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O poder judiciário e as políticas públicas de fornecimento de medicamentos

O presente embate tem sido recorrente nos últimos tempos devido às situações concretas em que determinado cidadão socorre-se dos serviços públicos de saúde, necessitando de determinado medicamento para o seu tratamento médico e, então, se depara com a infeliz informação de que tal medicamento não está disponível no posto farmacêutico do Sistema Único de Saúde - SUS. Diante disso, recorre este cidadão ao Poder Judiciário para, via tutela jurisdicional, compelir o Município a fornecer a medicação necessária ao seu tratamento médico.

3/6/2009


O poder judiciário e as políticas públicas de fornecimento de medicamentos

Andressa Paula Senna*

"o Homem, e, de uma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade (...). Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas (...)"1

Introdução:

O presente embate tem sido recorrente nos últimos tempos devido às situações concretas em que determinado cidadão socorre-se dos serviços públicos de saúde, necessitando de determinado medicamento para o seu tratamento médico e, então, se depara com a infeliz informação de que tal medicamento não está disponível no posto farmacêutico do Sistema Único de Saúde - SUS. Diante disso, recorre este cidadão ao Poder Judiciário para, via tutela jurisdicional, compelir o Município a fornecer a medicação necessária ao seu tratamento médico.

A par do atual debate desta questão no STF, pretende-se aqui discutir a possibilidade do Poder Judiciário intervir nas políticas públicas de fornecimento de medicamentos, cotejando, de um lado, o direito fundamental à saúde e, de outro, o dever da Administração Pública de observar a lei orçamentária anual.

A tentativa é de, ao final da reflexão, vislumbrar-se alguma uma saída razoável a esse conflito de interesses.

I – O direito constitucional à saúde

A Constituição Republicana (clique aqui) assegura em seu artigo 6º, dentre os direitos sociais listados, o direito à saúde. Em seu artigo 30, a Carta Magna outorga aos Municípios a competência de prestar, em cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população. Por fim, o artigo 196 determina que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Como não poderia deixar de ser, a saúde, precioso bem jurídico que é, foi amplamente tutelada pela Constituição pátria, tendo sido garantido a todos o acesso universal e isonômico aos serviços públicos de proteção e recuperação da vida saudável. E isso jamais poderia ser diferente, uma vez que todos os sistemas jurídicos do mundo, não excluindo o brasileiro, têm caminhado cada vez mais intensamente no sentido de assegurar condições mínimas de existência a todos os cidadãos – e, por óbvio, não se poderia negar que o direito a boas condições de saúde seja algo elementar à existência humana.

Também não soa novidade que o direito público de manutenção ou a recuperação da saúde seja corolário do direito à dignidade humana. A dignidade humana, embora num primeiro momento pareça um conceito plástico, vago e impreciso, é a base primeira dos direitos humanos e fundamentais, representando a completa congregação do direito à vida, à saúde, à integridade física, à liberdade, à alimentação e ao respeito – direitos esses essenciais, irrenunciáveis, inalienáveis e prontos a evitar a degradação do homem.

Como se pode notar, é bastante evidente a preocupação do Constituinte em manter todos os cidadãos, ao menos, em um patamar mínimo de existência, afastando toda e qualquer chance de que o Estado relegue seus administrados a condições subumanas e humilhantes.

Pois bem. Se é certo que uma das maneiras do Estado preservar a existência digna de seus administrados é não impondo escorchantes tributações sobre os rendimentos e eliminando meios de intervenção estatal que reduzam a propriedade e os recursos materiais de sobrevivência, é certo também que deve o Estado adotar ações positivas de prestações de serviços de assistência social e, o que ora nos interessa, serviços de assistência à saúde.

Nesse contexto é que se conclui que o Estado deve prover seus administrados de todos os meios necessários ao que se chamou "existência mínima", nos quais indubitavelmente se inclui o fornecimento de medicamentos prescritos aos tratamentos médicos para a preservação da saúde ou a cura de doenças.

