Dançarinas e juristas
Luís Roberto Barroso*
Primeira razão: o refúgio concedido a Battisti foi um ato soberano do Estado brasileiro. Uma decisão política tomada pelo Ministro da Justiça e endossada pelo Presidente da República, autoridades competentes na matéria. Uma vez concedido o refúgio político, a questão em debate, seja ela qual for, transforma-se em questão de direitos humanos. É isso o que diz o direito internacional e foi o que afirmou a ONU, em documento enviado ao STF.
A segunda razão é que Cesare Battisti é provavelmente inocente das acusações de homicídio que lhe são feitas em um processo, no mínimo, muito esquisito. Usei o termo provavelmente porque não baseio minha afirmação em uma crença subjetiva, mas em fatos objetivos. Os atos da organização de esquerda a que pertencia foram praticados entre 1978 e 1979. Desbaratado o grupo e levados seus integrantes a julgamento, em 1981, Battisti não foi sequer acusado de homicídio ou de qualquer conduta violenta. Foi condenado, tão-somente, por participar de organização subversiva e por ações subversivas. Decisão transitada em julgado.
A terceira razão: o ato do Ministro da Justiça que concedeu refúgio político a Battisti é bem fundamentado e descreve, de maneira objetiva e incontestável – embora em linguagem gentil e diplomática – o que aconteceu na Itália nos anos de chumbo. Radicalismo de direita e de esquerda, acompanhado de reação brutal do Estado, com atos de truculência, legislação de exceção, prisões arbitrárias, maus-tratos e tortura. Muita tortura. Basta ler qualquer relatório da Anistia Internacional.
A quarta razão é que tudo sugere que Cesare Battisti foi vítima de uma armação. Como registrado acima, Battisti cumpria pena por participar de organização e de ações subversivas não violentas. Em 1981, evadiu-se da prisão e abrigou-se na França. Em 1982, após sua fuga, foi preso o líder da organização, Pietro Mutti. Tornou-se "arrependido" e, mediante delação premiada, acusou Battisti por homicídios dos quais ele próprio, Mutti, era acusado. Livrou-se com pena irrisória, após ter colocado toda a culpa no militante foragido. Em um segundo julgamento, Battisti foi condenado à revelia, sem jamais ter sequer se avistado com qualquer advogado que o defendesse. Sem surpresa, foi condenado à prisão perpétua. Trama simples. Culpado fabricado. Sem devido processo legal.
A quinta razão foi a reação da Itália a um gesto soberano e humanitário do Governo brasileiro. Aos gritos, dedo em riste, foram tantas as bravatas e grosserias que é impossível não sentir indignação cívica. Quando a França negou a extradição de Cesare Battisti, fizeram silêncio respeitoso. Mas, agora, um ex-Presidente da República e ex-Primeiro-Ministro italiano acusou o Ministro da Justiça do Brasil de "dizer umas cretinices"; e o Presidente Lula de "populista católico" e "cato-comunista". Outro líder italiano afirmou que o Brasil é conhecido "por suas dançarinas, não por seus juristas". Felizmente, temos as duas coisas. O Ministro da Defesa ameaçou acorrentar-se aos portões da Embaixada brasileira em Roma. A idéia é boa.
A sexta razão: os fatos pelos quais Cesare Battisti é acusado passaram-se há mais de 30 anos. No seu exílio, que incluiu quatorze anos na França, sob a proteção de François Miterrand, ele jamais se envolveu em qualquer ação anti-social. Pelo contrário, constituiu família, teve duas filhas, tornou-se um escritor reconhecido, publicado pela Editora Galimard. Mais de 300 intelectuais franceses pediram por ele ao Governo brasileiro. Em que serviria à causa da humanidade mandar esse homem para a prisão perpétua? Vingança política, e não justiça verdadeira, é o sentimento que move a perseguição retomada pelo Governo de Silvio Berlusconi.
Cesare Battisti é um homem afável, que fala italiano, francês e português fluentemente. Adora o Brasil. Foi vítima, aos vinte e poucos anos, da guerra fria e das ilusões oferecidas pelo comunismo. E, agora, virou troféu político da extrema direita italiana que se apossou do poder. É o prêmio de um embate ideológico fora de época. O filme é antigo e ruim. Não há razão para o Brasil fazer uma ponta nele. E como carrasco.
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*Professor titular de direito constitucional da UERJ. Advogado de Cesare Battisti perante o STF. Advogado do escritório Luís Roberto Barroso & Associados
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