Arbitragem: violação à inafastabilidade do controle jurisdicional?
Alessandro Pereira Gama*
Introdução
Tal inovação decorreu com o advento da lei 9.307/1996, denominada de arbitragem.
Logo inúmeras foram as discussões acerca de sua constitucionalidade, razão pelo quais calorosos foram os debates doutrinários e jurídicos da lei sob comento.
Em síntese, a arbitragem significa uma solução de conflitos na esfera privada, afastando em tese o Estado da resolução da Lide. Tem-se, portanto na arbitragem, como característica, a ausência da intervenção estatal na resolução de conflitos entre particulares, valendo-se os interessados de uma prerrogativa conforme os seus interesses e promovendo uma solução alternativa de conflitos e consequentemente como já dito, desafogando os tribunais. Pelo menos em tese.
Porém, resta dúvida no que tange a afronta ao princípio constitucional da inafastabilidade do poder judiciário, haja vista, que a arbitragem é privada. Iremos discorrer sucintamente sobre o assunto sem a intenção de exauri-lo.
A lei de arbitragem e o controle jurisdicional
Reza o artigo 1º da lei 9.307/96 que: "as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis."
Logo do artigo supramencionado se extrai a seguinte conclusão:
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Apenas poderá utilizar-se da arbitragem as pessoas com capacidade para contratar, ou seja, livre de qualquer vício de capacidade civil.
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É necessário que o direito em questão seja completamente disponível, não se admitindo exceções.
Nesse sentido, percebe-se que existe uma preocupação do legislador ordinário em restringir o uso da arbitragem. Dessa feita, não afasta por completo a interferência estatal nas relações humanas.
Ademais, outro fato em destaque da aludida lei é que o arbitro poderá ser qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes (art. 13 da lei 9.307/96), não sendo necessário que sua decisão seja homologada pelo poder judiciário.
Essas ditas outorgas ao ente privado, representada pela figura do arbitro, trazem antigas discussões, que adveio juntamente com a criação e publicação da lei da arbitragem. Explico.
Entende alguns doutrinadores que o reconhecimento das decisões proferidas pelo árbitro, sem as prerrogativas do juiz natural, ocasiona o afastamento do controle jurisdicional do Estado. Soma-se a isso o fato de que as sentenças são consideradas irrecorríveis, sedimentando ainda mais o entendimento de alguns estudiosos sobre a sua inconstitucionalidade.
Por outro prisma, devem-se levar em consideração que a lei de arbitragem somente poderá ser aplicada quando a Lide versar sobre direitos patrimoniais disponíveis, encurtando dessa maneira o leque de possibilidades e competência da lei sob comento.
No entanto, em defesa da constitucionalidade da lei em destaque, trazemos a tona outro principio fundamental pertencente ao ordenamento jurídico pátrio, sendo este o da autonomia da vontade do ser humano.
O principio da autonomia da vontade é sem dúvida o ponto de apoio para a lei da arbitragem, uma vez que o cidadão poderá escolher que a resolução do seu litígio seja feita por meio de um árbitro, abrindo mão de uma série de garantias legais e constitucionais.
Escolher o litigante uma dentre as duas possibilidades de resolução de conflitos, configura-se verdadeira autonomia de vontade, estando automaticamente assumindo os riscos decorrentes de sua escolha. Tal escolha é feita com base na conveniência das partes que optam por algo que consideram no momento ser a melhor forma de resolução do litígio.
Os árbitros muito embora não tenham as prerrogativas dos magistrados, não afasta o poder jurisdicional do Estado. Isso porque a arbitragem também exerce jurisdição. Afinal a jurisdição é a atividade pela qual o Estado elimina a Lide declarando direitos ou realizando o direito. Ora, se a arbitragem foi criada pelos representantes da sociedade e em nome do Estado, com o objetivo puro e simples de resolução de lides pelo particular, como podemos afirmar que a arbitragem não é jurisdição?
Devemos lembrar que a sociedade é a razão da existência do Estado, portanto qual o motivo da sociedade não poder resolver seus próprios litígios? É mesmo necessário sempre buscar o aparato do Estado para resolução de suas controvérsias?
Particularmente, creio que a resposta é negativa para ambas as perguntas acima, uma vez que a jurisdição estatal não descaracteriza a função de jurisdicionalidade da arbitragem.
