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As ilegais restrições ao desembaraço aduaneiro e importações realizadas por empresas

A Secretaria da Receita Federal fez publicar, no Diário Oficial da União de 23.10.2002, a Instrução Normativa n. 228 (de 21.10.2002), que “dispõe sobre procedimento especial de verificação da origem dos recursos aplicados em operações de comércio exterior e combate à interposição fraudulenta de pessoas” (como consta de seu preâmbulo).

17/2/2005


As ilegais restrições ao desembaraço aduaneiro e importações realizadas por empresas sujeitas ao procedimento especial de fiscalização de que cuida a IN-SRF 228/02

Rogério Pires da Silva*

A Secretaria da Receita Federal fez publicar, no Diário Oficial da União de 23.10.2002, a Instrução Normativa n. 228 (de 21.10.2002), que “dispõe sobre procedimento especial de verificação da origem dos recursos aplicados em operações de comércio exterior e combate à interposição fraudulenta de pessoas” (como consta de seu preâmbulo).

O referido ato administrativo – que é o objeto deste estudo – foi baixado com fundamento no art. 68 e no inciso II do art. 80, ambos da Medida Provisória n. 2.158-35/011, nos parágrafos e no inciso V do “caput” do art. 23 do Decreto-lei n. 1.455/76 e no art. 81 da Lei n. 9.430/96 (estes dois últimos diplomas já com a redação dada pela Medida Provisória n. 66/02, convertida na Lei n. 10.637/02).

Aqueles comandos legais basicamente autorizam a retenção de mercadorias importadas pela Secretaria da Receita Federal quando houver indícios de infração punível com a pena de perdimento, nos termos a serem disciplinados por aquele órgão, autorizando ainda o fisco a exigir garantias como condição para o desembaraço aduaneiro de mercadorias importadas, quando o valor das importações for incompatível com o capital social ou o patrimônio líquido do importador ou adquirente.

Com fundamento naquelas normas, a IN-228/02 impõe procedimento especial de fiscalização às empresas que, na avaliação fazendária, apresentam indícios de incompatibilidade entre os volumes transacionados no comércio exterior e sua capacidade econômica e financeira (art. 1º, “caput”).

Segundo o art. 4º daquele diploma, o procedimento tem início com a intimação da empresa para apresentar diversos documentos e comprovar a licitude de suas operações no comércio exterior, sendo certo ainda que, uma vez iniciado o procedimento especial com aquela intimação, a empresa fica submetida a restrições nas suas operações de importação.

Sobreleva considerar, pela relevância, que o desembaraço aduaneiro das mercadorias importadas pela empresa enquadrada naquela condição “fica condicionado à prestação de garantia, até a conclusão do procedimento especial” (art. 7º, “caput”); a garantia será equivalente ao valor das mercadorias importadas mais o frete – valor CIF (art. 7º, § 1º), e será prestada sob a forma de depósito, fiança bancária ou seguro em favor da União Federal (art. 7º, § 3º).

A sujeição às restrições acima, como se viu, prevalece até a conclusão do procedimento especial de que cuida aquele ato normativo, sendo certo que seu art. 9º estabelece o prazo de 90 (noventa dias) para a referida conclusão – prorrogável por igual período pela própria autoridade.

Obviamente ninguém se opõe – nem pode se opor – a que a Fiscalização da Secretaria da Receita Federal examine seus livros e documentos fiscais, inclusive com o propósito de averiguar a efetiva compatibilidade econômica-operacional em relação aos volumes transacionados no comércio exterior.

Todavia, enquanto aquele procedimento administrativo não é concluído (o que pode durar até noventa dias, como se viu), a empresa investigada não pode ficar submetida ao bloqueio de suas importações, nem à imposição de gravames que lhe são excessivamente onerosos (v.g. fianças bancárias, pelas quais as instituições financeiras costumam cobrar taxas elevadas) como condição para liberação ou desembaraço aduaneiro.

O regime condicional de desembaraço aduaneiro, imposto com base na citada IN-SRF 228/02, é absolutamente ilegal e inconstitucional, como se verá a seguir, e pode causar inúmeros prejuízos às empresas em fiscalização, bastando dizer que a singela demora nos desembaraços aduaneiros em aberto implica, automaticamente, um brutal aumento nos custos de armazenagem.

