva utilização do direito legislado nos países do common law.

2. A progressiva utilização dos precedentes nos países da tradição romano-germânica, onde a vinculação à jurisprudência vem sendo percebida como algo jurídica e socialmente relevante.

  • Pois bem: nesse ambiente, o modelo tradicional de interpretação seguido nos países de tradição romano-germânica – um modelo fundado em textos escritos, regras e pouca atividade criativa dos juízes – vem sendo progressivamente superado. É o que se procurará demonstrar na presente exposição.

II. A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO MODALIDADE DE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

1. A Constituição como norma

  • Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas no direito constitucional contemporâneo foi o reconhecimento de força normativa à Constituição, superando o modelo europeu tradicional em que a Constituição era vista como um documento essencialmente político, uma convocação aos poderes públicos.
  • Por ser a Constituição uma norma jurídica, aplicam-se à interpretação constitucional os elementos tradicionais da interpretação jurídica, sistematizados de longa data por Savigny e complementados por Geni. Estes elementos são o gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico.

2. Elementos tracionais de interpretação

a) Gramatical

  • O primeiro desses elementos é o gramatical. O texto da norma é o ponto de partida do intérprete, bem como demarca o espaço dentro do qual ele pode utilizar a sua criatividade. Para utilizar a imagem de Kelsen, é a moldura dentro da qual o intérprete poderá tomar as suas decisões.
  • Duas observações:

(i) a literalidade, por vezes, pode trair o sentido real da norma. Ex. Há um bom exemplo que se colhe na Chartreuse de Parme, de Stendhal. Clélia, havendo feito um voto a Nossa Senhora de que não mais veria seu amante Fabrício, passou a recebê-lo na mais absoluta escuridão, supondo que assim estaria cumprindo os votos.

(ii) no direito contemporâneo, mesmo nos países romano-germânicos, existem normas jurídicas que não decorrem de textos expressos. Ex. os princípios constitucionais da razoabilidade-proporcionalidade ou da solidariedade social; ou mesmo princípios gerais de direito, como por exemplo: ninguém pode invocar a própria torpeza; não há nulidade onde não houve dano; não deve haver enriquecimento sem causa.

b) Histórico

  • Os trabalhos legislativos, o contexto histórico em que elaborada a norma e mesmo a intenção do legislador têm alguma importância no processo interpretativo, embora este não seja um elemento especialmente prestigiado na tradição romano-germânica. Entre nós, vigora o entendimento de que uma vez posta em vigor, a lei se liberta da vontade subjetiva que a criou e passa a ter uma existência objetiva, autônoma, que permite que ela se adapte à realidade, dentro das possibilidades semânticas do seu texto. A interpretação histórica transforma-se, assim, em interpretação evolutiva.

Exemplo. É isso que faz com que a idéia de liberdade de imprensa ou de sigilo de correspondência se apliquem às comunicações via internet, embora os autores da Constituição não tenham sequer imaginado que o mundo se interligaria em uma rede mundial de computadores.

c) Sistemático

  • A ordem jurídica é um sistema. Sistema significa unidade e harmonia, isto é, um conjunto de partes, de elementos que se articulam de maneira harmoniosa. O Direito não tolera antinomias. Para resolver os conflitos normativos, o ordenamento jurídico prevê três grandes critérios:

(i) o hierárquico: norma superior prevalece sobre a inferior;

(ii) o cronológico: norma posterior prevalece sobre a anterior;

(iii) o da especialização: norma especial prevalece sobre norma geral (Uma lei específica sobre magistrados ou sobre militares prevalece sobre a legislação geral aplicável aos servidores públicos).

d) Teleológico

  • As normas jurídicas devem ser interpretadas para realizar adequadamente os seus fins. As formas são instrumentais. Exemplo: se uma licitação assegurou a isonomia dos participantes e a contratação da melhor proposta pela Administração, não deve ser anulada porque não foi observado algum aspecto secundário (faltou um carimbo, um registro ou qualquer outro elemento que se possa valorar, concretamente, como irrelevante para os fins da norma).

