Os critérios de patenteabilidade e o PL 2.511/07
Patrícia Luciane de Carvalho*
A Lei da Propriedade Industrial tutela uma das espécies do Direito da Propriedade Intelectual, o qual possui fundamento na construção da ordem internacional, que foi absorvida pela ordem nacional, com destaque pela CF/88 (clique aqui). Desta forma, a proteção que se oferece à Propriedade Industrial encontra-se harmonizada com a orientação e a legislação comparada dos países, dentre eles os vinculados aos acordos da Organização Mundial do Comércio.
No Brasil, a CF/88 protege a propriedade como direito fundamental, imediato e progressivo. Trata-se de uma proteção dupla, ou seja, a ser executada quando o interessado busca a tutela do Poder Judiciário e de modo preventivo, no sentido de que o Estado deve preservar e motivar a proteção dos direitos vinculados à propriedade. Esta sistemática, aplicada à propriedade industrial, coloca a propriedade como direito individual e, ao mesmo tempo, coletivo, eis que absolutamente necessária ao desenvolvimento econômico e social de modo sustentável.
Neste aspecto, importante observar a complexa relação que há entre a esfera pública e a privada. Isto ocorre porque à esfera pública cabe a realização da finalidade pública, a exemplo do acesso a medicamentos como parte integrante do Direito à Saúde. Por sua vez, constata-se que é a iniciativa privada que mais desenvolve pesquisas e produtos fármacos; constata-se uma interdependência entre o público e o privado. Esta complexa relação se resolve, conforme determinação da CF/88, ao estabelecer a limitação da propriedade à função social. Desta forma, a propriedade, em que pese sua relevância, é um direito vinculado ao conceito de ordem e necessidade pública para o provimento de outros direitos de igual importância.
Reconhece-se, então, que quando a concessão de patente afronta a ordem ou necessidade pública, como no caso do acesso a medicamentos, a patente (propriedade) deve restabelecer-se para o atendimento da função social. É o caso da proibição de concessão de patentes e a decretação de licença compulsória. A opção por uma ou outra forma de equilíbrio deve se dar pela consideração não apenas da acessibilidade direta, mas, com maior precisão, do desenvolvimento sustentável, eis que este proporciona a acessibilidade e pela forma mais primorosa que é a da sustentabilidade/duradouro. Esta sistemática dá-se através do incentivo à iniciativa privada ao desenvolvimento de pesquisas e produtos, sabedores de que terão o resultado de seus trabalhos respeitados pela titularidade exclusiva, que lhes é fornecida pela concessão da patente.
Percebe-se, desta feita, que afora as responsabilidades inerentes do Estado para com o conjunto das finalidades públicas estabelecidas pela CF/88, tem-se a complementação necessária com as atividades da iniciativa privada. No caso fármaco tem-se que a participação na acessibilidade de medicamentos é maior por parte da iniciativa privada, deste monte, deve ser ela respeitada não apenas por conta do título de propriedade, mas também porque contribui sobremaneira com a realização das funções estatais em matéria de Direito à Saúde.
É de se concluir, então, que a patente é um direito declaratório vinculado ao Direito da Propriedade, e como tal deve ser protegida. Segundo, esta proteção confere acessibilidade a medicamentos, uma vez que por meio da proteção incentiva-se a pesquisa, o desenvolvimento e a comercialização em território nacional. Terceiro, o argumento de que a proibição da concessão de patentes sobre segundos usos médicos e polifórmicos não reduziu a atuação da indústria de fármacos em outros países, ignora o fato de que o Brasil é mercado consumidor dessas indústrias diante de seu diferencial que é a concessão de patentes sobre tais situações, desde que atendidos os requisitos legais.
Dos critérios de patenteabilidade
Independentemente de nomenclaturas como – segundo uso médico e formas polifórmicas -, são critérios de patenteabilidade a novidade, a criação humana e a utilidade industrial. Por novidade tem-se a atividade inventiva demonstrada com a inexistência do objeto no estado da natureza ou de alguma forma já divulgado. A criação humana é a demonstração de que a interferência do homem desenvolveu algo que era inexistente, diferenciando-se, desta forma, da descoberta. E utilidade industrial é a possibilidade de comercialização em razão do interesse de mercado. Alcançados todos estes requisitos, têm-se o permissivo legal para a concessão da patente.
