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A instabilidade jurídica provocada pelo retrocesso na jurisprudência do STF

Contrariando orientação anterior proferida no Recurso Extraordinário 262.651, o E. Supremo Tribunal Federal , ao julgar o Recurso Extraordinário 591.874, afirmou que há responsabilidade civil objetiva da empresa de transporte coletivo no caso de acidente envolvendo veículo de particular, ou seja, de quem não é usuário do serviço público.

1/9/2009


A instabilidade jurídica provocada pelo retrocesso na jurisprudência do STF

Da inexistência de responsabilidade objetiva em relação ao não usuário do serviço público

Rafael Alessandro Viggiano de Brito Torres*

Contrariando orientação anterior proferida no Recurso Extraordinário 262.6511, o E. STF2, ao julgar o Recurso Extraordinário 591.874, afirmou que há responsabilidade civil objetiva da empresa de transporte coletivo no caso de acidente envolvendo veículo de particular, ou seja, de quem não é usuário do serviço público.

A recente decisão do STF instaura perigosa instabilidade jurídica afastando a indispensável pacificação dos conflitos.

Desta forma, ousamos discordar da recente conclusão do Pretório Excelso, uma vez que difere de outra decisão do mesmo Tribunal e, ainda, se afasta do real sentido do artigo 37, § 6º da Carta da República de 1988 (clique aqui), fazendo tábula rasa dos princípios que circundam a interpretação das normas constitucionais, senão vejamos.

A hipótese fática que deu ensejo ao anterior posicionamento envolveu a seguinte situação:

Um ônibus colidiu num veículo de transporte (motocicleta).

O ônibus é de propriedade de uma concessionária de serviço público, que ostenta a qualidade de ser uma pessoa jurídica de direito privado. No caso em apreço, estamos diante de delegação de serviço público.

O veículo (motocicleta) pertence a um particular, que não ostenta a condição de usuário/consumidor do serviço prestado pela concessionária, uma vez que não efetuou a celebração de contrato de transporte com a mesma.

Indaga-se:

A responsabilidade objetiva da prestadora de serviço de transporte coletivo (pessoa jurídica de direito privado) estende-se para abraçar as pessoas que não ostentam a condição de usuários do serviço?

Será essa a ratio legis da norma contida no artigo 37, § 6º da Constituição da República de 1988, que enuncia o princípio da responsabilidade civil objetiva das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público?

O STF até o julgamento do Recurso Extraordinário 262.651, de relatoria do então Ministro Carlos Velloso, entendia que o artigo 37. § 6º da CF não autorizava tal elasticidade interpretativa.

Aliás, tal entendimento se encontra corporificado na obra virtual denominada "A Constituição e o Supremo"3, produzida pelo próprio Tribunal, de modo a resumir a forma como o mesmo interpreta a Constituição Federal e, no particular, o alcance do § 6º do artigo 37.

Com a maxima venia, o recente entendimento do STF, confere ao artigo 37, § 6º da CF uma exegese perigosa e demasiadamente ampla e, por consequência, não autorizada ao aludido dispositivo constitucional, não levando em consideração a proteção (destinatários) conferida pela norma do seu artigo 37, § 6º, e o princípio da igualdade no seu aspecto substancial.

Em tema de interpretação das normas constitucionais faz-se imperioso trazermos à colação as lúcidas lições conferidas pelo ilustre Luís Roberto Barroso, corporificadas em sua magnífica obra Interpretação e Aplicação da Constituição4, que assim dispõe:

"A interpretação constitucional exige, ainda, a especificação de um outro conceito relevante, que é o da construção. Por sua natureza, uma Constituição contém predominantemente normas de princípio ou esquema, com grande caráter de abstração.

(...)

Enquanto a interpretação, ensina Cooley, é a arte de encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, a construção significa tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São conclusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma. A interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a construção vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas." (grifo nosso).

Mais adiante, discorrendo sobre os métodos de interpretação declarativa, restritiva e extensiva, ensina o festejado constitucionalista o seguinte:

"Em seus clássicos Comentários, escreveu Joseh Story que as palavras de uma Constituição devem ser tomadas em sua acepção natural e óbvia, evitando-se o indevido alargamento ou restrição de seu significado.

(...)

