Indenizações por violação de programas de computador
Dirceu Pereira de Santa Rosa*
Apesar de o Brasil ter uma legislação de propriedade intelectual moderna e coadunada com os principais tratados internacionais sobre o tema, a falta de métodos eficientes de repressão às formas mais vis e diretas de pirataria faz com que a imagem de nosso país como uma economia moderna e globalizada seja bastante afetada. Por não ter, ainda, alcançado êxito no combate à pirataria de programas de computador e outras modalidades de obras intelectuais, o Brasil sofre ameaça constante de retaliações de países líderes na produção mundial e comercialização de software, tais como os Estados Unidos.
Além dos louváveis esforços de nossos líderes para dirimir este delicado problema, a indústria de software vem atuando com firmeza na diminuição da pirataria de programas de computador no Brasil. Bombásticas campanhas anti-pirataria, realizadas através da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES), da Business Software Alliance (BSA) e outras entidades, ganham cada vez mais espaço na mídia, gerando uma ainda tímida, mas eficiente, conscientização do consumidor brasileiro sobre os malefícios do uso de cópias ilegais de programas de computador.
Enquanto isso, no meio empresarial, estas mesmas campanhas são reforçadas com uma ação sistemática de “caça” às empresas que estejam utilizando software ilegal. Uma prática cujos efeitos positivos podem ser notados pela condenação exemplar de diversas empresas, por todo o Brasil, por violação de programas de computador.
É necessário deixar clara nossa opinião de que a reprodução não-autorizada ou qualquer uso indevido de programas de computador legalmente protegidos é uma prática ilícita. Aplaudimos as iniciativas do governo e da indústria de software, pois concordamos que as empresas que utilizam cópias ilegais de programas de computador em seu acervo de sistemas informáticos devem ser responsabilizadas por seus atos, inclusive com o pagamento das necessárias compensações financeiras.
Porém, acreditamos que, em se tratando destas compensações, uma questão merece estudo: Será que as indenizações pleiteadas pelas associações de defesa da indústria de software devem ser calculadas sob o mesmo prisma em todos os casos de infração?
A Lei nº 9.609/98, a "Lei do Software”, especifica em seu Art.12 apenas as punições criminais para a violação de direitos de autor de programa de computador. As punições cíveis não estão previstas por completo no texto legal de modo que, por exegese, são interpretadas com fulcro no Art. 2º. da mesma Lei do Software, que equipara o regime de proteção dos programas ao das obras literárias pela legislação de direitos autorais.
Destarte, para as medidas previstas no Art.14, § 1º, da Lei do Software, aplicam-se as sanções cíveis indenizatórias previstas nos Arts. 102 e 103 da Lei 9.610/98, a “Lei dos Direitos Autorais”.
Dentre estas sanções, destaca-se o parágrafo único do Art.103 que, na sua interpretação majoritária, deixa claro que, não se conhecendo o número de cópias irregulares de um programa de computador feitas pela empresa infratora, a mesma deverá pagar à legítima titular do programa uma reparação pecuniária correspondente ao valor de três mil exemplares originais de cada programa apreendido.
O entendimento de diversos tribunais brasileiros, inclusive o da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (onde destacamos o excelente voto da Min. Nancy Aldrighi)1, deixa claro que o software está sujeito à proteção conferida às obras intelectuais ao se quantificar danos materiais por pirataria e comércio irregular. Assim, a decisão do STJ foi que deveria ser aplicado o parágrafo único do artigo 103, e nunca a regra geral prevista no artigo 159 do antigo Código Civil2. Deste modo, a indenização por danos materiais corresponderá ao valor de três mil exemplares de cada produto, acrescidos de quantia correspondente ao número de programas ilegais apreendidos.
Os defensores desta corrente alegam que a indenização precisa ser severa e exemplar, razão pela qual deve ser calculada com base no proveito econômico obtido pelo beneficiário da fraude.
E como tal proveito não pode ser quantificado de modo preciso, visto que é quase impossível verificar o número exato de instalações e usos de cada programa realizado pelo infrator, aplicar-se-íam por analogia as sanções previstas no parágrafo único do artigo 103 da Lei dos Direitos Autorais.
