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Comentários à Lei nº 10.891/04 que instituiu a "bolsa-atleta"

Em 9/7/2004, foi sancionada a Lei 10.891/04, que instituiu a Bolsa-Atleta, consistente no pagamento, pelo Ministério do Esporte, de valores a atletas praticantes do desporto de rendimento em modalidades olímpicas e paraolímpicas, ou para atletas “de destaque” em quaisquer outras modalidades.

13/12/2004


Comentários à Lei nº 10.891/04 que instituiu a “bolsa-atleta”


José Francisco C. Manssur

Marcelo Marcucci Portugal Gouvêa*

I - Introdução - origem e trâmite legislativo

Em 9/7/2004, foi sancionada a Lei 10.891/04, que instituiu a Bolsa-Atleta, consistente no pagamento, pelo Ministério do Esporte, de valores a atletas praticantes do desporto de rendimento em modalidades olímpicas e paraolímpicas, ou para atletas “de destaque” em quaisquer outras modalidades.

O Projeto de Lei, cuja aprovação redundou na implementação da Bolsa-Atleta, foi apresentado ao Congresso Nacional em 2000, pelo então Deputado Federal - e hoje Ministro do Esporte - Sr. Agnelo Queiroz. Na Justificação ao Projeto de Lei 3.826/2000, o Min. Agnelo Queiroz afirmou que “o Brasil possui inúmeros atletas com potencial competitivo que afastam-se do esporte por falta de recursos”. Assim, justificou a implementação da Bolsa-Atleta como necessária à criação de “condições mínimas para que os atletas brasileiros que possuam potencial técnico possam competir, nacional e internacionalmente, alem de propiciar incentivo para que os atletas busquem sempre os melhores resultados” (Diário da Câmara dos Deputados - 30/3/2001, pg. 09128).

II - Destinação dos recursos

Nos termos do artigo 1º da Lei 10.981/04, a Bolsa-Atleta será destinada aos “atletas de rendimento”. O artigo 3º da Lei 9.615/98 (“Lei Pelé”) conceitua “desporto de rendimento” como sendo aquele praticado segundo as normas da Lei Pelé e as regras de prática desportiva de cada esporte, objetivando a obtenção de “resultados e integração de pessoas e comunidades do País e do exterior”.

Os atletas beneficiados receberão valores mensais, que, segundo o Anexo I do da Lei 10.891/04, poderão variar entre R$ 300,00 e R$ 2.500,00 mensais. O artigo 11 prevê que a Bolsa-Atleta será concedida pelo prazo de 1 ano, “configurando 12 recebimentos mensais”. O mesmo artigo prevê a possibilidade de renovação do benefício, caso os atletas que “já receberem o benefício vierem a conquistar medalha em jogos olímpicos ou paraolímpicos” (artigo 12). A Lei não prevê nenhuma outra hipótese de renovação do benefício após um ano da sua concessão.

O art. 1º, §§ 1º e 2º cria as categorias: (i) atleta estudantil - para estudantes participantes de jogos escolares e universitários; (ii) atleta nacional - para atletas participantes de competições de âmbito nacional; (iii) atleta internacional - para atletas participantes de competições esportivas no exterior; e (iv) atleta olímpico ou paraolímpico - para atletas participantes de jogos olímpicos ou paraolímpicos. Os critérios para indicação dos atletas em cada uma das categorias estão definidos no Anexo I da Lei. Os critérios estão sempre condicionados aos resultados obtidos pelos atletas nas competições nacionais de cada uma das categorias ou à participação em delegações nacionais nas competições internacionais e jogos olímpicos e paraolímpicos. No caso de atletas das categorias estudantil e nacional, a concessão do benefício depende, ainda, do aval das entidades de administração da modalidade esportiva.