Os países com a adoção do TRIPS possuem flexibilidade para legislarem a temática nos termos do interesse nacional, mesmo porque o TRIPS se apresenta apenas como patamar mínimo para a proteção dos direitos da propriedade intelectual. Todavia, o TRIPS veda exclusões legais de qualquer área da tecnologia do campo de proteção, com exceção do que ele próprio possibilita ser afastado do benefício, como normativa taxativa e não enumerativa: contrários à ordem pública ou a moralidade, método de diagnóstico, de tratamento e de cirurgia, animais que não sejam microorganismos, plantas que não sejam microorganismos (em que pese a proteção sobre as variedades) e processos essencialmente biológicos para produção de animais e de plantas, exceto processos não biológicos ou microbiológicos.
O enfoque para a exclusão, no presente caso do Projeto, é, então, os conceitos de ordem pública e moralidade. Estes conceitos dizem respeito ao que se tutela na ordem jurídica nacional, principalmente por meio da CF/88. Neste momento necessário relembrar que a concessão de patente, a função social e o Direito à Saúde são protegidos pela Constituição, merecendo todos o mesmo nível de respeitabilidade. O porém é que a função social, dentro do conceito de ordem e moralidade pública, limita a concessão de patentes, mas não de um modo abusivo e sim conforme tutela constitucional.
Do segundo uso médico
Tem-se como relevante o apego aos critérios de patenteabilidade e não a prática denominada "segundo uso médico". Para maior esclarecimento, este corresponde à proteção para uma nova aplicação médica de uma patente farmacêutica, a qual já é protegida pelos direitos da propriedade intelectual. Desta sistemática surge a controvérsia firmada, principalmente, entre o Instituto Nacional da Propriedade Industrial e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, acerca da constitucionalidade da patenteabilidade do segundo uso médico.
A controvérsia ocorre porque na prática o segundo uso médico permite que alterações em medicamentos registrados estendam a proteção aos mesmos, ou seja, em virtude de uma descoberta quanto à aplicação do medicamento ele adquire prolongamento do prazo para exploração exclusiva pelo seu titular. O prolongamento do prazo de exclusividade ao titular do medicamento referencial é um benefício, todavia, para os que necessitam da informação para aumento da concorrência ou para a fabricação de medicamento genérico o prolongamento corresponde a um distanciamento desses objetivos. São estes os argumentos preponderantes.
O INPI é o organismo responsável pela patenteabilidade de medicamentos, sem a qual não podem ser comercializados em território nacional. Este organismo concede a patenteabilidade de segundo uso médico. A justificativa do INPI é a de que toda e qualquer invenção, que atenda aos requisitos legais, dentre eles, o da aplicação comercial e da inovação, merecem a proteção. Não importa se a invenção seja sobre uma fórmula já registrada, mas sim que a invenção tenha nova aplicação. A visão jurídica do INPI é a de que a proteção salvaguarda o inovador e, desta forma, incentiva a atividade inventiva; indiretamente presta-se como motivação para a criação de medicamentos e mais indiretamente para a criação de soluções a doenças e para o desenvolvimento econômico e sustentável nacional.
É importante mencionar que desde a Lei da Propriedade Industrial de 1945 o Brasil adota o sistema chamado genérico de classificação, ou seja, tudo que não está expressamente mencionado na lei como não patenteável é passível de proteção. Assim foi com a lei 7.903 de 27 de agosto de 1945 (clique aqui), com a lei 5.772, de 21 de dezembro de 1971 (Código da Propriedade Industrial - clique aqui) e é assim com a lei 9.279, de 14 de maio de 1996 (Lei da Propriedade Industrial LPI - clique aqui). No antigo Código de Propriedade Industrial de 1945, em seu art. 183, há uma menção à "aplicação nova", na parte que se refere à Ação Penal e Diligências Preliminares. Isto significa que existia àquela época o conceito de patenteabilidade de aplicação ou uso novo, diante da existência de capítulo referente à Ação Penal destes usos.
Corresponde o segundo uso médico aos melhoramentos feitos sob a primeira concessão da patente farmacêutica. Neste sentido, o STF, já em 8 de julho de 1914, decidia que "(...) o que constitui característico do privilégio não é, por exemplo, o conjunto de materiais, drogas ou ingredientes empregados no preparo de certo produto, mas o meio ou processo especial de prepará-lo ou aplicá-lo a determinado fim, com resultado industrial".
No Direito comparado, há sob o mesmo assunto decisão do Enlagerd Board of Appeal do Escritório Europeu de patentes farmacêuticas G05/83 que considerou válidas as reivindicações sobre o segundo uso médico sobre patentes farmacêuticas. A segurança jurídica dos titulares, dos investidores e da própria sociedade não deve ser afrontada com a promoção da redução de interesses da iniciativa privada, eis que esta tendência prejudica a acessibilidade, o que diretamente atinge o desenvolvimento sustentável.
