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O refúgio da prepotência política (ou vice-versa)

Boa parte da “brava gente brasileira” acompanha, entre desalentada e estarrecida, o acelerado processo de decadência e decomposição moral e intelectual da nossa vida pública.

15/6/2009


O refúgio da prepotência política (ou vice-versa)

(De novo sobre o "caso Battisti")

Flávio Bauer Novelli*

Boa parte da "brava gente brasileira" acompanha, entre desalentada e estarrecida, o acelerado processo de decadência e decomposição moral e intelectual da nossa vida pública.

As causas, próximas e remotas, as origens, as dimensões e as consequências desse roteiro de degradação, compete ao futuro historiador e ao sociólogo, mas não ao jurista, identificá-las, mostrá-las e, se possível, indicar-lhes o tratamento adequado.

Nossa tarefa, neste breve escrito de ocasião, é bem mais modesta e se restringe, por isso, a alinhar umas poucas notas que, quando muito, só interessam ao próprio Direito. Assim, exclusivamente sob este ponto de vista, cabe observar que nesse quadro, sobre o fundo escuro da depravação política mais ou menos generalizada, hoje se contrapõe, sempre mais vivo e nítido, ainda outro detalhe escabroso: e este é que, a pouco e pouco, de mansinho, estamos, também nós, nos tornando um dos mais auspiciosos "refúgios" franqueados à pilantragem internacional, para o condigno descanso da sua impunidade.

Não há porquê deva provar o afirmado. Contudo, para citar, de safra mais recente, um só exemplo do que se vem de dizer, eis aí esse enredo surrealista do inexplicável "refúgio" propiciado ao notório "ativista" de esquerda, Cesare Battisti, irrecorrivelmente condenado na Itália, à prisão perpétua, pela participação no cometimento de "crimes graves de direito comum" (homicídios), e que, sucessivamente foragido, primeiro na França (de onde escapuliu) e depois no Brasil, teve afinal sua extradição solicitada pelo governo italiano, em processo pendente de julgamento no STF.

Acontece, porém, que enquanto o STF não decide a matéria, a autoridade administrativa, isto é, o ministro da justiça, "ignorando", naturalmente, que a situação do foragido Battisti, no território brasileiro se encontrava sub-judice na Corte Suprema, expediu-lhe a suspirada "carta de refugiado", que agora se exibe e invoca como "fato consumado" e, assim, como impedimento absoluto e definitivo à concessão judicial da extradição.

De fato, é o que, com espanto, cabe concluir da leitura das incríveis declarações dadas aos jornais pelo mesmo ministro da Justiça, e que, publicadas no dia 13 de maio passado (e, até hoje não desmentidas), transcrevem-se, a seguir, literalmente (os grifos, porém, são nossos):

"O ministro da Justiça, Tarso Genro, voltou a defender o refúgio político ao extremista italiano de esquerda Cesare Battisti e criticou duramente um suposto movimento no STF favorável à extradição do italiano. O ministro disse que a última palavra sobre o assunto é do Presidente da República e não do STF. A eventual extradição, decidida pelo Supremo, entraria em choque como o refúgio já concedido pelo governo."

"Seria perturbador se o Supremo mudasse a jurisprudência para atender à demanda de um país que não respeita as decisões do Brasil. Seria preocupante e perturbador, mas tenho certeza que não vai acontecer."

"Mais preocupante ainda, para o ministro, seria o STF incluir no acórdão uma expressão que obrigue o Presidente a acolher a decisão e extraditar Battisti ..................................................................

Tarso disse ainda que optou pela concessão do refúgio por convicção pessoal e não por afinidade política com Battisti."

Tais declarações, que nos eximimos de qualificar, vindas, que fossem, de um "homem da rua", de um não jurista, de alguém sem responsabilidades de governo, máxime quando tais responsabilidades são as de auxiliar direto do Presidente da República, ainda seriam, por razões óbvias, escusáveis.

Contudo, vindas logo de quem as fez (e não as desmentiu), raiam pelo absurdo, pela afronta e pela insídia, e, é claro, não podem causar senão espanto e repulsa. De fato, o que, na verdade, disse à imprensa, imperturbável, o ministro da Justiça, foi (agora, sem os eufemismos e as dissimulações protocolares), que o exercício regular e legítimo, pelo STF, de sua competência incontrastável de órgão máximo do sistema de controle jurisdicional das leis ou atos normativos federais ou estaduais e, assim, de guardião da CF/88 (clique aqui), poderia vir a ser "preocupante" e "perturbador"; ou, pior ainda: que uma decisão do STF, concessória da extradição de certo estrangeiro poderá, eventualmente, ofender, isto é, violar a competência política que, em tal matéria, se reserva ao Presidente da República, a quem cabe "a última palavra sobre o assunto" (ipsis litteris) (o grifo é nosso). E, para culminar, dispara a seguinte barbaridade: que o acórdão do STF, nesse caso, não poderia conter "uma expressão que obrigue o Presidente (da República) a acolher a decisão (sic) e extraditar Battisti." (grifamos)

A fiel transcrição das declarações do ministro da Justiça, e os sucintos comentários que a seu respeito ousamos tecer, dispensariam, a rigor, outras considerações.

Todavia, só para resumo e conclusão, permitimo-nos ponderar, ainda, que as teses sustentadas pelo ministro, podem até mesmo (concede-se) não abrigar a intenção, mas, na realidade, atentam contra o princípio fundamental da limitação e controle do poder, que é, no dizer do preclaro jurista Karl Larenz, o primeiro dos princípios do Estado constitucional de direito e, cuja realização incumbe, primordialmente, à justiça, em geral, e, em especial, ao órgão titular da jurisdição constitucional.

Seja como for, essas absolutamente inaceitáveis declarações, feitas – o que é mais de admirar – por uma autoridade, de público, e em pleno século XXI, nos põem diante de um penoso trilema.

De fato, não há como saber se a tese em que seu autor pretende apoiá-las representa apenas:

1) um simples retrocesso, por afinidade, à superada doutrina autoritária do constitucionalista alemão Carl Schmitt sobre a competência, não da Justiça, mas do Poder Executivo, isto é, do presidente da República, para a guarda e defesa da CF/88, se:

2) uma esforçada tentativa de ressuscitação da finada concepção, originariamente européia, da imunidade jurisdicional dos atos políticos ou de governo, ou, enfim:

3) uma utópica reinstauração tropical do "venerando" princípio "The King can do no wrong", naturalmente sob uma fórmula atualizada e adaptada ao paladar bolivariano: "O presidente é infalível: não pode cometer erros nem violar a lei."

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*Antigo Professor de Direito Constitucional e Teoria da Constituição em cursos de mestrado e doutorado da UERJ, da UFRJ e da UESA. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro





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