III. ASPECTOS PARTICULARES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

1. Peculiaridades das normas constitucionais

  • Em pouco tempo a doutrina e a jurisprudência se deram conta de que os elementos da interpretação jurídica tradicional não eram suficientes para dar conta da interpretação constitucional. Essa insuficiência decorria das peculiaridades das normas constitucionais, dentre as quais é possível destacar:

1. a superioridade hierárquica (nenhuma norma infraconstitucional pode existir validamente se for incompatível com uma norma constitucional);

2. a natureza aberta da linguagem (ordem pública, igualdade perante a lei, dignidade da pessoa humana, razoabilidade-proporcionalidade, moralidade);

3. o conteúdo específico (organização dos Poderes, definição de direitos fundamentais e normas programáticas, estabelecendo princípios ou indicando fins públicos);

4. o caráter político (a constituição é o documento que faz a interface entre a política e o direito, entre o poder constituinte e o poder constituído).

2. Princípios específicos de interpretação constitucional

  • Em razão disso, foram desenvolvidos alguns princípios específicos de interpretação constitucional, princípios instrumentais, que funcionam como premissas metodológicas, conceituais ou finalísticas da interpretação constitucional, a saber:

(i) Princípio da supremacia da Constituição: pelo qual qualquer nenhuma norma incompatível com a Constituição pode subsistir validamente no sistema jurídico. Para assegurar a supremacia, existem os diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade;

(ii) Princípio da presunção de constitucionalidade das leis: pelo qual o Judiciário deve ser deferente para com a interpretação constitucional feita pelos outros Poderes, somente devendo declarar uma lei ou ato administrativo inconstitucional quando não houver dúvida razoável nem for possível decidir a questão por outro fundamento;

(iii) Princípio da interpretação conforme a Constituição: pelo qual o Judiciário pode declarar que uma determinada interpretação da norma é inconstitucional, mas afirmando uma outra interpretação compatível com a Constituição. Na verdade, a interpretação conforme a Constituição é o principal instrumento de constitucionalização do Direito, uma das marcas do constitucionalismo contemporâneo. E isso se dá por três grandes mecanismos:

a) Adequação do sentido da norma infraconstitucional à Constituição, isto é, sua interpretação da maneira que melhor realize os valores e fins constitucionais. Cabe relembrar que a dogmática pós-positivista é assinalada pela centralidade dos direitos fundamentais e, portanto, toda interpretação deve procurar realizá-los na maior intensidade possível.

Ex. A legislação previdenciária deve ser interpretada no sentido de permitir que os companheiros, em uma relação homoafetiva, possam ser beneficiários da seguridade social e de outros direitos, tal como ocorre com a união estável entre homem e mulher.

  • A Constituição prega a igualdade e rejeita desequiparações que não tenham um fundamento razoável. A orientação sexual não deve ser utilizada como fator de discriminação.

b) Declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, o que significa a declaração de inconstitucionalidade de um sentido possível da norma, ou mais tecnicamente, de uma norma extraída de determinado enunciado normativo.

Ex. Uma lei estabelece que 5% das vagas de uma determinada carreira pública serão reservados a portadores de deficiência, a serem nomeados pelo Chefe do Executivo. Se se entender a norma como permitindo a livre nomeação pelo Presidente, ela será inconstitucional. Deve-se entender que a nomeação se dará com base em concurso público, sendo tais vagas preenchidas pelos deficientes melhor classificados.

c) Declaração da não-incidência da norma infraconstitucional a determinada situação de fato, sem declaração de inconstitucionalidade.

Ex. Caso do diretor teatral Gerald Thomas. Ao final da apresentação de uma de suas peças, na noite de estréia, a platéia vaiou estrepitosamente o espetáculo, que segundo quem tinha estado presente, era ruim mesmo. Inconformado com a reação do público, o diretor subiu ao palco, virou-se de costas e exibiu as nádegas para uma platéia atônita!