Em regra, conforme define o artigo 1º, a Bolsa-Atleta será destinada apenas aos praticantes de modalidades olímpicas/paraolímpicas vinculadas ao Comitê Olímpico Internacional (“COI”)/Comitê Paraolímpico Internacional. O artigo 5o da Lei 10.891/04 contempla, porém, a possibilidade excepcional de atletas praticantes de modalidades não olímpicas/paraolímpicas receberem a Bolsa-Atleta. A exceção seria aplicável a atletas de “reconhecido destaque”, mediante indicação “pelas entidades nacionais dirigentes dos respectivos esportes referendada por histórico de resultados e situação nos ranking nacional e internacional da respectiva modalidade” (art. 5º). Parece claro, para nós, que a indicação da Bolsa-Atleta pelo critério do “reconhecido destaque” do atleta confere certa dose de subjetividade ao processo de escolha dos atletas beneficiados nas hipóteses previstas no artigo 5º da Lei. Mais do que isso, ao relegar às “entidades dirigentes” - que são as confederações de cada modalidade - a possibilidade de indicação de atletas por critérios subjetivos, a escolha dos atletas poderá, eventualmente, ser utilizada para privilegiar indevidamente um ou outro atleta. Em grau extremo, a indicação poderia servir como forma de manipulação, pressão dos atletas ou controle político das entidades de administração pelos seus dirigentes.

O artigo 5o deve ser criticado, ainda, porque contém imprecisão terminológica na utilização da expressão “entidades nacionais dirigentes”. A Lei Pelé e as outras leis que tratam do desporto se utilizam da expressão “entidades de administração do desporto” para se referirem a entidades dessa natureza. O melhor seria a busca pela uniformização terminológica em todas as leis que tratam sobre o desporto, visando facilitar sua assimilação pela sociedade e pelos entes envolvidos.

III - Requisitos

O artigo 3º estabelece os requisitos que, cumulativamente, os atletas deverão preencher para o recebimento da Bolsa-Atleta. O artigo 3º, I, determina que o atleta deverá possuir idade mínima de 14 anos para obtenção da Bolsa-Atleta na categoria atleta nacional, internacional, olímpico e paraolímpico e idade mínima de 12 anos e máxima de 16 anos para a obtenção na categoria estudantil.

A Lei determina a impossibilidade de recebimento da Bolsa-Atleta por atletas que recebam salário das entidades desportivas (artigo 3º, II). Portanto, a Bolsa-Atleta não pode ser pleiteada por atletas profissionais, assim definidos no artigo 28 da Lei Pelé como sendo aqueles que têm sua atividade caracterizada por remuneração resultante de contrato de trabalho firmado com entidade de prática desportiva.

Também estão impedidos de pleitear a Bolsa-Atleta atletas que recebam “patrocínio” de pessoas jurídicas públicas ou privadas. Para os fins de recebimento da Bolsa-Atleta, entende-se por “patrocínio”

todo e qualquer valor pecuniário e eventual ou regular diverso de salário” (artigo3º, inciso IV) (negritos acrescentados). O texto legal, nesse ponto, ampliou em muito o conceito de “patrocínio”, usualmente reconhecido como sendo o pagamento de valores que têm como contrapartida a exposição de determinada marca ou nome comercial que se pretende divulgar a partir da sua vinculação à imagem de atleta ou pessoa pública em geral.1

A Lei 10.891/04, da forma como está redigida, permite a interpretação de que patrocínio seria todo e qualquer pagamento “diverso de salário”, incluindo no conceito uma série de outras formas de remuneração, eventual ou regular, que podem ser pagas aos atletas sem que, necessariamente, caracterizarem “patrocínio”. É o caso, por exemplo, dos bônus por performance ou da ajuda eventual para transporte ou alimentação. Essas hipóteses, mesmo refletindo situações absolutamente diversas do recebimento de “patrocínio” propriamente dito, poderão, nos termos da Lei, inviabilizar o recebimento da Bolsa-Atleta por determinado atleta.

