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Sociedade empresária entre cônjuges e o novo Código Civil – breve estudo sob a ótica constitucional

O Novo Código Civil trouxe em seu art. 977 a faculdade de os cônjuges contratarem “sociedade entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória”.

10/8/2009


Sociedade empresária entre cônjuges e o novo Código Civil – breve estudo sob a ótica constitucional

Franco Mautone Júnior*

O novo Código Civil (clique aqui) trouxe em seu art. 977 a faculdade de os cônjuges contratarem "sociedade entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória". Mais a frente, no Livro Complementar denominado "Das Disposições Finais e Transitórias", o art. 2.031 previu a necessidade de adaptação das associações, fundações e sociedades simples e empresárias constituídas sob a égide da legislação anterior às normas (regras e princípios) do novo Código Civil. Trouxe, ainda, a possibilidade da alteração do regime de casamento no § 2º do art. 1.639.

A primeira idéia que se extrai é a possibilidade de constituição de sociedade pelos cônjuges, entre si ou com terceiros, desde que sejam casados sob o regime da comunhão parcial de bens ou sob o regime da participação final nos aquestos (inclusio unius, exclusio alterius). A segunda idéia é a finalidade da norma, qual seja, a de impedir a confusão patrimonial conjugal e garantir os direitos dos próprios cônjuges e de terceiros que contratem com eles e/ou com a sociedade formada por um deles ou por ambos.

Mas, como conciliar a norma inserta no art. 2.031 do novo Código Civil com as garantias do direito adquirido e do ato jurídico perfeito que estão previstas na CF/88 (clique aqui) e na Lei de introdução ao Código Civil (clique aqui)?

Com efeito, o art. 6º da Lei de Introdução do Código Civil adotou a Teoria de Gabba e disciplinou que a lei nova em vigor terá efeito imediato e geral com total respeito ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido. Além disso, a nossa CF/88, em seu art. 5º, inciso XXXVI, determina como direito e garantia individual que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada", salvo nos casos expressamente previstos, como, por exemplo, a lei penal mais benéfica (art. 5º, inciso XL, CF/88; art. 2ª, CP - clique aqui), a lei tributária que seja expressamente interpretativa, sendo vedada a aplicação de penalidade, bem como quando trate de ato não definitivamente julgado (art. 106, CTN - clique aqui), e a hipótese prevista no art. 17 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Trata-se, pois, da segurança prevista no caput do art. 5º da CF/88.

Na mesma linha de posicionamento se encontra o Departamento Nacional de Registro de Comércio (Parecer Jurídico DNRC/COJUR/N° 125/03 – Assunto: Sociedade empresária entre cônjuges constituída antes da vigência do Código Civil, de 2002 – Dra Rejanne Darc B. de Moraes Castro):

"De outro lado, em respeito ao ato jurídico perfeito, essa proibição não atinge as sociedades entre cônjuges já constituídas quando da entrada em vigor do Código, alcançando, tão somente, as que viessem a ser constituídas posteriormente. Desse modo, não há necessidade de se promover alteração do quadro societário ou mesmo da modificação do regime de casamento dos sócios-cônjuges, em tal hipótese".

A III Jornada de Direito Civil realizada pelo Conselho da Justiça Federal também entendeu que a norma só atinge as sociedades constituídas após a entrada em vigor do novo Código Civil:

Enunciado 204 – Art. 977: A proibição de sociedade entre pessoas casadas sob o regime da comunhão universal ou da separação obrigatória só atinge as sociedades constituídas após a vigência do Código Civil de 2002.

No âmbito doutrinário, Antônio Jeová dos Santos defende a irretroatividade do novo Código Civil (Direito Intertemporal e o novo Código Civil: aplicações da lei 10.406/2002 – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 51): "Nada disso, porém, pode servir como pretexto de se emprestar efeito retroativo às regras do Código Civil de 2002, porque a insegurança seria muito mais deletéria do que eventual imobilismo e estratificação do Direito. Os jurisdicionados necessitam estar seguros e terem certeza de que a lei posterior em nada modificará sua vida de relação e seus negócios, desde que tenham sido concretizados à época da lei revogada. Como é notório no âmbito jurídico, as normas legais infraconstitucionais (mesmo que de ordem pública) não podem retroagir para alcançar contratos, como por exemplo, de constituição de sociedade comercial estabelecidos antes de sua vigência, sob pena de afrontar os princípios da irretroatividade da lei, segurança jurídica, estabilidade e paz social".

