Nos últimos anos, não se nega, houve um completo desvirtuamento do processo legislativo brasileiro, levado a cabo por parlamentares que se aproveitam do procedimento de conversão de MPs para enxertar temas alheios, com o único objetivo de furtarem-se ao escrutínio do penoso processo legislativo ordinário. Aliás, valem-se das rendosas negociações governamentais para aprovar as MPs enfiando tudo o que querem nessa depravada, com o perdão do termo, depravada "prostituição legislativa". São os chamados "jabutis", que aparecem na árvore legal porque alguém ali sorrateiramente os colocou.
Emendas de contrabando
Ontem, o STF pôde, enfim, debruçar-se sobre o palpitante tema (contrabando legislativo) que há muito causa rubor nos constitucionalistas. Na pauta, uma ADIn contra dispositivo da lei 12.249/10, que alterou a regulamentação do exercício e fiscalização da profissão contábil. Resultado da conversão da MP 472/10, a lei foi impugnada pela Confederação Nacional das Profissões Liberais, que dizia terem os parlamentares enfiado disciplina normativa completamente nova, usurpando a competência da presidência da República. Os ministros, no caso específico, entenderam que não houve o propalado "contrabando legislativo". De modo que a ADIn foi improcedente. No entanto, já que estavam a debater a questão, os ministros decidiram, e não foi apenas um obiter dictum, que é inconstitucional enfiar nas MPs, no momento da conversão, matérias estranhas ao texto originalmente editado. Para eles, a prática de apresentação das denominadas "emendas de contrabando" causa perplexidade na comunidade jurídica e na sociedade de maneira geral, demonstrando um costume escancaradamente inconstitucional. A decisão tem efeitos ex nunc e o Legislativo será comunicado.
Decisão de contrabando
No caso narrado na migalha acima, o migalheiro formal dirá que o Supremo, para fulminar o jabuti Legislativo, criou um jabuti Judiciário. Com efeito, o STF negou a inconstitucionalidade para o caso concreto, mas estendeu-a para todos os casos que a merecerem. Já o migalheiro liberal, no entanto, observará que o Supremo agiu com economia processual, uma vez que a tese foi exaustivamente debatida, e não haveria por que esperar outro processo para dizer a mesma coisa. Enquanto isso, o migalheiro realista dirá que não interessa muito saber os porquês da decisão, uma vez que o Supremo é o Supremo, e pode tudo.
Ganhou, mas não levou
A ministra Rosa, relatora do caso das migalhas anteriores, julgou a ADIn procedente, ficando vencida, mas muito bem acompanhada pelos ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. Ao final, ela chamou atenção para a "Vitória de Pirro" da autora. A tese era vencedora, mas não se aplicava ao caso concreto.
Minudência migalheira
Vitória de Pirro - A locução serve para caracterizar todas as vitórias difíceis, alcançadas à custa de imensos sacrifícios. Pirro, rei do Épiro, conquistou a vitória sobre os romanos na batalha de Asculum, no ano 279 antes de Cristo, perdendo, porém a flor de seu exército no sangrento encontro. Teria, então, exclamado : "Com mais uma destas vitórias estarei perdido !" O rei Pirro não é responsável pela origem das palavras pirrônico e pirronismo, ligadas à ideia de ceticismo, de teimosia, de obstinação. Essas palavras derivam da doutrina de seu homônimo, o filósofo Pirro, que viveu no 4º século antes de Cristo, e que foi o fundador da escola cética. Não admitia esta senão o que não pudesse ser provado, nem aceitava a realidade de outra coisa que não fossem as sensações.
Ao iniciar seu voto no caso das emendas contrabandeadas, o ministro Marco Aurélio exclamou: "Pobre Constituição Federal! Muito pouco amada! Muito pouco observada. Pobre Constituição Federal! Que de rígida, se torna flexível! E isso ocorre lamentavelmente com o endosso do guarda-maior que é o Supremo."