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A ética do profissional do Direito

Perde-se na noite dos tempos a preocupação humana sobre os problemas comportamentais que sempre nos afligiram: o egoísmo, o desrespeito, a insensibilidade, a violência, a mentira, a traição, a improbidade e a indiferença pela sorte do semelhante.

20/11/2009


A ética do profissional do Direito

Franco Mautone Júnior*

Perde-se na noite dos tempos a preocupação humana sobre os problemas comportamentais que sempre nos afligiram: o egoísmo, o desrespeito, a insensibilidade, a violência, a mentira, a traição, a improbidade e a indiferença pela sorte do semelhante. Malgrado alguns filósofos renascentistas tentassem criar uma sociedade perfeita (utópica) onde todos vivessem na mais perfeita harmonia (como, verbi gratia, A Utopia, de Thomas Morus; A Cidade do Sol, de Tomaso Campanella; Nova Atlântida, de Francis Bacon; Micrômegas, de Voltaire), concordamos com o jurista e filósofo José Renato Nalini, assim como com o escritor José Saramago, que o progresso da humanidade depende do progresso moral1. Eis o alicerce social.

A ética pode ser conceituada como a "ciência do comportamento moral dos homens em sociedade"2. Extrai-se, pois, que a moral é objeto da ciência ética, embora a etimologia das duas palavras seja muito próxima (mores = hábitos – latim; ta êthé = costumes – grego).

É muito comum – e necessário – que o Direito, entendido como o conjunto de normas gerais (princípios) e positivas (regras) que regulam a vida social - abrace valores morais e os normatize para alcançar a manutenção e desenvolvimento sociais, bem como a pacificação com justiça. Em que pese constituírem normas de comportamento, a moral é mais ampla ou difusa, é destituída de coerção (sanção) e abrange os deveres do homem para com Deus, para consigo mesmo e para com seu semelhante. O Direito, por sua vez, tem campo mais restrito, é constituído de sanção como forma de coerção à observância da norma e abrange os deveres do homem para com seu semelhante3. É célebre, assim, a comparação de Bentham ao utilizar dois círculos concêntricos para representar o Direito e a moral, dos quais a circunferência da moral se mostra mais ampla4.

Assim, no Direito Constitucional, encontramos a dignidade da pessoa humana como princípio da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF - clique aqui); a construção de uma sociedade justa, livre e solidária como objetivo da República Federativa do Brasil (art. 3º, I, CF), a indenização (melhor seria compensação) pelo dano moral sofrido (art. 5º, V, CF); no Direito Administrativo, a moralidade como princípio informador (art. 37, caput, CF), sem embargo da Lei de Improbidade Administrativa. Quanto ao Processo Civil e Penal, há o princípio da lealdade processual. No Direito Civil, por sua vez, os bons costumes e a boa-fé servem como forma de interpretação do negócio jurídico (art. 113, CC - clique aqui), e a boa-fé e a probidade, como princípios contratuais (art. 422, CC).

Mas, de nada adiantaria a previsão de inúmeras regras carregadas de inegável substrato moral se não fossem observadas pela sociedade e, principalmente, pelos operadores do Direito. Desta forma, o princípio maior que deve conduzir a atuação do profissional é o da ação segundo ciência e consciência5. Com efeito, toda pessoa humana é dotada em sua alma de uma bússola natural que a predispõe a discernir o que é certo e o que é errado, o que é justo e o que é injusto, o que é moral e o que é imoral6. Obviamente que isso está ligado intimamente à criação, à educação e ao desenvolvimento de cada indivíduo, uma vez que não existe um padrão humano7.

Para José Renato Nalini8, de "pouco vale o conhecimento técnico, sem o compromisso ético. Quais os valores que o profissional deve ter em conta? 'A retitude da consciência é mil vezes mais importante que o tesouro dos conhecimentos. Primeiro é ser bom; logo ser firme, depois ser prudente; e, por último, a ilustração e a perícia'. (...). Não se concebe consciência ética que se não devote ao permanente estudo. Ele é processo fundamental na consecução do crescimento humano, a caminho da perfectibidade. Já o conhecimento técnico ou científico desacompanhado de vontade moral é vão conhecimento. A cultura divorciada da moral pouco ou nada poderá fazer para tornar mais digno o gênero humano".