A Lei exige, como critério de elegibilidade à Bolsa-Atleta, que o atleta deva manter “vínculo” com alguma entidade de prática esportiva (artigo 3º, II). O texto legal não é totalmente claro ao definir o que pretende caracterizar como “vínculo” entre o atleta e a entidade desportiva. Segundo os dicionários jurídicos, o termo vínculo “exprime a relação, o laço, a ligação, o elo, a união, a aliança, a comunicação, a comunhão, a cadeia, a dependência, a subordinação, a conexão, existentes entre duas ou mais pessoas, em virtude do que se mostram unidas, ligadas, comunicadas, relacionadas, dependentes, conexas”2

A legislação esportiva prevê expressamente as hipóteses nas quais há vínculo entre entidades e atletas, como é o caso do vínculo trabalhista decorrente do contrato de trabalho entre atleta e entidade, previsto no artigo 28 da Lei Pelé. Contudo, a existência de vínculo trabalhista entre o atleta e a entidade desportiva implica o recebimento de salário pelo atleta, fato que, conforme mencionado no item 10 acima, impede a concessão da Bolsa-Atleta. Já o artigo 28, §2º, da Lei Pelé prevê a diferenciação entre o vínculo trabalhista e o chamado vínculo desportivo, ao estabelecer que o vínculo desportivo tem natureza acessória ao vínculo trabalhista entre o atleta e a entidade de prática desportiva. Portanto, apesar de a lei não conceituar vínculo desportivo, prevê a sua existência, mesmo que o fazendo para diferenciar o vínculo esportivo do vínculo trabalhista.

Uma vez que a Lei 10.891/04 prevê a necessidade de vínculo entre o atleta e entidade desportiva, mas veda a existência da remuneração proveniente do vínculo trabalhista, somos levados a crer que o vínculo a que a Lei 10.891/04 se refere como necessário à concessão da Bolsa-Atleta é o vínculo desportivo, ou seja, a ligação que advém do fato de o atleta competir representando determinada entidade de prática desportiva. Mesmo em se tratando de esportes individuais, em muitos casos as entidades de administração do esporte exigem que os atletas estejam representando alguma entidade de prática filiada para participar de determinada competição. Portanto, a vinculação exigida pela Lei para a concessão da Bolsa-Atleta implicaria a necessidade de o atleta competir representando alguma entidade de prática desportiva, vedado, porém, que tal vínculo resulte no recebimento de remuneração proveniente de contrato de trabalho.

Ainda a respeito da utilização do termo “vínculo” pela lei que introduziu a Bolsa-Atleta, vale destacar que o artigo 2º da Lei 10.891/04 assegura que a concessão da Bolsa-Atleta não gera “vínculo entre os atletas e administração pública” (artigo 2º). Ao nosso ver, a intenção do legislador com a inclusão dessa ressalva foi a de evitar que os atletas beneficiados pela Bolsa-Atleta possam vir a alegar a existência de vínculo trabalhista, ou até mesmo vínculo esportivo, entre eles e o Governo Federal.

O artigo 3º, II da Lei 10.891/04 trata da necessidade de o atleta estar em “plena atividade esportiva” para pleitear o recebimento da Bolsa-Atleta. Daí, seria possível entender que o atleta contundido perderia o direito ao benefício durante o período da sua inatividade. Contudo, em entrevista publicada no “site” “Folha On Line” no dia 10.7.2004, o assessor especial do Ministério do Esporte, Sr. Jaime Sautchuk, esclareceu que os casos de contusão de atletas beneficiados serão analisados individualmente pelo Ministério do Esporte e pelo Conselho Nacional do Esporte (“CNE”). De todo modo, o texto de lei não é claro ao definir os critérios objetivos que serão adotados pelos órgãos responsáveis pela avaliação dos atletas no julgamento das hipóteses de eventuais perdas ou negativas de concessão do benefício a atletas contundidos. Importante que a avaliação subjetiva de cada caso não gere tratamento desigual ou injusto aos atletas envolvidos.