Todavia, havendo incongruência entre a interpretação lógica e a gramatical, caberá ao intérprete operar uma retificação do sentido verbal na conformidade e na medida do sentido lógico. A imperfeição linguística, expõe Ferrara, pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse menos, quando queria dizer mais. No primeiro caso, impõe-se uma interpretação restritiva (ou estrita), onde a expressão literal da norma precisa ser limitada para exprimir seu verdadeiro sentido (lex plus scripsit, minus voluit).

Quanto ao método de interpretação gramatical elucida Barroso que: "A interpretação gramatical é o momento inicial do processo interpretativo."

Porém adverte: "Embora o espírito da norma deva ser pesquisado a partir de sua letra, cumpre evitar o excesso ao apego do texto, que pode conduzir à injustiças, à fraude e até ao ridículo."

No que tange ao método de interpretação teleológica, com base na lição de Carlos Maximiliano, aduz o citado Master of Laws pela Yale Law School que o método teleológico merece preponderância na interpretação constitucional.

Nesse contexto merece destaque o escólio proferido pelo então Ministro Espínola5, quando no STF:

"O uso do método teleológico – busca do fim – pode ensejar transformação do sentido e conteúdo que parece emergem da fórmula do texto, e também pode acarretar a inevitável conseqüência de, convencendo que tal fórmula traiu, realmente, a finalidade da lei, impor uma modificação do texto, que se terá de admitir com o máximo de circunspecção e de moderação, para dar estrita satisfação á imperiosa necessidade de atender ao fim social próprio da lei."

Pois bem. Postas essas lições primordiais ao deslinde da questio juris, vamos ao cerne da controvérsia.

O âmago da questão cinge-se a delimitar quem são os "terceiros" previstos na primeira parte do artigo 37, § 6º da Carta Federal de 1988.

O artigo 37, § 6º da CF/88, ao disciplinar que as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos respondem objetivamente pelos danos causados a terceiros, somente inclui na expressão "terceiros" os usuários do serviço público prestado, por uma razão lógica e bastante razoável, seja do ponto de vista jurídico ou do bom senso:

somente estes celebram um contrato de transporte e pagam, mediante tarifa ou preço público, pelos serviços prestados, e nessa condição possuem o direito subjetivo de receber um serviço adequado, ideal, traduzindo uma típica relação jurídica de consumo.

O princípio da responsabilidade objetiva, consoante a regra contida no artigo 37, § 6º da CF/88, tem como escopo conferir uma situação jurídica de vantagem aos usuários do serviço (passageiros do ônibus), levando-se em consideração que são estes (usuários) quem sustentam, de maneira direta, o custo do serviço público prestado, e assim sendo, têm o direito subjetivo de exigir e receber um serviço adequado, útil, ideal e eficiente, consoante estabelece a própria Constituição Federal no artigo 37, caput, ao enumerar dentre os princípios da Administração Pública o da "eficiência".

Argumente-se que, não se discute, in casu, a responsabilidade objetiva da concessionária de serviço público – serviço de transporte coletivo. O que se discute é se a responsabilidade objetiva dos concessionários se estende aos não-usuários do serviço!

Como visto, a expressão "terceiros" somente compreende a órbita das pessoas que pertençam a categoria de usuários/passageiros/consumidores do serviço público prestado.

Pelo o que foi exposto, somente pela lógica do absurdo poderia se sustentar que a responsabilidade objetiva também se estenderia a quem não celebrou o contrato de transporte, não pagou pela tarifa e, por conseqüência, não ostenta a qualidade de consumidor do serviço prestado.

Qual a vantagem jurídica teria o consumidor/usuário do serviço no caso?

Nesse diapasão, levando-se em consideração somente a expressão literal "terceiros" contida no texto constitucional, chegaríamos a um resultado completamente absurdo, injusto e antiisonômico, fato que traz a lume a advertência feita pelo ilustre Luís Roberto Barroso supra citada: "Embora o espírito da norma deva ser pesquisado a partir de sua letra, cumpre evitar o excesso ao apego do texto, que pode conduzir à injustiças, à fraude e até ao ridículo."

