Sobre o desenho industrial e a proteção das peças de reposição de automóveis
Karin Grau-Kuntz*
Esse raciocínio, que chamo de "equação de legitimação", envolve três premissas:
a) ao garantir um direito exclusivo sobre o bem imaterial, ou em outras palavras, ao limitar a concorrência no nível da produção, estar-se-ia estimulando a concorrência em um nível mais elevado, vale dizer o da inovação;
b) a compensação econômica que o titular do direito exclusivo alcança no mercado traduz estímulo para inovar;
c) o montante ou valor do estímulo devido ao titular do direito exclusivo sobre o bem imaterial será determinado durante o processo de concorrência.
Da premissa a) retiramos que a proteção garantida aos bens imateriais sempre pressupõe uma relação de concorrência. As premissas b) e c) permitem afirmar que é o mercado quem decide sobre a medida econômica do estímulo que se garante ao titular da exclusividade, ou seja, quanto maior o potencial concorrencial do bem imaterial, maior será o valor econômico do estímulo.
A consideração dessas premissas permite concluir que a natureza do estímulo garantido ao titular do direito exclusivo é concorrencial. Repetindo-o, agora em termos de negação, o estímulo garantido ao titular do direito exclusivo jamais poderá decorrer de uma situação monopolista estática, sob pena da proteção garantida não satisfazer a "equação de legitimidade".
A questão que envolve, por um lado, o direito exclusivo das montadoras de veículos que registram como desenhos industriais peças externas que compõem seus automóveis e, por outro lado, o controle do mercado de peças de reposição, trata exatamente da "equação da legitimação".
Não se trata aqui de proteção garantida às peças de automóveis consideradas como parte integrante do automóvel, e no momento da montagem do veículo, mas sim de peças protegidas por uma exclusividade em um momento posterior, quando elas são vendidas em avulso, pressupondo-se que o consumidor já tenha adquirido o veículo, a fim de que venham a ser utilizadas para repor uma peça defeituosa ou danificada.
Os automóveis se distinguem, em suas aparências, pelos detalhes de suas partes visíveis. Presume-se que o consumidor, quando prefere um modelo em detrimento de outro, tome sua decisão também levando em consideração a aparência do automóvel. A preferência do consumidor por um modelo em relação a outro supõe possibilidade de escolha, do que resulta estimulada a concorrência, que é concebida como fator gerador de bem-estar social. Daí justificar-se a proteção de peças que compõem modelos de veículos, desde que preencham determinados requisitos, pelo desenho industrial.
Imagine-se agora que determinado consumidor tenha danificado, ao estacioná-lo, uma peça de seu veículo. É evidente que ele só poderá restituir ao automóvel a sua aparência própria, aparência que foi determinante para sua escolha de compra, se a peça de reposição for idêntica àquela original do modelo do veículo. Qualquer outra peça com uma forma distinta transfiguraria a aparência do automóvel.
A situação que aqui se coloca é peculiar. A proteção exclusiva que recai sobre o "design" das peças gera, no mercado de venda de automóveis, um estímulo aos produtores de carros a inovarem em "designs" mais atrativos, o que incentiva a concorrência. O consumidor, diante de um leque de alternativas, escolherá o produto mais atrativo, o que significa, para o produtor, que quanto mais original o seu produto, maior será o montante da compensação econômica que lhe caberá como prêmio pelo esforço inovador. O aquecimento da concorrência inovadora, por sua vez, é expressivo, para o consumidor, de relevantes vantagens econômicas. O exclusivo gera, então, efeitos positivos, cumpre o seu fim. A "equação de legitimidade" é satisfeita.
Já no mercado de peças de reposição a situação é diametralmente oposta. A garantia do exclusivo, que no mercado de automóveis cumpre função de estímulo concorrencial, é então empregada como artifício para sufocar a concorrência. O consumidor, não tendo alternativas que lhe permitam preservar a aparência do seu veículo – aparência que cumpre, no mercado de automóveis, um papel concorrencial fundamental – não escolherá a peça de reposição fazendo uma opção entre elas, mas por necessidade. Ele se encontra, então, preso a uma relação de dependência a um único produtor. O montante do estímulo de que desfrutará esse único produtor de peças de reposição não decorre do mercado, mas de circunstância que inviabiliza a concorrência.
No mercado de peças de reposição os fatores que compõem a "equação de legitimidade" não interagem entre si. Aqui, como na verdade não há mercado, o solo é fértil para abusos, não para o fomento do bem-estar social. Não há situação de concorrência, mas sim de monopólio estático. E não é esse o efeito que se quer alcançar mediante a garantia de exclusividade sobre os bens imateriais.
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*Doutora e mestre em Direito pela Ludwig-Maximillians-Universität (LMU), de Munique. Coordenadora acadêmica e pesquisadora na Alemanha do IBPI – Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual
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