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O prazo prescricional aplicável à pretensão do beneficiário do seguro de pessoa contra o segurador

Como sabido, o CC/1916 somente previa o prazo prescricional aplicável à pretensão do segurado contra o segurador, conforme dispunha o seu o art. 178, § 6º, II. Quanto ao beneficiário, independentemente do tipo de seguro, a codificação era omissa, passando a entender o STJ, na qualidade de intérprete maior da norma infraconstitucional, pela aplicação do prazo vintenário constante do art. 177 daquela codificação.

21/9/2009


O prazo prescricional aplicável à pretensão do beneficiário do seguro de pessoa contra o segurador - aplicação do art. 206, § 3º, ix do Código Civil

Gustavo A. Faria Cortines*

Como sabido, o CC/1916 (clique aqui) somente previa o prazo prescricional aplicável à pretensão do segurado contra o segurador, conforme dispunha o seu o art. 178, § 6º, II. Quanto ao beneficiário, independentemente do tipo de seguro, a codificação era omissa, passando a entender o STJ, na qualidade de intérprete maior da norma infraconstitucional, pela aplicação do prazo vintenário constante do art. 177 daquela codificação.

Atento aos fenômenos econômicos e à grande importância que tomou o contrato de seguro nas últimas décadas, sobretudo o seguro de pessoa, nosso legislador civil, ao editar o CC/2002 (clique aqui), entendeu por consagrar dispositivo especial à pretensão do beneficiário contra o segurador. Assim, dispõe em seu art. 206, § 3º, IX:

Art. 206. Prescreve:

(...)

§ 3º Em 3 (três) anos:

(...)

IX – a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório.

O mundo moderno, principalmente com o auxílio precioso da Internet, permite ao homem comum realizar mais atividades em um espaço mais curto de tempo. Como efeito positivo disso, temos o avanço mais rápido da tecnologia, da ciência e da informação como um todo. Todavia, os efeitos negativos também se fazem presentes, produzindo indivíduos cada vez mais preocupados e estressados com o acompanhamento da incessante evolução e, via de consequência, cada vez menos atentos à leitura, sobretudo da lei.

E é justamente a leitura pouco detida do texto legal que vem fazendo com que exegetas em geral interpretem de forma equivocada o art. 206, § 3º, IX do CC, preterindo-o em favor do art. 205 no que tange ao prazo prescricional aplicável à pretensão do beneficiário do seguro de pessoa frente ao segurador.

Assim o fez o STJ em recente – e perigoso - precedente:

AGRAVO REGIMENTAL. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. AÇÃO MOVIDA PELO BENEFICIÁRIO. PRAZO PRESCRICIONAL. Pacífico o entendimento desta Corte no sentido de que o terceiro beneficiário de seguro de vida em grupo, o qual não se confunde com a figura do segurado, não se sujeita ao lapso prescricional ânuo previsto no artigo 178, § 6º, II, do CC/16, mas, ao prazo vintenário, na forma do artigo 177, correspondente às ações pessoais, ou decenal, em consonância com o artigo 205 do CC/2002. Agravo improvido.1

Avalizando esse entendimento, está o parecer de Domingos Afonso Kriger Filho, em sua obra Seguro no Código Civil, justamente nesse sentido:

"Mais uma vez vale lembrar que o Código somente regula a prescrição entre segurado e segurador, silenciando acerca da prescrição a que está sujeito o 'beneficiário' do seguro. Como a matéria relativa a prescrição não admite interpretação extensiva ou ampliativa, não tendo o legislador dado à expressão um sentido amplo, a teor do artigo 192, impossível estender-se o disposto no artigo 206 aos casos de indenização exigidas pelo beneficiário instituído, donde se pode concluir que para este a prescrição deve seguir a regra geral contida no art. 205, ou seja, dez anos a contar da data da recusa do pagamento da indenização solicitado".2

Também nossos tribunais, à medida que os casos concretos lhes vão chegado, vêm optando de forma equivocada pela aplicação do art. 205 do CC:

"O autor da presente ação, ora apelado, por ser terceiro beneficiário do seguro de vida contratado por seu falecido pai, não está sujeito ao prazo prescricional de um ano estabelecido pelo artigo 206, § 1º, II, do Código Civil, que se destina às ações do segurado contra a seguradora, mas àquele de dez anos previsto no artigo 205 do mesmo diploma".3 (Grifos nossos)

Com a devida vênia e sempre respeitando a interpretação dos nobres juristas e órgãos judiciais citados como exemplo, a aplicação do art. 206, § 3º, IX do CC é clara no sentido de que o prazo prescricional aplicável à pretensão do beneficiário do seguro de pessoa – e não só o de responsabilidade civil - contra o segurador é trienal. Não há qualquer supedâneo hermenêutico para que se entenda como aplicável o prazo decenal contido no art. 205.

Nosso legislador civil, ao redigir o art. 206, § 3º do CC, teve inequívoca intenção de abranger a pretensão do beneficiário contra o segurador, independentemente do tipo de seguro, bem como a do terceiro prejudicado no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório. Tal é a conclusão lógica da simples leitura do artigo.

Se nosso legislador tivesse o ânimo de somente regular no inciso IX as pretensões concernentes ao seguro obrigatório de responsabilidade civil, deveria redigi-lo da seguinte forma:

IX – a pretensão do beneficiário contra o segurador e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil.

Ou seja, se somente o seguro obrigatório de responsabilidade civil estivesse abrangido no inciso IX, nosso legislador optaria por retirar-lhe a "vírgula" que separa a pretensão do beneficiário e a do terceiro prejudicado.