Instaurou-se contra ele ação penal por crime de ato obsceno. O STF, todavia, acolheu o hábeas corpus impetrado para trancar a ação penal, considerando que o fato era atípico. Aliás, bem atípico. O tribunal considerou que, naquele contexto, tratando-se de um espetáculo adulto, em cujo roteiro havia uma simulação de ato sexual, tal conduta fora o exercício de liberdade de expressão.

(iv) Princípio da unidade: que nega a existência de hierarquia entre normas da Constituição originária e impõe ao intérprete o dever de harmonização de normas constitucionais aparentemente colidentes;

(v) Princípio da razoabilidade-proporcionalidade: que permite ao Judiciário realizar um controle da racionalidade e da justiça dos atos do Legislativo e da Administração Pública. Trata-se de um mecanismo de controle da discricionariedade dos atos administrativos e da liberdade de conformação do legislador, para verificar se eles estão informados pela idéia de justiça, tanto na sua dimensão material como instrumental, que é a dosagem adequada, a justa medida;

6. Princípio da efetividade: que impõe ao Judiciário o dever de promover a maior realização possível dos comandos contidos nas normas constitucionais, superando omissões legislativas e não se escudando na saída fácil da alegação de não auto-aplicabilidade de determinadas normas constitucionais.

IV. ALGUMAS MUDANÇAS METODOLÓGICAS DA NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

  • Aos poucos, a interpretação jurídica nos países de tradição romano-germânica, e especialmente no Brasil, começou a se libertar de certos mitos do formalismo, da interpretação mecanicista e do positivismo. No modelo tradicional, as normas jurídicas eram compreendidas apenas como regras – isto é, continham a descrição objetiva das condutas a serem seguidas – e sua aplicação se dava mediante subsunção.
  • Por exemplo. 1. José descumpriu o contrato celebrado com João. José tem o dever de indenizar. 2. Joaquim completou a idade máxima para permanência no serviço público. Joaquim passa compulsoriamente para a inatividade.
  • A aplicação do Direito, nesses dois exemplos, é relativamente simples e se dá pelo mero enquadramento dos fatos na norma, com a pronúncia da conseqüência jurídica. Um raciocínio silogístico, no qual a lei é a premissa maior, o fato relevante a premissa menor e a sentença expressa a conclusão logicamente decorrente.
  • Para bem e para mal, a vida não é sempre simples assim. De modo que o método tradicional, embora seja apto a resolver uma boa quantidade de problemas jurídicos – a maioria deles, certamente – não é capaz de resolver múltiplas situações que surgem no âmbito da interpretação constitucional. Não se trata de uma questão de deficiência, mas de insuficiência. Daí a necessidade de desenvolvimento de novas metodologias e categorias operacionais.

1. No modelo tradicional, sempre se supôs:

a) Papel da norma: que o papel da norma jurídica era o de fornecer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos.

b) Papel do problema: que o problema jurídico, a questão a ser resolvida, apenas oferecia os elementos de fato sobre os quais incidiria a norma.

c) Papel do intérprete: que o papel do intérprete era o de descobrir e revelar a solução contida na norma.

  • O intérprete, o juiz, portanto, desempenhava tão-somente uma função técnica de conhecimento. Formulava juízos de fato e não de valor.

2. No novo modelo passou-se a reconhecer:

a) Papel da norma: que a norma, muitas vezes, não traz no seu relato abstrato a solução para os problemas jurídicos. Ela traz, em suas cláusulas gerais, apenas um início de solução, que precisará ser complementada argumentativamente pelo intérprete e aplicador da lei. Exemplo: saber se a previsão constitucional do direito à vida impede a interrupção da gestação em qualquer caso não envolve um raciocínio puramente silogístico.

b) Papel do problema: que o problema compõe, também, a própria norma jurídica, na medida em que só é possível construir uma solução topicamente, a partir dos elementos de fato colhidos na realidade. Exemplo: saber se em uma determinada situação deve prevalecer a liberdade de expressão ou o direito de privacidade exige a consideração dos elementos presentes no caso concreto.

c) Papel do intérprete: se a solução não está integralmente na norma, o intérprete passa a ter um papel criativo na formulação da solução para o problema. Ele se torna, assim, co-participante do papel de produção do direito, mediante integração, com suas próprias valorações e escolhas, das cláusulas abertas constantes do sistema jurídico.