Dos polimórficos
Preliminarmente frise-se o mencionado quanto à importância dos critérios de patenteabilidade e quanto ao conteúdo da abordagem do que seja interesse público. Para adentrar-se ao esclarecimento dos polimorfos, necessário que se compreenda preliminarmente o contexto do desenvolvimento de um fármaco. Inicialmente tem-se que a ação sobre o consumidor depende da concentração plasmática ou de níveis adequados da substância nos tecidos, terapeuticamente efetivos, sem efeitos colaterais do tipo tóxicos, por um lapso temporal. Para tal, necessário que o responsável pelo desenvolvimento do fármaco tenha conhecimento absoluto de sua racional formulação.
O desenvolvimento dessa formulação envolve o conhecimento das propriedades físicas e químicas da ou das moléculas a comporem a constituição do fármaco (pré-formulação). Observe-se, por exemplo, que a forma de exteriorização do produto pode afetar as características da molécula em matéria de solubilidade, estabilidade, higroscopicidade, dentre outras.
Na fase da pré-formulação o produto inovador utiliza-se de pequenas quantidades de amostras, composto novo ou desconhecido, inexistência de dados sobre a substância e esta poderá ou não passar para a etapa seguinte do desenvolvimento. Diferentemente ocorre com o produto genérico ou similar, eis que a amostra é em quantidade, a substância é conhecida ou já utilizada, os dados estão na literatura e é uma tarefa relacionada com o desenvolvimento de uma nova formulação, a qual deve produzir os mesmos efeitos, com a mesma dosagem e dentro de um critério temporal identificado. Estes experimentos fazem-se necessários para garantir a estabilidade, segurança e eficácia do produto, obtendo-se uma biodisponibilidade adequada do produto relacionada à finalidade médica.
A forma mais usual de exteriorização do medicamento é em meio sólido – ou por meio de amorfos (átomos e moléculas distribuídos aleatoriamente) ou cristalinos (átomos e moléculas que formam estruturas tridimensionais). Os sólidos amorfos são obtidos por precipitação ou liofilização; possuem nível de energia mais elevado, em virtude da solubilidade e da velocidade de dissolução; e, produzem formas mais estáveis.
Estas estruturas podem ser formadas naturalmente ou por incidência da atividade humana (purificação), neste caso pode-se tratar-se de uma invenção, diferentemente da primeira que é uma descoberta, já que ocorre apenas uma acomodação de várias moléculas de uma substância em uma estrutura tridimensional específica durante a formação dos sólidos. Esta possibilidade de participação humana dá-se pelo desenvolvimento de certas condições climáticas referentes ao meio de cultura.
Necessário demonstrar que a forma polimórfica de uma determinada substância química difere da que existe no estado da técnica por meio de relatório descritivo completo das novas formas polimórficas, de acordo com as tecnologias inerentes a sua perfeita caracterização. Parece simples, mas é o suficiente, eis que não há conhecimento geral que torne possível a previsão das propriedades de um polimorfo; não há como prever, pelos conhecimentos comuns, quais são os novos efeitos técnicos obtidos, pois isto somente será conhecido quando as formas polimórficas forem identificadas, caracterizadas e testadas para os efeitos desejados. Uma forma polimórfica nova e provida de atividade inventiva, em princípio, não garante atividade inventiva à composição que a contenha, necessária à interferência do desenvolvimento humano.
Para melhor exemplificar o referido processo de obtenção do polimorfo necessário que se indique a concentração das diferentes soluções utilizadas que sejam críticas para o processo; os solventes; a taxa de resfriamento; o tempo; a temperatura dos diferentes estágios do processo; e, torque ou adição de sementes da forma cristalina desejada. Percebe-se que a expressão – forma polimórfica -, também não pode ser o foco das discussões, mas sim se o produto final alcança os critérios para a concessão da patente.
Conclusão
Opina-se pela permanência da concessão de patentes sobre o segundo uso médico e sobre as formas polimórficas quando estas alcançarem os requisitos para a referida concessão. Desta forma, está o Brasil a acompanhar a construção internacional e nacional dos direitos da Propriedade Intelectual. Bem como apresentar-se como mercado consumidor aos interessados na proteção de produtos decorrentes de segundo uso médico ou formas polimórficas. A acessibilidade de medicamentos não é impedida por nenhum daqueles produtos, mas sim pela ausência de políticas públicas, de parcerias entre Estado e empresas e pela execução das flexibilidades internacionais, tais como o licenciamento compulsório e o medicamento genérico.
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*Assessora jurídica da agência USP de inovação. Professora de Direito Internacional e de Propriedade Intelectual
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