Por outro lado, ao estender o alcance da responsabilidade objetiva da prestadora de serviço de transporte coletivo aos não-usuários (pedestres e condutores de veículos particulares), estar-se-ia violando diretamente o princípio da igualdade, em seu aspecto substancial, uma vez que seria conferido tratamento igualitário às pessoas que não se encontram na mesma situação fática (consumidores e não consumidores). E dessa forma, o não-usuário – terceiro estranho à relação contratual – que não pagou pelo serviço e não utilizou o mesmo, ostentaria a mesma condição jurídica do consumidor do serviço (que arcou com o ônus financeiro e utilizou o serviço). O que, a toda evidência, é um imenso contra-senso jurídico, que fere de morte o princípio constitucional da igualdade, esculpido no artigo 5º, caput, do Texto Supremo, e não se coaduna com a finalidade da norma constitucional, que tem a clara exegese de proteger os usuários do serviço prestado, de forma a conferir uma situação jurídica de vantagem.

Em síntese, dita interpretação não se coaduna com as regras que norteiam a hermenêutica das normas legais.

No particular, discorrendo sobre os meandros e a extensão do princípio da igualdade, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua festejada obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade6, introduz e esclarece que:

"O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser acolhidas por regimes diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo de obrigações e direitos." (grifo nosso).

Na outorga de critérios para a identificação do desrespeito à isonomia assim conclui Celso Antônio Bandeira de Mello7:

"Em suma: importa que exista mais que uma correlação lógica abstrata entre o fator diferencial e a diferenciação conseqüente. Exige-se, ainda, haja uma correlação lógica concreta, ou seja, aferida em função dos interesses abrigados no direito positivo constitucional..." (negrito nosso).

Mais adiante, aduz o citado Professor Titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo na obra supra referida8 que:

"Para que um discrímen legal seja convivente com a isonomia, consoante visto até agora, impende que concorram quatro elementos:

a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo;

b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito seja efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferençados;

c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica (grifo nosso) e

d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público."

Com efeito, com base nas preciosas lições de Bandeira de Mello, vislumbra-se, no caso em apreço, que todos os elementos identificadores de uma situação diferenciada e que, por conseqüência, legitimam a outorga de um tratamento desequiparado pelo intérprete e aplicador do direito estão presentes.

De um lado, temos o usuário (consumidor) que celebrou um contrato de prestação de serviço de transporte coletivo, que pagou o preço por tal serviço (tarifa ou preço público) e, que por consequência, tem direito subjetivo de receber um serviço público adequado, útil, ideal e eficiente, cuja própria Constituição Federal e a lei ofertaram um tratamento jurídico distinto e diferenciado dos demais, v. g. artigos 5º, XXXII e 173, V, da CF e lei 8.078/90 (clique aqui). Nesta hipótese, caso o passageiro sofra algum dano em decorrência do serviço de transporte incide a regra da responsabilidade objetiva – onde a perquirição sobre a culpa do motorista é irrelevante para a condenação, bastando para tanto a prova do dano e do nexo de causalidade.

De outro, há o condutor de um veículo particular, que não celebrou contrato de transporte com a concessionária do serviço, por óbvio não pagou por isso, e por conseqüência, não figura como usuário/passageiro (consumidor) do serviço de transporte coletivo, sendo que, neste caso, o direito confere um tratamento completamente distinto, verbi gratia, temos o artigo 186 c.c 927 do Código Civil (clique aqui), na hipótese de ocorrer um acidente de trânsito – aqui incide a regra da responsabilidade subjetiva (aquiliana) onde que a comprovação da culpa é indispensável para a condenação.

Como visto então, há uma evidente correlação lógica entre o fator descriminalizante e a desequiparação pretendida, de modo a autorizar um tratamento distinto, sendo que estamos diante de situações jurídicas completamente antagônicas, onde há a participação de sujeitos de direitos desiguais, na medida em que participam de relação fática nítida e completamente diversa, sendo que o Direito reconhece tal diversidade fática, e assim, outorga um tratamento pertinente à cada situação, como manda a lógica do sistema há tempos reconhecida por Aristóteles: tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.

Ao aplicar uma interpretação demasiadamente extensiva ao comando constitucional em debate (artigo 37, § 6º), como fez recentemente o Pretório Excelso, acabou por autorizar a violação mortal do princípio da igualdade, bem como o princípio da finalidade social da lei, insculpido no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."

Há tempos já sustentava o saudoso Carlos Maximiliano em sua festejada obra "Hermenêutica e Aplicação do Direito", em sua 15ª edição, página 166, que:

"deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulta eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este juridicamente nulo."