V. ALGUMAS CATEGORIAS DA NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

  • Esses novos papéis reconhecidos à norma, ao problema e ao intérprete decorrem de fatores diversos dentre os quais se podem assinalar a maior complexidade da vida moderna, cuja marca é o pluralismo político e a multiplicidade de projetos existenciais e de visões de mundo que comprometem as sistematizações abrangentes e as soluções unívocas para os problemas.
  • Em razão dessas circunstâncias, a nova interpretação precisou desenvolver, reavivar ou aprofundar categorias específicas de trabalho, que incluem a atribuição de sentido a cláusulas gerais – como os conceitos jurídicos indeterminados e os princípios –, as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação. A seguir, um breve comentário sobre essas diferentes categorias.

1. As constituições, de uma maneira geral, empregam cláusulas gerais, como:

a) Conceitos jurídicos indeterminados: como ordem pública, interesse social, justa indenização, melhor interesse das crianças: embora essas categorias fossem tradicionais na técnica legislativa, desenvolveu-se a percepção de que elas transferiam parte do processo de criação do direito para o intérprete do caso concreto. Por exemplo: a verificação da efetiva ocorrência de “calamidade pública”, para fins de dispensa de licitação, envolve uma valoração relevante a ser feita pelo intérprete, com grau variável de subjetividade. Haverá sempre, por certo, certezas positivas e negativas. Se o Município tiver sofrido uma enchente e estiver com 80% de sua área inundada, sob a água, ninguém discutirá que há uma calamidade pública. Se o Flamengo perder a final do campeonato brasileiro, por triste que seja, não constituirá uma calamidade pública. Mas entre um extremo e outro, sempre haverá áreas de incerteza, onde a atuação do intérprete terá papel decisivo.

b) Ainda no campo das cláusulas gerais, deve-se destacar um fenômeno que nos últimos anos tem sido perceptível nos países de direito romano-germânico: o reconhecimento de normatividade aos princípios: tradicionalmente, os princípios eram uma fonte subsidiária do direito, à qual somente se deveria recorrer na hipótese de lacuna da lei, e mesmo assim se não fosse possível o emprego da analogia ou dos costumes. Nos últimos anos, no entanto, a interpretação jurídica adquiriu nova dimensão, pelo emprego de princípios como o da dignidade da pessoa humana, pela ampliação das potencialidades jurídicas da idéia de igualdade, sobretudo quando associada à razoabilidade, assim como outros princípios, como o da moralidade, da eficiência e da solidariedade social, em meio a outros. Os princípios consagram valores ou fins a serem realizados e sua aplicação dá ao intérprete discricionariedade muito maior do que a aplicação de regras.

Ex. A verificação, em um caso concreto, da observância do princípio da dignidade da pessoa humana ou da razoabilidade dão ao intérprete uma margem de razoável discricionaridade.

  • Outra categoria de elaboração teórica mais recente é a da:

2. Colisão de normas constitucionais: a Constituição é um documento dialético, que consagra muitas vezes valores e direitos contrapostos. No caso da Constituição brasileira e outras mais recentes, são exemplos: liberdade de iniciativa versus proteção do consumidor (ex. controle de preço de um medicamento); desenvolvimento econômico versus proteção ambiental (ex. construção de uma usina hidrelétrica na Amazônia); liberdade de reunião versus direito de ir e vir (uma passeata em uma avenida central no horário do rush); liberdade de expressão versus direito de privacidade (divulgação pela imprensa de fatos ou fotos da vida privada de uma pessoa).