A primeira conclusão que se extrai é que somente com o aperfeiçoamento ético do profissional do Direito é que alcançaremos o desenvolvimento social escorreito, a garantia da dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade justa, livre e solidária.

Por outro lado, diminuir os efeitos dos inevitáveis condicionamentos comportamentais do passado também contribuirá para o exercício límpido e justo da profissão jurídica, pois todos possuem as suas prenoções que os guiarão para determinado caminho.

Nessa mesma linha, a formação equivocada, errônea, desviada das lições éticas trará resultados indesejáveis à sociedade. Ora, temos que partir do pressuposto de que a profissão jurídica é uma das poucas mencionadas na CF (art. 92 usque 135), o que sinaliza claramente o seu valor perante a sociedade. Não é demais reconhecer, assim, a esperança que a sociedade deposita nos operadores do Direito, os quais, em última análise, aplicarão o que se entende por certo e/ou por justo e decidirão o destino de vidas e de patrimônios em caráter definitivo, pelo que deverão observar a frieza da técnica jurídica iluminada com o fogo da moral em todos os momentos da deliberação, resolução e ato acompanhado das suas conseqüências. São, pois, elementos indissociáveis e necessários para a manutenção e desenvolvimento de qualquer sociedade sob a ótica do bem.

Por fim, vale à pena mencionar um dos Mandamentos do Advogado de Eduardo J. Couture, o qual acredito que deve ser aplicado para todos os operadores do Direito: "teu dever é lutar pelo Direito, mas, toda vez que o Direito se encontrar em conflito com a Justiça, lute pela Justiça".

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1 NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 11.

2 NALINI, José Renato. Op. cit. p. 26.

3 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Parte Geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 3. Todavia, não podemos olvidar da coerção social de Émile Durkheim: é “a força que os fatos exercem sobre os indivíduos, levando-os a conformarem-se às regras da sociedade em que vivem, independentemente de suas vontades e escolhas”. (COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia – Introdução à Ciência da Sociedade. São Paulo: Moderna, 1995, p. 51).

4 No entanto, para Cunha Gonçalves (Tratado de Direito Civil. São Paulo: Max Limonad, 1955, v. 1. t.I, p. 30): “o direito não está incluído na moral; nem se dá a inversa”. (...) “... os direitos imorais têm existido, existem e existirão sempre, mas a imoralidade não lhes tolhe o caráter de direitos”.

5 NALINI, José Renato. Op. cit. p. 194. O festejado autor ainda traz outros princípios gerais da Deontologia Forense: princípio da conduta ilibada, princípio da dignidade e do decoro profissional, princípio da incompatibilidade, princípio da correção profissional, princípio do coleguismo, princípio da diligência, princípio do desinteresse, princípio da confiança, princípio da fidelidade, princípio da independência profissional, princípio da reserva, princípio da lealdade e da reserva, princípio da discricionariedade, princípio da informação, da solidariedade, da cidadania, da residência, da localização, da efetividade e da continuidade. A partir deste elenco, vale à pena trazer à colação os ensinamentos de Celso Antonio Bandeira de Mello: (Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 451): Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa ingerência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão da sua estrutura mestra”.

6 NALINI, José Renato. Op. cit. p. 30-31.

7 No entanto, somos livres. Assim, como afirma Merleau-Ponty: “Não há determinismo ou escolha absoluta: jamais sou coisa, jamais sou consciência nua”. No mesmo sentido é a lição de Sartre: “O importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele”. (Apud ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. MARTIS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1994, p. 297 e 304, respectivamente)

8 Op. cit. p. 70.

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*Advogado do escritório Mautone, Oyadomari e Vetere Advogados






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