Porém, não existe uma unanimidade na aplicação desta corrente. Em casos onde a quantidade de cópias ilegais no parque de software de uma empresa pôde ser devidamente apurada no laudo pericial, ou quando os elementos fáticos da ação permitem demonstrar que a violação foi de menor porte, alguns tribunais tem entendido pela não-aplicação das sanções previstas no artigo 103 da Lei 9.610/98. A jurisprudência pátria, inclusive, por diversas vezes já referendou o entendimento de que o quantum compensatório em casos de violação por uso (sem comercialização) pode ser analisado caso a caso e, até mesmo, aferido pela autoridade judicial competente sob critérios totalmente diferentes daqueles adotados pela atual corrente majoritária3.
Alguns especialistas consideram que o parágrafo único do artigo 103 seria aplicável apenas nos casos em que o infrator revende programas ilegais, e não deveria ser utilizado para aferir indenizações quando o infrator é apenas usuário. Dentro deste “vácuo” legislativo teria surgido esta nova interpretação que, a nosso ver, está baseada em 3 (três) pilares de sustentação.
O PESO DA MULTA
Um dos pilares desta corrente é o entendimento de que a aplicação aos infratores da pesada multa de 3 (três) mil vezes o valor da licença do software acaba gerando um enriquecimento indevido para as empresas de software. Afinal, o valor de 3.000 cópias de um programa como o Corel DRAW 11 pode chegar ao surpreendente valor de R$ 6.897.000,00.
Tendo em mente a incidência destes valores, diversos julgados corroboram a tese de que a indenização deve ser calculada de acordo com o valor de mercado dos programas encontrados, na versão que foi efetivamente constatada pela perícia (ou seja, o valor não deve ser aferido com base na versão mais recente4.).
E também encontramos decisões onde o valor da indenização foi multiplicado por outros coeficientes, a critério do juiz, para alcançar o desejado efeito punitivo ou compensatório5. Outros julgados vão além, e consideram até mesmo inadmissível fixar o quantum debeatur com base apenas num estimado proveito econômico6.
Dentre as diversas decisões encontradas, cumpre também destacar a opinião do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e seu entendimento que, “no que tange ao cálculo da indenização, devem ser observadas as características específicas dos programas de computador, não podendo a indenização ultrapassar ao valor da aquisição do programa, sob pena de enriquecimento sem causa. (...) A indenização por dano material não tem caráter punitivo, mas compensatório.”7
Por outro lado, a ABES não reconhece a existência desta divisão jurisprudencial. Na opinião da referida associação, a doutrina se dividiria em apenas duas correntes quanto à aplicabilidade da indenização: A majoritária entenderia que, se o número de licenças pirateadas for identificável, o ressarcimento deve ser proporcional ao que se deixou de pagar, ou seja, 3 (três) mil vezes o número de cópias reproduzidas ilegalmente. E a minoritária, levando em conta que a legislação não definiu claramente essa conduta, aplicaria o índice de 3 (três) mil vezes pelo software pirateado para cada infrator, independente do número de cópias reproduzidas8.
A CARACTERÍSTICA DO INFRATOR
Outro sustentáculo desta nova tese seria o fato de que, em alguns casos práticos, verifica-se que o infrator não agiu com má-fé, e que sua falha foi apenas não ter em mãos os necessários documentos comprobatórios da aquisição das licenças. Este seria o clássico exemplo do infrator desavisado que, ao adquirir computadores de um fornecedor ou integrador desonestos, teve sua máquina “temperada” com software pré-instalado no seu disco rígido. Tais “revendedores”, aue atuam no popularmente conhecido “mercado cinza” de computadores, usam cópias adquiridas legalmente para fazer instalações ilegais em várias máquinas, e assim se aproveitam de consumidores com menos conhecimento técnico. Infelizmente, estes criminosos quase nunca são descobertos e responsabilizados.
É claro que a falta de conhecimento deste usuário não pode ser perdoada pelo legislador, até porque ninguém pode se escusar de cumprir a lei, alegando que não a conhece. Porém, não se pode ignorar que originalmente o Art.103 visa coibir uma atividade-fim, ou seja, a edição de obras para revenda. Nesse sentido, existem decisões judiciais onde o julgador diferencia o “uso” da “comercialização” para fins de enquadramento no disposto no referido artigo9.