O artigo 3º, VI da lei determina que o atleta, para concorrer à Bolsa-Atleta, deverá ter participado de competição de âmbito nacional e/ou no exterior no ano imediatamente anterior àquele em que tiver sido requerida a concessão do benefício. O artigo 3º, VII determina que o atleta deverá estar matriculado em instituição de ensino pública ou privada para receber a Bolsa-Atleta.

O artigo 13 prevê que os atletas beneficiados deverão prestar contas dos recursos recebidos, relegando para “regulamento” (artigo 13) a ser publicado a forma e os prazos para prestação de contas. Entendemos que esse regulamento deverá, ainda, indicar as sanções aos atletas que deixarem de prestar contas ou as prestarem de maneira irregular, de modo a evitar eventual recebimento/utilização indevida dos valores, sob pena de ineficácia da medida.

IV – Conclusão

A criação da Bolsa-Atleta é iniciativa que deve ser aplaudida. Parece-nos precisa a Justificação dada pelo Deputado Agnelo Queiroz quando da apresentação do Projeto ao Congresso Nacional. São realmente comuns os casos de atletas que abandonam a atividade esportiva diante da impossibilidade de proverem seu sustento com o esporte no começo de suas carreiras. O Governo age bem ao criar um incentivo para que os atletas possam prosseguir desenvolvendo a sua atividade a partir do recebimento da Bolsa-Atleta.

Mesmo assim, alguns pontos do texto legal que introduziu a Bolsa-Atleta devem ser criticados, visando ao seu aperfeiçoamento. A Lei 10.891/04 necessita de regulamentação, primordialmente, para que os atletas possam conhecer, na prática, todos os trâmites burocráticos que deverão ser atendidos para o efetivo recebimento dos recursos, bem como para a sua boa utilização, com a devida prestação de contas. Espera-se, ainda, que a regulamentação da Lei possa servir para corrigir algumas imprecisões terminológicas contidas na Lei 10.981, como no caso da utilização dos termos “patrocínio” e “vínculo”, assim como para neutralizar, na medida do possível, a adoção de critérios subjetivos para a escolha dos contemplados, evitando a utilização do benefício para fins políticos indesejáveis.

Finalmente, é preciso que fique claro que, ao contrário da impressão que inicialmente se poderia ter, a implementação da Bolsa Atleta não visa, primordialmente, ao fomento da prática esportiva na base da sociedade, como incentivo para o surgimento de novos atletas. O exame acurado da Lei 10.891/04, especialmente das normas que prevêem a concessão do benefício a atletas “ranqueados”, de “reconhecido destaque”, pelo “prazo de 1 ano” renovável caso o atleta ganhe medalha olímpica/paraolímpica” (artigos 5º e 11) leva à conclusão de que a Bolsa Atleta é também voltada ao auxílio a atletas já formados, atletas que estão na iminência de obter bons resultados esportivos, ou mesmo que já obtiveram esses resultados, até mesmo no caso dos atletas estudantis.

Assim, por mais elogiável que seja a criação de incentivos voltados ao atleta que tem potencial para a busca de bons resultados em competições de destaque, entendemos que criação da Bolsa-Atleta não supriu a falta, recorrente na nossa Política Nacional do Esporte, de medidas efetivas para o incentivo do esporte na base da sociedade, com o fomento para que cada vez mais jovens pratiquem modalidades esportivas e com todos os benefícios que, sabidamente, a prática esportiva gera para o cidadão, para a sociedade e, como resultado final, até mesmo para a obtenção de melhores resultados para o Brasil nas competições esportivas.
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1 A doutrina classifica patrocínio como sendo "um instrumento de comunicação que possibilita a ligação de uma marca ou de uma empresa a um acontecimento atrativo para um dado público" – GUSTAVO PIRES (1996): Desporto e política - Paradoxos e Realidades, Ed. O DESPORTO, Madeira, páginas 385-411.

2 PLÁCIDO SILVA , Vocabulário Jurídico – Rio de Janeiro, 2003, pág. 1486)

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* Advogados do escritório Pinheiro Neto Advogados

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

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