  • Essas colisões não podiam ser solucionadas pelos critérios tradicionais de solução dos conflitos de regras: o hierárquico, o temporal e o da especialização.

Ex. Rua Inhangá.

Todos os domingos, às 7 horas da manhã, um pregador religioso ligava sua aparelhagem de som em uma pequena praça de Copacabana, um simpático bairro residencial do Rio de Janeiro. Em altos brados, anunciava os caminhos a serem percorridos para ingressar no reino dos céus, lendo passagens bíblicas e cantando hinos. Moradores das redondezas pensavam daquele cavalheiro coisas que lhes fechariam para todo o sempre as portas do reino dos céus e procuraram proibir tal manifestação. Ali configurava-se uma colisão entre a liberdade de religião (que inclui a busca de novos fiéis) e o direito de privacidade (que inclui o direito ao repouso domiciliar).

Ex. Glória Trevi

A cantora mexicana Glória Trevi teve sua extradição requerida pelo governo de seu país e foi presa na Polícia Federal em Brasília. Tendo engravidado na prisão, acusou de estupro os policiais em serviço. Às vésperas do nascimento, os policiais requereram que fosse feito exame de DNA na criança, visando a excluir a paternidade e, conseqüentemente, desmoralizar a acusação de estupro. Invocando jurisprudência do próprio STF, a cantora recusou-se a fornecer material para exame, em nome do direito à intimidade. Configurou-se, assim, um conflito entre o direito à honra e à ampla defesa, de um lado, e o direito à intimidade e à integridade física, de outro.

3. Ponderação

  • A ponderação é uma técnica de decisão utilizada para certos casos que não podem ser resolvidos por subsunção, em que a solução para o problema não se encontra pronta no ordenamento jurídico. São os chamados casos difíceis, que incluem:

a) aqueles que envolvem a colisão de normas constitucionais, de direitos fundamentais, como os já exemplificados acima;

b) aqueles em relação aos quais existe desacordo moral razoável.

Ex. pesquisas com células-tronco embrionárias, uniões homoafetivas, interrupção de gestação.

  • A ponderação é um procedimento que se desevolve em três estapas:

a) na primeira, procede-se à identificação das normas em conflito;

b) na segunda, procede-se à identificação dos fatos relevantes;

c) verificação da repercussão, sobre a realidade, das diferentes soluções possíveis, para verificação daquela que melhor se ajusta à vontade constitucional.

  • 3. Existem duas grandes possibilidades na ponderação:

a) a primeira, que é a ideal, se realiza mediante concessões recíprocas entre os direitos em questão. Por exemplo, no caso da Rua Inhangá, o acordo a que se chegou foi: o pregador religioso deve ter respeitado a sua liberdade de expressão religiosa, mas – em nome de Deus! – começará sua pregação às 10 horas da manhã.

b) a segunda envolverá a escolha da solução constitucionalmente mais adequada. Por exemplo, no caso Glória Trevi o STF determinou a realização do exame de DNA na placenta que envolvia o bebê. Entendeu que dessa forma, com mínimia interferência na integridade da mulher – já que a placenta é material orgânico descartável – assegurar-se-ia o direito de defesa e a defesa da honra. Mas, claramente, foi preterido o direito de privacidade.

  • Por fim, cabe uma menção à:

4. Argumentação jurídica: a partir do momento em que a decisão judicial passa a envolver uma atividade criadora do Direito, o fundamento de legitimidade de atuação do juiz já não pode estar confinado à teoria da separação de Poderes. O intérprete precisará demonstrar, a um auditório esclarecido e bem intencionado, que a solução que ele construiu é a que realiza de maneira mais adequada a vontade constitucional. Daí a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica no debate constitucional contemporâneo.