O professor Marinoni em artigo sobre a Arbitragem extraído do seu sitio eletrônico cita Owen Fiss:
"A arbitragem assemelha-se à jurisdição pelo fato de também procurar um julgamento correto, justo, verdadeiro. Há, no entanto, uma diferença importante nos dois processos decorrente da natureza do órgão – um privado, o outro público. Árbitros são pagos pelas partes; escolhidos pelas partes; e influenciados por uma série de práticas (como uma relutância em redigir opiniões ou gerar precedentes) que localizam ou privatizam a decisão. A função do árbitro é resolver uma disputa. A função do juiz, por outro lado, deve ser compreendida em termos inteiramente diferentes: ele é um agente público, não é escolhido pelas partes mas pelo público ou seus representantes [ou por outros processos públicos, como o concurso público de provas e títulos], e investido pelos órgãos políticos [no Brasil, exceto no primeiro grau de jurisdição] para criar e impor normas de amplitude social (…) como um meio de dar sentido aos nossos valores públicos".1
Portanto, a lei de arbitragem exerce o poder de jurisdição, sendo como consequência considerada constitucional. Vejamos o que expõe Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery em favor da lei de Arbitragem:
"A arbitragem não ofende os princípios constitucionais da inafastabilidade do controle jurisdicional, nem do juiz natural. A Lei de Arbitragem deixa a cargo das partes a escolha, isto é, se querem ver sua lide julgada por juiz estatal ou por juiz privado. Seria inconstitucional a Lei de Arbitragem se estipulasse arbitragem compulsória, excluindo do exame, pelo poder Judiciário, a ameaça ou lesão a direito. Não fere o juiz natural, pois as partes já estabelecem, previamente, como será julgada eventual lide existente entre elas. O requisito da pré-constituição na forma da lei, caracterizador do princípio do juiz natural, está presente no juízo arbitral."
Conforme já informado em linha pretéritas, o princípio da autonomia da vontade humana é quem regula e norteia a lei de arbitragem, trazendo uma conotação constitucional e sem afrontar ao poder jurisdicional do estado.
Entretanto, resta apenas o cuidado para não relativizar os direitos ditos indisponíveis, devendo permanecer aos cuidados do Estado, uma vez que guardam maiores prerrogativas e interesses difusos ligados diretamente a decisão do Estado-Juiz, o que se pressupõe uma maior segurança jurídica para satisfação dos direitos dos jurisdicionados.
Conclusão
Há de se salientar que a arbitragem é um tipo de mediação, tendo hodiernamente um papel fundamental para deslinde e resolução das lides de grandes empresas e mecanismos internacionais.
Ganha força e respaldo na medida em que presta uma solução mais célere e eficaz, muito embora possa onerar as partes mais do que se fossem buscar a solução do litígio pelas vias do ente Estatal.
Os embaraços burocráticos e as várias possibilidades de recursos na via estatal ou jurisdicional desestimulam as empresas que visam maior celeridade e conforto no deslinde final de seus interesses.
O mercado comercial é dinâmico e para tanto necessita de uma justiça mais eficaz, posto que não possua tempo necessário para aguardar o resultado final de uma querela.
Dentre as diversas possibilidades postas à competência da arbitragem, podemos imaginar hipoteticamente a disputa entre duas grandes multinacionais que estão prestes a fechar uma grande parceria, não sendo possível no momento por pendências meramente burocráticas, onde deveria em tese buscar o poder judiciário para declarar quem possui o direito à determinada coisa.
Levando-se em consideração que o tempo é fundamental para o fechamento de determinado negócio comercial, não podendo as empresas esperar a boa vontade da justiça estatal para resolução da peleja, é com certeza muito mais viável e legítima a escolha da arbitragem para solução do conflito.
Como já explanado em linhas anteriores, a arbitragem não afasta do jurisdicionado a tutela do Estado, sendo uma escolha com base na autonomia de vontade das partes.
É simples, posto que não havendo mais interesse no julgamento pela via da arbitragem, renunciando as partes a cláusula compromissória poderá a qualquer momento buscar a solução do litígio pela via Estatal.
Por tudo isso é que entendo a ausência da inafastabilidade da jurisdição estatal quando as partes convencionam a resolução do conflito por meio da arbitragem.
Outrossim, é necessário uma fiscalização mais forte nas instituições que exercem a arbitragem, pois assim os riscos inerentes a justiça privada serão minimizados a ponto de trazer maior conforto e segurança aos usuários dessa justiça particular.
Referências
BRINDEIRO, G. Da constitucionalidade da lei 9307/96. Parecer 8062/GB sobre a SE 5206/Espanha. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem. Nº 07. Ano 03 – Janeiro/Março de 2000.
DINIZ, M. H. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo. Saraiva.1995. v.2.
CARMONA, C. A. Arbitragem e processo – um comentário à Lei 9307/96. São Paulo. Malheiros Editores. 1998
____. Arbitragem e jurisdição. Revista de Processo. Nº 58. Ano 15 – Abril/Junho de 1990.
____. A nova lei de arbitragem. Revista Jurídica Consulex. Ano I – n.º9 – 30 de Setembro de 1997.
FRANÇA, R. L. Hermenêutica jurídica. São Paulo. Saraiva. 19
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1 Owen Fiss, The forms of justice, Harvard Law Review, p. 30-31.
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*Advogado Coordenador do escritório Lins Cattoni Advogados
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