Mas não! Optou nosso legislador por manter a "vírgula". E qual seria o sentido de mantê-la se não houvesse a vontade de separar a pretensão do beneficiário para toda e qualquer espécie de seguro e a do terceiro prejudicado, este sim, especificamente no caso de seguro de responsabilidade civil?

Está claro que a intenção do legislador é a de isolar a abrangência do dispositivo legal em duas fases distintas:

a) in limine: a pretensão do beneficiário contra o segurador – Inerente a todo e qualquer tipo de seguro, seja facultativo ou obrigatório, seja de dano (responsabilidade civil) ou de pessoa (vida e acidentes pessoais).

b) in fine: a pretensão do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório – Inerente tão-só ao terceiro prejudicado em relação ao seguro de responsabilidade civil obrigatório, como, por exemplo, o DPVAT.

O entendimento esposado por alguns doutrinadores e aplicadores da lei, entendendo como lacuna legal a pretensão do beneficiário do seguro de pessoa em face do segurador não tem lugar, bastando um mero exercício interpretativo gramatical e literal em relação ao art. 206, § 3º, IX para fazê-lo cair por terra.

Tal o posicionamento que é (corretamente) defendido por Ivan de Oliveira Silva, em sua obra Curso de Direito do Seguro:

"(...) Conforme se observa no inciso IX do § 3º do art. 206 do Código Civil, o prazo prescricional se estenderá para três anos quando a pretensão for do beneficiário do seguro, bem como a do terceiro prejudicado, em casos de direito advindo de seguro de responsabilidade civil obrigatório . Esse critério diferenciador de cômputo do lapso temporal é significativo, eis que tais pessoas referidas no artigo em destaque, embora atingidas pelo evento danoso, não participaram diretamente do contrato de seguro"4. (Grifos e comentários nossos)

No mesmo sentido, o TJ/MG atende aos anseios da mens legis:

AÇÃO DE COBRANÇA - SEGURO - BENEFICIÁRIO - PRESCRIÇÃO - ART. 206, §3º, IX, CÓDIGO CIVIL/2002. Não incide para o beneficiário de contrato de seguro de vida em grupo a prescrição ânua prevista no art. 206, §1º, II, do CC/2002, que se restringe às pretensões do segurado contra o segurador. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, estabeleceu-se prazo prescricional específico de 3 (três) anos para pretensão do beneficiário do seguro em face da seguradora, conforme se depreende da leitura do art. 206, § 3º, IX, do CC/2002.5 (Grifos nossos)

Assim, qualquer pedido do beneficiário do seguro de pessoa a se subsumir no pagamento de cobertura securitária por morte do segurado principal deve ser regida pelo art. 206, § 3º, IX, que prevê prazo de 3 (três) anos.

Não se cogita jamais que nosso legislador civil incorresse no mesmo equívoco que o havido no CC/1916. Neste, por falta de previsão específica, havia uma verdadeira discrepância: a de prever prazo ânuo quanto à pretensão do segurado em face do segurador e a de relegar o prazo comum, vintenário (!!!), para a mesma pretensão do beneficiário.

É muito mais consentâneo com o bom senso que o legislador civil, já nos termos do CC/2002, tenha atentado para essa diferença abissal. Dessa forma, aproximou os prazos, preservando o ânuo para o segurado e garantindo o trienal ao beneficiário.

Feitas essas breves considerações, é importante ressaltar que a contagem do prazo da pretensão do beneficiário, independentemente do tipo de seguro, deve seguir a mesma construída pelo STJ. Inicia-se com o conhecimento do evento danoso, que é a morte do segurado e é suspensa com o pedido de pagamento ao segurador. Em caso de negativa, o prazo torna a correr de onde foi efetivamente suspenso, aproveitando-se o período transcorrido antes do pedido de indenização. Nesse sentido, a súmula 229:

Súmula 229 - O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão.

Em conclusão, não há que se aplicar ao beneficiário do seguro de pessoa regra distinta da prevista no art. 206, § 3º, IX do CC. Conferir tal aplicação somente ao beneficiário e ao terceiro prejudicado no caso do seguro de responsabilidade civil e relegar àquele primeiro o prazo decenal do art. 205 é um retrocesso à omissão feita pela codificação civil anterior, além de gerar a diferença abissal acima apontada. Tal fato não pode ter o beneplácito dos exegetas e aplicadores da lei, primando pela unidade do dispositivo legal e pela sua aplicação indistinta a todas as situações fáticas dessa natureza, escopo maior da norma.

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1 STJ, 3ª Turma, AgRg no REsp 715512-RJ, rel. min. Sidnei Beneti, j. 11/11/08, p. 28/11/08.

2 Kriger Filho, Domingos Afonso. Seguro no Código Civil. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2005.

3 Trecho do voto proferido pelo des. André Andrade em acórdão lavrado pela 7ª Câmara Cível do TJRJ (AC 2009.001.23847).

4 Silva, Ivan de Oliveira. Curso de Direito do Seguro. São Paulo: Saraiva, 2008.

5 TJ/MG, 1.0194.06.065319-4/001(1), rel. des. Márcia de Paoli Balbino, j. 6/6/07, p. 20/7/07.


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*Professor da UniverCidade, da Unifoa, da Unifal e da Escola Superior de Advocacia. Advogado associado ao escritório Brandão Couto, Wigderowitz e Pessoa Advogados

 

 

 

 

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