Ex. O caso Doca Street

Doca Street foi autor de um crime passional ocorrido no final da década de 70 na cidade de Búzios, no Estado do Rio, no Brasil. (Búzios é uma linda cidade de praia, que ficou famosa depois de uma célebre passagem por lá da Brigitte Bardot, na década de 60). O caso foi amplamente noticiado pela imprensa, pois a vítima era uma mulher da alta sociedade, com quem Doca Street tinha uma relação estável e que, aparentemente, o traía. Caso típico de crime passional. Levado a um primeiro julgamento naquela cidade do interior, distante cerca de três horas do Rio de Janeiro, ele foi absolvido em um primeiro julgamento, perante tribunal do júri. A chocante tese que prevaleceu foi a da “legítima defesa da honra”: ele a matou porque ela o traía. O primeiro julgamento foi anulado e, em um segundo julgamento, ele foi condenado a uma pena de 15 anos de prisão.

Já nos anos 2000, uma emissora de televisão resolveu fazer um programa narrando o episódio de forma romanceada. Antes que o programa tivesse sido exibido, Doca Street propôs uma ação para impedir a exibição do programa, alegando que: a) já havia cumprido a pena; b) já estava ressocializado, inclusive com uma nova família; c) a exibição do programa violaria seu direito de imagem, sua privacidade e sua honra. A emissora de televisão contestou a ação afirmando que a proibição violaria a liberdade de expressão da emissora, bem como o direito de informação do público. A hipótese de conflito de direitos fundamentais era evidente. De fato, são protegidos pela Constituição brasileira, de um lado, a privacidade, a imagem e a honra; e, de outro, a liberdade de expressão e o direito de informação.

  • Este é, tipicamente, um caso cuja solução não se encontra pré-pronta no ordenamento jurídico. Ela precisará ser construída argumentativamente pelo juiz. Vejam uma tentativa de construção argumentativa de uma solução, com uma decisão em favor da liberdade de expressão e do direito de informação:

1. Fato verdadeiro. O fato era verdadeiro. Só por exceção rara deverá o Judiciário impedir a divulgação de um fato verdadeiro.

2. Conhecimento por meio lícito. O conhecimento do fato foi obtido por meio lícito. As informações constam dos jornais da época e dos registros judiciais. Se a informação tivesse sido obtida por meio ilícito – uma interceptação telefônica ilegal, uma invasão de domicílio, a violação de um sigilo judicial –, seria diferente.

3. Crime não é fato da vida privada. Um crime é sempre um fato de interesse público, inclusive em razão do papel do Estado na sua punição. A própria divulgação da punição contribui para um dos papéis do direito penal, que é a prevenção geral.

4. O interesse público no exercício da liberdade de expressão se presume. A liberdade de expressão é uma liberdade preferencial, porque é um dos pré-requisitos para o exercício de outros direitos fundamentais. Portanto, presume-se o interesse público no seu exercício. Para que ela possa ser afastada, o titular do interesse que lhe é contraposto é que tem de demonstrar que o seu direito deve prevalecer sobre a liberdade de expressão, cabe a ele o ônus argumentativo. Como regra geral, será difícil satisfazer esse ônus, tendo em vista o papel da liberdade de expressão.

  • É possível que algumas pessoas, aqui mesmo na platéia, tenham uma visão totalmente diversa acerca de qual seja a solução constitucionalmente mais adequada, mais justa, mais correta. Esse é um dos problemas da interpretação jurídica em geral e constitucional em particular, no mundo contemporâneo: já não existem certezas plenas nem verdades absolutas. Vivemos o reinado da relatividade e da argumentação caso a caso.

VI. CONCLUSÃO

Os desenvolvimentos aqui expostos afetam, em ampla medida e inexoravelmente, a segurança jurídica, por reduzirem a objetividade e a previsibilidade na interpretação constitucional. Tal circunstância, todavia, não decorre de uma opção ideológica, filosófica ou metodológica. Trata-se de uma inevitabilidade dos tempos modernos, da complexidade dos problemas a resolver e do refinamento da dogmática jurídica. Boa parte da produção acadêmica contemporânea consiste em um esforço para limitar a discricionariedade judicial, criando parâmetros para a atuação do juiz e para a controlabilidade de suas decisões.

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