Além disso, e como é óbvio, os importadores investigados nos termos daquele procedimento se vêm privados dos bens que tenham importado legalmente do exterior, ainda que todos os tributos devidos tenham sido pagos. É fácil vislumbrar os prejuízos que podem advir do bloqueio fazendário aqui analisado, caso o importador não tenha condição financeira de apresentar as garantias exigidas: paralisação de atividades fabris dependentes de insumos importados, perda de credibilidade no mercado em decorrência do atraso na entrega de encomendas a clientes, dificuldades financeiras em conseqüência da perda de faturamento etc.

Ora, antes de mais nada, e como os arts. 68 e 80 da MP 2.158-35/01 reportam-se à pena de perdimento, é de todo aplicável ao tema o inc. LVII do art. 5º da Constituição, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” – eis que a penalidade administrativa e aquela decorrente do ilícito criminal têm a mesma natureza, e a ambas se aplicam todos os princípios jurídicos concernentes ao Direito Penal em geral.

De pronto se observa, portanto, que ninguém pode ser antecipadamente submetido a restrições e gravames só porque a autoridade administrativa supõe haver “indícios” de culpa, em flagrante desrespeito àquela regra fundamental da presunção da inocência até prova em contrário.

De outra parte, e também à propósito da pena de perdimento, é certo que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (Constituição, art. 5º, LIV), de forma que o próprio Decreto-lei 1.455/76 (que também empresta fundamento à IN-SRF 228/02) já é inconstitucional, no particular, ao estabelecer mero procedimento administrativo para a aplicação da pena de perdimento. Ao exigir o devido processo legal expressamente para as gravíssimas penas relativas à privação da liberdade e à perda de bens, à evidência, a Carta demanda solenemente um julgador imparcial para aplicá-las (condição implícita na cláusula do “due process of law”), e por isso mesmo a pena de perdimento de bens não pode ser aplicada pela própria autoridade alfandegária.

A aplicação antecipada de retaliações ao importador, ainda que sob a suspeita (ou mesmo na presença de indícios) de irregularidades sujeitas ao perdimento, configura, por outro lado, uma clara restrição ao direito de defesa, que é amplo na dicção constitucional (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, diz solenemente o art. 5º, LV, da Carta).

Ao ferir o direito de ampla defesa, como é óbvio, a restrição fazendária em debate fere também a própria cláusula do devido processo legal como um todo (CF, art. 5º, LIV), ofendendo ainda os princípios administrativos da legalidade, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade e segurança jurídica (Lei n.º 9.784/99, art. 2º).

A par disso, a restrição aqui analisada caracteriza ofensa direta aos princípios constitucionais da liberdade de iniciativa e do livre exercício de atividade econômica.

A Constituição garante de forma solene os referidos postulados já no seu artigo 1º, como um dos “princípios fundamentais” da Carta (inciso IV: “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”). Repete-os no “caput” do consagrado art. 5º, ao garantir a todos a inviolabilidade do direito à liberdade, e no inciso XIII do mesmo comando, onde se pode ler que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendida as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Ademais, no mesmo comando a Carta estabelece, no inc. XIV, que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

Tão importante é o tema que a Constituição reforça seu conteúdo normativo no art. 170, alçando a livre iniciativa à categoria de princípio geral da atividade econômica (“caput”), e reitera, no parágrafo único do mesmo dispositivo: “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

A jurisprudência de nossos Tribunais, já habituada a desmandos das autoridades tributárias e alfandegárias, tem reiterado a prevalência da livre iniciativa e da liberdade do exercício de atividade econômica sobre os interesses meramente arrecadatórios da Fazenda Pública, e sempre proibiu, entre nós, a famigerada cobrança “política” – que resulta na adoção, pelo fisco, de medidas oblíquas de restrição da atividade do contribuinte.

O tema, aliás, consta de nada menos que 3 (três) verbetes da Súmula de Jurisprudência do C. Supremo Tribunal Federal, como segue:

Súmula 70 do STF – “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”.

Súmula 323 do STF – “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.”

Súmula 547 do STF – “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.

Em suma, a liberdade de iniciativa e o livre exercício da atividade econômica estão acima dos interesses fazendários (sejam eles arrecadatórios ou meramente de controle das importações), e não há como compatibilizar aqueles postulados com as regras baixadas pela IN-SRF 228/02. A Constituição Federal e a jurisprudência consolidada da nossa mais alta Corte não deixam dúvidas a respeito disso.
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1A MP 2.158-35/01 foi alcançada pelos efeitos de perpetuação independente de reedição, conforme art. 2º da Emenda Constitucional n. 32/01.
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*Advogado do escritório Boccuzzi Advogados Associados









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