Luiz Antônio Rizzato Nunes (Manual de Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 177), por sua vez, afirma que: "... tem havido certa confusão, especialmente em decisões judiciais, relativamente ao aspecto da retroatividade da norma jurídica, pelo fato de ela ser pública ou privada. Mas acontece que não é a qualidade da lei que faz com que ela possa ou não retroagir. A CF/88 não deixa margem a dúvidas: as garantias estabelecidas contra a retroatividade das leis (o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada), no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal, aplicam-se indistintamente contra qualquer espécie de lei. Não é porque uma lei é de ordem pública que ela pode retroagir, ferindo aquelas garantias. A Carta Constitucional fala apenas em 'lei', donde se deve inferir que está tratando de 'toda espécie de lei'”.

Ainda, vale à pena trazer à colação os ensinamentos de Hans Kelsen (Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 61): As leis retroativas são consideradas censuráveis e indesejáveis porque ferem nosso sentimento da justiça infligir uma sanção, especialmente uma punição, a um indivíduo por causa de uma ação ou omissão às quais o indivíduo não poderia saber que se vincularia tal sanção.

Uma vez fixada a idéia da prevalência do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, basta saber a forma de controle a ser exercida no caso. Poderíamos, pois, falar em inconstitucionalidade ou ilegalidade do art. 2.031 do novo Código Civil?

Como se sabe, o Egrégio STF não exerce controle de constitucionalidade nos casos de ofensa reflexa à CF/881, o que vale dizer que eventual Recurso Extraordinário não seria conhecido. Desta forma, restaria um controle de legalidade pelo critério hierárquico, haja vista a natureza da Lei de Introdução ao Código Civil (art. 6º - direito adquirido e ato jurídico perfeito) recepcionada pela nova ordem Constitucional (Lei Complementar – art. 59, parágrafo único, CF/88) e a natureza do Código Civil (Lei Ordinária), uma vez que entendemos que a Lei Complementar é hierarquicamente superior à Lei Ordinária, pois:

a) a Lei Complementar requer aprovação por maioria absoluta (art. 69, CF/88), o que revela uma ponderação especial para a elaboração deste ato normativo2;

b) se a Lei Ordinária usurpar competência da Lei Complementar caracterizar-se-á a inconstitucionalidade;

c) pelo Princípio do Paralelismo das Formas, a Lei Ordinária nunca poderá revogar a Lei Complementar, pelo que, se ela não possui a mesma força revogatória, não pode estar no mesmo plano, assim como nenhum ato normativo pode alterar a Constituição que não a Emenda;

d) por fim, o argumento contrário à nossa tese de que o fundamento de validade excluiria a hierarquia, data venia, não merece acolhida, haja vista que todas as espécies normativas primárias retiram da CF/88 o fundamento de validade, inclusive as Emendas à CF/883.

Portanto, a norma jurídica inserta no art. 2.031 do novo Código Civil só tem aplicação para as sociedades empresárias constituídas após o início da sua vigência.

Por fim, qualquer dificuldade e/ou impedimento para arquivar ato modificativo societário que seja imposto pelo Registro Público das Empresas Mercantis (Junta Comercial) como forma de condicionar a aplicação do art. 2.031 do novo Código Civil poderá ser atacado por meio de Mandado de Segurança (art. 5º, inciso LXIX, CF/88), haja vista o direito líquido e certo ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido.

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1 EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA REFLEXA. 1. Controvérsia decidida à luz de legislação infraconstitucional. Ofensa indireta à Constituição do Brasil. 2. As alegações de desrespeito aos postulados da legalidade, do devido processo legal, da motivação dos atos decisórios, do contraditório, dos limites da coisa julgada e da prestação jurisdicional, se dependentes de reexame prévio de normas inferiores, podem configurar, quando muito, situações de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição. 3. A verificação, no caso concreto, da ocorrência, ou não, de violação do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada situa-se no campo infraconstitucional. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF – 2ª Turma - AI-AgR 740043/RS - AG. REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - Relator(a): Min. EROS GRAU Julgamento: 24/03/2009 – v.u. DJe-071 DIVULG. 16-04-2009, PUBLIC. 17-04-2009, EMENT. VOL-02356-31 PP-06482).

2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 236-237.

3 A discussão em tela se perde na noite dos tempos, dividindo-se em duas correntes. Para Pontes de Miranda, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Geraldo Ataliba, Nelson Sampaio, Haroldo Valadão, Wilson Accioli e Alexandre de Moraes, as Leis Complementares são hierarquicamente superiores às Leis Ordinárias, haja vista o quorum absoluto para aprovação. De outra banda, para Celso Bastos, Michel Temer e Roque Carrazza, as Leis Complementares e as Ordinárias estão no mesmo plano hierárquico, uma vez que ambas retiram o fundamento de validade da própria Constituição, além de possuírem diferentes searas materiais de competência. Malgrado haja este entendimento, a doutrina ainda aponta que a existência ou não de hierarquia está condicionada ao critério estabelecido. Neste sentido, sob a ótica do fundamento de validade, não haveria hierarquia, mas sob a ótica da força derrogatória, haveria.

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*Advogado do escritório Mautone, Oyadomari e Vetere Advogados






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