Foi com base nos argumentos supra e em outros de ordem econômica e financeira, que o STF, decisão anterior proferida nos autos do Recurso Extraordinário 262.651/SP., rel. Min. Carlos Velloso, DJU 6/5/059, assim concluiu de maneira irrefutável, em caso idêntico ao ora tratado (demanda envolvendo acidente de trânsito entre uma empresa de transporte coletivo e um veículo conduzido por um particular) que:

"EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: RESPONSABILIDADE OBJETIVA. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚLICO. CONCESSIONÁRIO OU PERMISSIONÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. C.F., ART. 37, § 6º.

I. – A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço. Exegese do art. 37, § 6º, da CF.

II. – R.E. conhecido e provido.

Levando-se em consideração a importância do tema em debate e a interpretação conferida por nossa Corte Suprema (guardião da Constituição), em decisão anterior, pede-se escusas para transcrevemos parte do voto do Relator Ministro Carlos Mário Velloso:

"Não se discute, no caso, a responsabilidade objetiva da concessionária de serviço público — serviço de transporte coletivo. O que se discute é se a responsabilidade objetiva dos concessionários se estende aos não-usuários do serviço. Essa a questão, aliás, que levou a Turma a dar provimento ao agravo, AI 209.782-AgR/SP, para que subisse o RE.

Em pesquisa doutrinária que fiz, os doutrinadores abaixo referidos ou não cuidaram da questão ou não fizeram a distinção mencionada: Hely Lopes Meirelles, "Direito Administrativo Brasileiro", Malheiros Ed., 29ª ed., págs. 629 e segs.; Sergio Cavalieri Filho, "Programa de Responsabilidade Civil", Malheiros Ed., 2ª ed., págs. 171/173; Celso Antônio Bandeira de Mello, "Curso de Direito Administrativo", Malheiros Ed., 17ª ed., 2004, págs. 699 e segs.; Rui Stoco, "Tratado de Responsabilidade Civil", Ed. RT, 6ª ed., 2004, págs. 965 e segs.; Guilherme Couto de Castro, "A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro", Forense, 3ª ed., 2000, págs. 67 e segs.; João Luiz Coelho da Rocha, "A Concessão de Serviços Públicos e a Responsabilidade Objetiva" in "Boletim — Doutrina: Informações Jurídicas e Empresariais", ano IV, nº 12, dezembro/2001 — ADCOAS, págs. 386 e segs.; Paulo Napoleão Nogueira da Silva, "Breves Comentários à Constituição Federal", Forense, 2002, vol. I, págs. 457 e segs.; Uadi Lammêgo Bulos, "Constituição Federal Anotada", Saraiva, 4ª ed., 2002, págs. 615 e segs.; Diogenes Gasparini, "Direito Administrativo", Saraiva, 6ª ed., 2001, págs. 835 e segs.; Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", Saraiva, vol. I, pág. 254; Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 3, Tomo III, Saraiva, págs. 168 e segs.; Sérgio de Andréa Ferreira, "Comentários à Constituição", Freitas Bastos, vol. III, págs. 314 e segs.; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, "Direito Administrativo", Ed. Atlas, 14ª ed., 2002, págs. 523 e segs.

A professora Lúcia Valle Figueiredo parece sustentar que a responsabilidade objetiva dá-se relativamente ao usuário. Ensina: "(...) se a prestação do serviço público foi cometida a concessionário de serviço, pessoa de direito privado, na verdade temos duas situações instauradas: 1) a do concedente e concessionário, nos termos do contrato de concessão; 2) a do concessionário em face de terceiros ou dos usuários do serviço público. Nessa última hipótese a responsabilidade é objetiva do concessionário. Entretanto, se exauridas as forças do concessionário, responderá o concedente, subsidiariamente." ("Curso de Direito Administrativo", Malheiros Ed., 6ª ed., 2003, pág. 279. Os grifos não são do original).

