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O usucapião no novo Código Civil

Essa matéria dará margem, sem dúvida, a inúmeras questões de ordem prática que devem ser estudadas.

9/1/2003

 

O usucapião no novo Código Civil

Sílvio de Salvo Venosa*

O usucapião (ou a usucapião) deve ser visto doravante sob uma perspectiva mais dinâmica, que necessariamente fará acrescer alguns dos princípios básicos que tomamos como dogma no sistema de 1916. O novo Código Civil assume uma nova perspectiva com relação à propriedade, ou seja, o seu sentido social. Como o usucapião é o instrumento originário mais eficaz para atribuir moradia ou dinamizar a utilização da terra, há um novo enfoque no instituto. Alie-se a isto a orientação da Constituição de 1988, que realça o princípio e alberga modalidades mais simplificadas do instituto. Desse modo, a idéia básica no novo diploma é no sentido de que as modalidades de usucapião se situam no tempo do período aquisitivo, mais ou menos longo. Sob esse novo pálio deve ser atentamente analisado o artigo 1.238, que fixa o prazo do usucapião extraordinário em quinze anos, independente de título e boa-fé. Esse prazo será reduzido a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

Há, portanto, modalidade de usucapião para aquisição do imóvel em dez anos disciplinado no parágrafo desse dispositivo e que também independe de título e boa-fé. Desse modo, temos no novo diploma duas modalidades de usucapião extraordinário, com dois prazos diversos.

Sob esse novo diapasão, nessas situações é desnecessária a investigação subjetiva da boa-fé do possuidor no caso concreto, em qualquer caso. Em ambas as situações preponderará o aspecto objetivo do fato da posse, o corpus, ficando o aspecto subjetivo transladado da boa-fé para exclusivamente a análise da posse ad usucapionem. Portanto, ex radice, no exame de um lapso prescricional aquisitivo nos termos do descrito no parágrafo do artigo, o juiz deve examinar a utilização do imóvel e a intenção do usucapiente de lá se fazer presente para residir ou realizar obras de caráter produtivo. A modificação possui evidente caráter social ao ampliar a possibilidade de usucapião e dispensa o requisito da boa-fé. A perda da propriedade imóvel pelo antigo proprietário pelo usucapião, se houver, reside então, como é evidente, na sua inércia em recuperar a coisa, nesse período de dez anos.

O usucapião ordinário é disciplinado pelo artigo 1.242. Neste leva-se em conta o justo título e a boa-fé, em um período de posse de dez anos. Trata-se aqui do mesmo prazo de dez anos do usucapião extraordinário do parágrafo único do artigo 1.238. No entanto, como apontamos liminarmente, lá se cuida de usucapião extraordinário que dispensa o justo título e a boa-fé, mas que exige o requisito da moradia ou realização de serviços de caráter produtivo no local. No caso concreto, pode ocorrer que o usucapiente, ao requerer a aquisição da propriedade, o faça com fundamento no artigo 1.242, mas, subsidiariamente, por preencher os requisitos do artigo 1.238, peça que o juiz reconheça o usucapião extraordinário, se forem discutíveis a boa-fé ou o justo título.

Ainda, contudo, há mais uma possibilidade de usucapião versada no parágrafo único do artigo 1.242: "Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico." A hipótese contempla mais uma facilidade em prol da aquisição da propriedade. Nessa situação, pode ocorrer que o interessado tivesse título anteriormente, o qual, por qualquer razão fora cancelado: por irregularidade formal, por vício de vontade etc. A nova lei protege quem, nessa situação, mantém no imóvel a moradia ou realizou ali investimentos de interesse social e econômico. Protege-se o possuidor que atribui utilidade para coisa, em detrimento de terceiros. De qualquer forma, porém, a hipótese é de usucapião ordinário e mesmo sob as condições expostas, não se dispensará o justo título e a boa-fé.

O novo código suprime a distinção hoje inútil do artigo 551 do velho código quanto ao usucapião ordinário, a referência entre presentes e ausentes. Também teremos questões envolvendo direito intertemporal, posse aquisitiva que tenha se iniciado sob a égide do código anterior e se consumará na vigência novo código. Nas disposições transitórias do novo código foi inserida a seguinte disposição: Artigo 2.029. "Até dois anos após a entrada em vigor deste código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do artigo 1.238 e no parágrafo único do artigo 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916."

Com esse critério objetivo instituído pelo legislador, evita-se a problemática da contagem proporcional dos respectivos tempos de posse nessas novas modalidades de usucapião, mantidos na íntegra, em princípio, os demais períodos estabelecidos nos caputs do citados artigos. Diga-se, no entanto, que nestes casos, análogos ao do código anterior, é perfeitamente possível, na falta de menção expressa do legislador, a contagem proporcional das posses, iniciadas sob uma e finalizada em outra. Ao lado dessas formas clássicas renovadas de usucapião, o novo código contempla também as modalidades especiais, presentes na Constituição de 1988, o usucapião urbano, para área de até duzentos e cinqüenta metros, em imóvel usado para moradia, pelo prazo de cinco anos; e o usucapião rural, destinado a imóveis de até cinqüenta hectares, com idêntico prazo de aquisição, objetivando área produtiva e para moradia.

O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) introduz na legislação mais uma modalidade de usucapião, no artigo 10: "A áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são suscetíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural." A lei cria, portanto, modalidade de usucapião coletivo, atendendo à pressão social das ocupações urbanas. Possibilita que a coletividade regularize a ocupação, sem os entraves e o preço de uma ação individual de usucapião. A lei exige que a área tenha mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, com ocupação coletiva, sem identificação dos terrenos ocupados. Na prática, até que os terrenos podem ser identificados; ocorre que essa identificação se mostra geralmente confusa ou inconveniente nesse emaranhado habitacional. Note também que a área deve ser particular, pois a Constituição da República é expressa em proibir o usucapião de terras públicas. Essa matéria dará margem, sem dúvida, a inúmeras questões de ordem prática que devem ser estudadas.

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* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil - sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados - Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes

 

 

 

 

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