RESULTADO DO LAUDO PERICIAL
O sustentáculo final desta corrente se baseia no resultado dos laudos periciais apresentados como prova nas ações de violação de programas de computador. Nestas ações, a concessão de medidas liminares inaudita altera parte permite que se realizem vistorias de surpresa na empresa infratora, possibilitando aos peritos analisar a existência de cópias fraudulentas antes mesmo que o possível infrator tenha a oportunidade de destruí-las. Existindo um número certo de cópias ilegais, encontramos exemplos onde os tribunais concederam indenizações punitivas adequadas caso a caso10, e de até 100 vezes o valor do produto11.
CONCLUSÕES
A pirataria de software há muito deixou de envolver apenas entusiastas, compartilhando jogos e programas. Nos dias de hoje, seus reflexos não apenas prejudicam as empresas que desenvolvem e revendem software, mas também a arrecadação de impostos e a geração de empregos. Neste cenário preocupante, existe um clamor da sociedade para que sejam identificados e punidos aqueles que comercializam, e, em menor escala, os que usam software irregular.
A jurisprudência atual ainda é tímida ao diferenciar os diferentes tipos de infratores de direitos sobre programas de computador. Enquanto o entendimento majoritário sobre o quantum indenizatório segue a opinião do STF, encontramos diversas decisões judiciais que trazem à tona uma abordagem diferente.
Assim, faz-se míster que o legislador entre em cena, e elucide como deve ser aplicada a multa prevista no Art. 103 da Lei do Direito Autoral. Ainda que saibamos que muitos dos casos de violação de software acabam sendo resolvidos em acordos extra-judiciais, torna-se necessário discutir e regulamentar a questão de vez, seja concordando com o entendimento majoritário ou buscando soluções alternativas.
Concordamos com o relatório da ABES12 sobre a necessidade de uma alteração na lei 9.609/98 para incluir, de modo claro, os critérios para o cálculo da indenização. Porém, seria interessante também discutir se o princípio da razoabilidade deve servir como parâmetro de valoração da diretriz insculpida no parágrafo único do art. 103 da Lei de Direitos Autorais, temperando-o em sua aplicação nos casos de violação de programas de computador.
O objetivo deste artigo não é, de forma alguma, incentivar a pirataria ou motivar o uso de programas ilegais. Pelo contrário, nosso objetivo foi demonstrar que o Judiciário não tem estado indiferente aos avanços do Direito de Informática, e que pode discutir, na prática, se a multa do Art.103 deve ou não ser aplicada em todos os casos de violação.
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1 R. Esp. 443.119/RJ - Min, Nancy Aldrighi, 3a. turma, 8/5/2003 - RDDP 6/205
2 que corresponderia ao artigo 927 do atual Código Civil
3 vide Proc.98001048951-3 - 37a. Vara Cível Rio de Janeiro; Apelação Cível n°19.884/99, 6ª Câmara Cível, TJRJ e AGA 162.419-RJ.
4 vide Proc. 2001.039.000078-6 - Vara ùnica, Paracambi : “avaliado o preço de mercado do último ano de fabricação, corrigido monetariamente pela UFIR, e com incidência de juros legais a partir da citação”.
5 vide Ap.Civ. 129.911-2 , TJSC
6 Ap.Civ. 0306615-1, 6ª Câmara Cível, TAMG
7 Ap.Cív 2001.001.27116, 10ª Câmara Cível, TJRJ
8 VANZUITA, Fernanda e RINALDI, Renato,”Pirataria Levada A Sério - Integração Dos Poderes”, disponível em https://global.bsa.org/brazil/press/newsreleases/2003-08-20.1765.phtml (visitado em 11/9/94)
9 Ap. Civ. 0340722-9, 1ªCamara Civel, TAMG
10 Proc.98001048951-3 - 37a. VC Rio de Janeiro
11 Ap. Civel 115.818.4/1 - TJESP
12 https://www.abes.org.br/gruptrab/antipira_comsumo/relofipiratariaswbr-cni.pdf\
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* Advogado do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar - Advogados e Consultores Legais