Yussef Said Cahali não faz afirmação peremptória a respeito. Parece, entretanto, que entende que a responsabilidade objetiva ocorre, relativamente ao usuário, ao lecionar: "Em matéria de serviço de transporte coletivo concedido pelo Poder Público, permite-se afirmar que a regra do art. 37, § 6º, da Constituição de 1988 representa simples superfetação, pois já era entendimento assente que 'a responsabilidade das empresas de serviço público, no transporte de passageiros, decorre de culpa presumida, não se podendo nela entrever qualquer cláusula liberatória, especialmente culpa de terceiros' (TJ/SP, 6ª C., 20.02.89, RT 413/146), o que se compreende, seja considerando-se o transporte de passageiros simples obrigação de resultado, seja tendo em vista o disposto no art. 17 do Decreto 2.681, de 7/12/42, aplicável por analogia, quanto à culpa presumida do transportador." ("Responsabilidade Civil do Estado", Malheiros Ed., 2ª ed., 2ª tiragem, 1996, pág. 156).

Celso Antônio Bandeira de Mello, conforme acima mencionado, não chega a cuidar do tema no seu "Curso de Direito Administrativo". Dirigi-lhe carta, pedindo o seu pronunciamento a respeito. Celso Antônio, gentilmente, respondeu-me:

"(...) Quando o Texto Constitucional, no § 6º do art. 37, diz que as pessoas 'de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes nesta qualidade causarem a terceiros', de fora parte a indispensável causação do dano, nada mais exige senão dois requisitos para que se firme dita responsabilidade: (1) que se trate de pessoa prestadora de serviço público; (b) que seus agentes (causadores do dano) estejam a atuar na qualidade de prestadores de serviços públicos. Ou seja: nada se exige quanto à qualificação do sujeito passivo do dano; isto é: não se exige que sejam usuários, nesta qualidade atingidos pelo dano.

Com efeito, o que importa, a meu ver, é que a atuação danosa haja ocorrido enquanto a pessoa está atuando sob a titulação de prestadora de serviço público, o que exclui apenas os negócios para cujo desempenho não seja necessária a qualidade de prestadora de serviço público. Logo, se alguém, para poder circular com ônibus transportador de passageiros do serviço público de transporte coletivo necessita ser prestadora de serviço público e causa dano a quem quer que seja, tal dano foi causado na qualidade de prestadora dele. Donde, sua responsabilidade é a que está configurada no § 6º do art. 37."

José Cretella Júnior dissertou a respeito. Sua opinião parece-me coincidente com a de Celso Antônio, ao escrever, comentando o § 6º do art. 37 da CF: "326. Terceiros. No texto, 'terceiros' são as pessoas que sofrem dano, causado por agente de pessoa jurídica pública, ou privada, esta última prestando serviços públicos." ("Comentários à Constituição Brasileira de 1988", Forense Universitária, 2ª ed., vol. IV, pág. 2.352).

Ruth Helena Pimentel de Oliveira escreve que "a responsabilidade do concessionário e do permissionário de serviço público é objetiva e direta diante dos usuários e terceiros, informada pela teoria do risco, tal como a responsabilidade do Estado." ("Entidades Prestadoras de Serviços Públicos e Responsabilidade Extracontratual", Ed. Atlas, 2003, pág. 205).

A lição de Romeu Felipe Bacellar Filho, entretanto, parece-me outra: "Resta ainda ressaltar que, em se tratando de concessão de serviço público, existem duas relações jurídicas diversas, como informa Lúcia Valle Figueiredo: a existente entre o poder concedente e o concessionário, que se rege pelo disposto no contrato de concessão, e a que nos interessa em matéria de responsabilidade civil, existente entre o concessionário e o usuário de serviço público." E acrescenta: "Nesta última relação, há incidência de responsabilidade objetiva, respondendo o concessionário por danos decorrentes do serviço por ele executado e concernente à atividade delegada. Isso porque é o usuário detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal, com todas as garantias e benefícios inerentes à atuação pública, mesmo sendo esse serviço prestado por terceiros que não o Estado."

Registre-se que Romeu Bacellar se refere, primeiro, à relação entre o concessionário e o usuário do serviço público. Nessa relação, acrescenta, é que "há incidência de responsabilidade objetiva", porque "é o usuário detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal..."

Depois de mencionar a posição de César Chaves, igual a sua, conclui o mestre paranaense:

"Esse especial modo de vinculação entre o usuário e o concessionário deriva da própria relação orgânica decorrente da natureza e finalidade da delegação, de mister público. A conseqüência não pode ser outra: o concessionário deve prestar o serviço de forma ideal, dado que o serviço se reveste de caráter público, assim como deve responder pelo dano objetivamente, por igual razão." ("Responsabilidade Civil Extracontratual das Pessoas Jurídicas de Direito Privado Prestadoras de Serviço Público", in "Interesse Público", obra dirigida pelo Prof. Juarez Freitas, PUC/RS e UFRGS, 6, 2000, pág. 11 e segs., especialmente págs. 44-45).

