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O Instituto da lesão nos Contratos

Aguarda-se, sob o pálio do novo diploma, os rumos da jurisprudência ao analisar contratos lesionários.

5/1/2003

 

O Instituto da lesão nos Contratos

Sílvio de Salvo Venosa*

O novo Código Civil, no artigo 157, reintroduz, no ordenamento, a lesão como modalidade de vício do negócio jurídico: "Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. Parágrafo 1º - Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico. Parágrafo 2º - Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito".

O instituto da lesão justifica-se como forma de proteção ao contratante que se encontra em estado de inferioridade. No contrato, mesmo naqueles paritários, ou seja, naqueles em que as partes discutem livremente suas cláusulas, em determinadas situações, um dos contratantes, por premências várias, é colocado em situação de inferioridade. Esse agente perde a noção do justo e do real, e sua vontade é conduzida a praticar atos que constituem verdadeiros disparates do ponto de vista econômico. É evidente que sua vontade está viciada, contaminada por pressões de natureza variada. Embora esse instituto estivesse ausente no Código Civil de 1916, fora já descrito no Código de Defesa do Consumidor e mais anteriormente, nas Leis dos Crimes contra a Economia Popular.

O instituto da lesão, em regra emanada do Direito Romano, equivalia à alienação da coisa por menos da metade de seu justo preço ou valor, tendo-se estendido, posteriormente, e alcançado o Direito francês. O Código de Napoleão possui princípio lesionário: sempre que o prejuízo for igual ou superior a sete doze avos do valor da coisa. No Direito Romano, não sem algumas dúvidas, diz a doutrina que a laesio enormis surgiu como instituto jurídico na Lei Segunda (lex secunda), do ano 285 de nossa era, promulgada por Diocleciano. O instituto encontra-se presente no Código de Justiniano, mencionado como pertencente às Constituições de Diocleciano e Maximiliano. No Direito Romano primitivo, era desconhecido. Em nosso direito anterior à codificação, a lesão conservava o aspecto original romano, não sendo caracterizada por qualquer defeito de ordem psicológica, mas tão-só pelo lado objetivo: a desproporcionalidade entre o valor e o preço. Clóvis Beviláqua não se referiu à lesão no Projeto do Código Civil de 1916, justificando sua ausência com o argumento de que a parte iludida no contrato teria outros meios para resguardar seu direito, valendo-se dos princípios do erro, do dolo, da fraude, da simulação ou da coação.

De certo modo, o instituto foi revivido entre nós, na legislação que define os crimes contra a economia popular, Decreto-lei nº 869, de 18/11/38, modificado pela Lei no 1.521, de 26/12/51, com roupagem diversa, como lesão de cunho subjetivo, semelhantemente ao que foi disciplinado nos códigos alemão, suíço e italiano atual. Existe vestígio claro da lesão no Código de Defesa do Consumidor, em vários de seus dispositivos. O artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, ao tratar das práticas abusivas por parte do fornecedor de bens ou serviços, veda a exigência de vantagens manifestamente excessivas em perfeita alusão ao vício da lesão. O dolo de aproveitamento nessa lei é presumido. O dispositivo refere-se à prestação exagerada, ou seja, ao requisito objetivo da lesão.

Há, nesse defeito do negócio, elemento objetivo, representado pela desproporção do preço, desproporção entre as prestações, mas há também elemento subjetivo, representado pelo estado de necessidade, inexperiência ou leviandade de uma das partes. A redação implantada no novo Código atende ao que reclamava a doutrina. Poderá alegar lesão qualquer das partes contratantes e não apenas o vendedor, como acontece em outras legislações. Se alguém se prevalece do estado de necessidade do outro contratante, estaremos muito próximos da coação. Na segunda hipótese, se se trata da leviandade ou inexperiência de outrem, para provocar o engano, estaremos próximos do dolo.

Verifica-se, então, a vizinhança desse vício com os vícios de vontade. No novo diploma civil, a matéria vem tratada no capítulo "dos defeitos do negócio jurídico", juntamente com o erro, dolo, coação, estado de perigo e fraude contra credores.

O requisito subjetivo é o que a doutrina chama dolo de aproveitamento e afigura-se, como dizem os diplomas legislativos, na circunstância de uma das partes aproveitar-se da outra pela inexperiência, leviandade ou estado de premente necessidade. Tais situações psicológicas são aferidas no momento do contrato. Não há necessidade de que o agente induza a vítima à prática do ato, nem é necessária a intenção de prejudicar. Basta que o agente se aproveite dessa situação de inferioridade em que é colocada a vítima, auferindo lucro desproporcional e anormal.

Verificados esses dois pressupostos, o ato é anulável. A solução do novo ordenamento, já reclamada pela doutrina, permite que o negócio seja aproveitado, conforme o transcrito parágrafo 2º do artigo 157. Mesmo perante a ausência desse dispositivo na lei, essa solução não contrariava qualquer dispositivo e poderia ser adotada.

A necessidade de que fala a lei é a premência contratual, não se identificando com o estado de necessidade ou estado de perigo. É a indispensabilidade de contratar sob determinadas premissas. É irrelevante o fato de o lesado dispor de fortuna, pois a necessidade se configura na impossibilidade de evitar o contrato; a necessidade contratual, portanto, independe do poder econômico do lesado. O conceito envolve também o estado de penúria pelo qual pode atravessar a vítima, mas não é o único elemento. O lesado vê-se na premência de contratar impulsionado por urgência inevitável. Caracteriza-se a necessidade, por exemplo, numa época de seca, quando o lesado paga preço exorbitante pelo fornecimento de água. Aguarda-se, sob o pálio do novo diploma, os rumos da jurisprudência ao analisar contratos lesionários.

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* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil - sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados - Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes

 

 

 

 

 

 

 

 

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