Comungo desse entendimento. A responsabilidade objetiva das pessoas privadas prestadoras de serviço público ocorre em relação ao usuário do serviço e não relativamente a pessoas não integrantes dessa relação. Com propriedade, disse o Ministro Nelson Jobim no voto que proferiu por ocasião do julgamento do AI 209.782-AgR/SP, retromencionado: "(...) a Constituição quer assegurar que os terceiros — contratantes do transporte — sejam indenizados, independente da disputa que possa haver entre o prestador de serviço e o eventual causador do sinistro. (...) a responsabilidade objetiva do § 6º, que foi constitucionalizada, porque dispositivo anterior no sistema de Direito Civil estabeleceu que, nos contratos de transporte, o transportado não tem o ônus de participar da disputa de quem for o culpado, se prestador de serviço ou um outro envolvido no acidente; esse é o sentido. Ou seja: Protegeu-se quem? O titular, aquele que recebeu o serviço prestado pela administração pública. Agora, estender a responsabilidade objetiva é ir muito além e criar uma situação contraditória."

Essa me parece, na verdade, a melhor interpretação do dispositivo constitucional, no concernente às pessoas privadas prestadoras de serviço público: o usuário do serviço público que sofreu um dano, causado pelo prestador do serviço, não precisa comprovar a culpa deste. Ao prestador do serviço é que compete, para o fim de mitigar ou elidir a sua responsabilidade, provar que o usuário procedeu com culpa, culpa em sentido largo. É que, conforme lição de Romeu Bacellar, “é o usuário detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal". A ratio do dispositivo constitucional que estamos interpretando parece-me mesmo esta: porque o "usuário é detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal", não se deve exigir que, tendo sofrido dano em razão do serviço, tivesse de provar a culpa do prestador desse serviço.

Fora daí, vale dizer, estender a não-usuários do serviço público prestado pela concessionária ou permissionária a responsabilidade objetiva — CF, art. 37, § 6º — seria ir além da ratio legis.

Do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento, restabelecida, destarte, a conclusão da sentença de 1º grau.

É o voto."

Da análise do teor do V. Acórdão supra transcrito, destacam-se os seguintes pontos cruciais para o deslinde da questão:

Voto (confirmação) do Min. Carlos Velloso:

"Neste caso, as despesas decorrentes da reparação do dano devem ser repartidas entre os que utilizam o serviço. Noutras palavras, a responsabilidade objetiva dá-se relativamente ao usuário do serviço e não quanto a quem não está recebendo o serviço.

(...)

Os automóveis e os ônibus trafegam nas vias públicas. Não há sentido de se estender a responsabilidade objetiva a todos esses veículos que tenham se envolvido num acidente com os ônibus da concessionária.

(...)

Lembro do voto do eminente Ministro Jobim, nesta Turma, a respeito do tema – AI 209.782-AgR/SP:

"(...) a Constituição quer assegurar que os terceiros – contratantes do transporte – sejam indenizados, independente da disputa que possa haver entre o prestador de serviço e o eventual causador do sinistro..."

Volto a invocar a lição do Professor Romeu Bacelar:

"(...) 'é o usuário detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal'".

Por outro lado, sob a ótica do impacto econômico e financeiro (risco de empreendimento), assim se manifestou a eminente Ministra Ellen Gracie em seu voto:

"Sr. Presidente, entendo que, neste caso – e a própria doutrina da responsabilidade objetiva do Estado e seus pressupostos levam-me a essa conclusão – a delegação feita às empresas transportadoras é limitada a uma atividade ou a um determinado serviço público que é, então, executado de forma indireta. Por isso, os riscos correspondentes a essa atividade devem merecer exatamente a mesma limitação, até porque as empresas que assumem tais parcelas da atividade estatal fazem o cálculo econômico dos riscos em que irão incorrer e estes estariam exageradamente ampliadas se atribuíssemos leitura mais alargada ao § 6º do artigo 37 da CF..." (grifo nosso).

Pelo aspecto do econômico-financeiro, ao se conceder uma exegese extremamente ampla ao artigo 37, § 6º da CF, com a que foi adotada recentemente pelo Pretório Excelso, estar-se-ia comprometendo o necessário e imprescindível equilíbrio econômico e financeiro que rege todo o contrato administrativo de concessão de serviço público, e que limita até a prerrogativa da própria Administração Pública de proceder a modificação unilateral dos contratos, forte no artigo 58, § 1º da lei 8.666/93 (clique aqui), verbis:

"Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:

I – modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado.

(...)

§ 1º As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado.

§ 2º Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual."

Consoante todo o articulado supra, seja do ponto de vista da hermenêutica constitucional, ao adotar-se uma interpretação finalística e social do artigo 37, § 6º da CF, levando-se em consideração o princípio da igualdade; seja do ponto de vista econômico-financeiro, onde se deseja manter o equilíbrio do contrato de concessão de serviço público, de forma a delimitar-se os riscos do empreendimento, temos que a exegese do artigo 37, § 6º da CF, deve ser no sentido que considerar como "terceiros" somente os usuários/passageiros do transporte coletivo, tendo em vista a existência de uma relação jurídica base – o contrato de transporte – que somente pode ser celebrado pelo passageiro (consumidor), como foi brilhantemente decidido pelo E. STF anteriormente.

Por outro viés, é bom salientar que o sistema jurídico outorga tratamento díspare quando se trata de pessoa jurídica de direito privado que obtém delegação do serviço público sob a forma de concessão.

A outorga do serviço público se dá por meio de lei, sendo que aí a entidade política cria uma pessoa jurídica de direito público (autarquia) ou autoriza a criação de uma pessoa jurídica de direito privado (empresa pública ou sociedade de economia mista)10, que ficarão com a titularidade e a execução do serviço público outorgado. Nesse caso incide a regra prevista no artigo 37, § 6º da CF – responsabilidade objetiva.

No entanto, quando estamos diante de delegação do serviço público, tal modalidade se dá mediante contrato ou ato unilateral da entidade política, que transfere apenas a execução do serviço público, que será prestado por conta e risco da pessoa jurídica concessionária ou permissionária. Nesse caso, a concessionária ou permissionária responderá perante terceiro, sendo que auferirá sua renda através da cobrança de tarifa ou preço público. Nessa hipótese, não incide a regra da responsabilidade objetiva, na modalidade do risco administrativo, prevista no artigo 37, § 6º da CF/88.

Com efeito, sendo a empresa de transporte público uma concessionária do serviço de transporte coletivo de passageiros, tendo celebrado contrato com a entidade política, não incide a regra da responsabilidade objetiva, mas sim a subjetiva, prevista no Código Civil (art. 186 e 927), em relação a terceiros não usuários do serviço prestado.

Assim sendo, cabe ao usuário o encargo de provar os fatos constitutivos de seu direito, nos termos do art. 333, I do Código de Processo Civil, mais especificadamente a existência de culpa por parte do motorista da empresa prestadora de transporte coletivo, sob pena de improcedência de sua pretensão.

Em resumo, para nós, a interpretação do artigo 37, § 6º da Carta da República de 1988 autoriza a entendermos como incluídos na expressão "terceiros" somente os usuários do serviço público, consoante os vetores dos princípios da interpretação das normas constitucionais e da lógica do sistema jurídico.

_____________

1 “A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a pessoas outras que não ostentem a condição de usuário. Exegese do art. 37, § 6º, da C.F.” (RE 262.651, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-11-04, DJ de 6/5/05).

2 Notícia publicada no site do STF no dia 27 de agosto de 2009.

3 Vide site do Supremo Tribunal Federal, no § 6º do artigo 37.

4 Editora Saraiva: São Paulo, 5ª edição, 2003, p. 103/104.

5 Apud Luís Roberto Barroso, Interpretação...., p.139/140.

6 Editora Malheiros: São Paulo, 3ª edição, 12ª tiragem, 2004, p. 12/13.

7 Ob. Cit., p. 22

8 p. 41.

9 Referida decisão também foi transcrita no Informativo – STF Nº 370 que pode ser consultado junto ao site do tribunal: www.stf.gov.br

10 Conforme prevê o inciso XIX do artigo 37 da CF.

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*Advogado do escritório Zamari e Marcondes Advogados Associados S/C

 

 

 

 

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