Uma vez que o propósito precípuo da Carta Magna é o de zelar pelas boas condições de vida de todos os cidadãos do Estado, não seria razoável argumentar-se (e certo seria nem mesmo cogitar) que o fornecimento de medicamentos poderia ser restrito a essa ou àquela espécie de doença. Isso apenas levaria a uma ordem odiosa de discriminação, violando frontalmente outros valores constitucionais como a igualdade, e viabilizaria a seguinte pavorosa situação: alguns cidadãos morreriam por falta do tratamento médico prescrito e o Estado, por seu turno, justificaria a sua omissão no fornecimento do medicamento no azar do cidadão que desenvolveu em seu organismo a doença "x" em vez da doença "y", alegando que apenas custeia o tratamento da doença "y". Isso seria lamentável, truculento e, claro, nitidamente inconstitucional.

Consoante os dispositivos constitucionais mencionados, a CF/88 cumpriu seu papel de organizador jurídico da sociedade e de seu povo e conferiu farta proteção jurídica ao direito à saúde, sem que tenha restringido este direito. A proteção é universal e garante a todos os cidadãos os medicamentos e tratamentos médicos prescritos pelos competentes profissionais da saúde.

A corroborar este entendimento, o próprio artigo 200 da Carta Constitucional elenca, de maneira não taxativa, uma série de atribuições outorgadas ao Sistema Único de Saúde, as quais denotam a sincera e consciente preocupação do Constituinte em salvaguardar a saúde pública. E as razões para essa preocupação são singelas, haja vista que a saúde é o esteio para o exercício de todos os demais direitos resguardados pela ordem jurídica e, também, o primeiro passo para o Estado assegurar a todos o exercício de uma vida digna.

Contudo, interpretando-se sistematicamente nossa ordem jurídica vigente, é necessário atentar ao fato de que em contraposição ao amplo amparo constitucional ao direito de saúde, é possível que outras disposições também constitucionais, que completem o sistema jurídico, organizando o Estado, conflitem com esta norma. Vejamos.

II – O orçamento anual

A Constituição Republicana estabelece, através do sistema tributário nacional, situações por meio das quais os entes políticos devem arrecadar receitas, as quais, por sua vez, são repartidas de acordo com as disposições constitucionais. O sistema de repartição de receitas concebido pela Constituição, como é cediço, é decorrência do pacto federativo e cooperativo que opera com a integração, inclusive financeira, dos entes da Federação, predominando o projeto de solidariedade entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.

Além disso, a Administração Pública deve possuir um controle rígido de realização das despesas, a fim de que a noção de Estado de Direito seja diretamente aplicada na atividade estatal, evitando-se que o dinheiro público seja gasto ao capricho das pessoas políticas. Para isso é que a Carta Magna instituiu o orçamento anual, que deve estimar receitas e programar despesas, obtendo-se a autorização legislativa pelo período de 1 (um) ano para os programas de arrecadação e a realização de despesas que foram submetidos à análise do Poder Legislativo.

Ou seja, o orçamento anual é uma forma engendrada pelo Constituinte de controlar e organizar a vida financeira do Estado-administrador. A Administração Pública, por seu turno, jungida que está ao princípio da legalidade, deverá, portanto, cumpri-la. Isso significa, a principio, a necessidade de que a despesa seja prevista na lei orçamentária para que seja realizada.

Em contrapartida, apesar do dever de cumprimento da lei orçamentária, é possível que o Estado não realize todas as despesas que foram previstas no orçamento aprovado. Do mesmo modo, é possível que, ao longo do exercício, surjam despesas não previstas na lei.

Para a primeira situação, em que o Estado não realizará as despesas previstas, não há o que se discutir, pois o dinheiro público será poupado – o orçamento autoriza a realização de certa despesa, mas não obriga esta realização. A celeuma surge apenas na segunda situação, em que a nova despesa não está contida na lei orçamentária aprovada. Como proceder?

A Carta Constitucional expressamente, em seu artigo 167, inciso II, veda "a realização de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais".

Isto é, em regra, as despesas que surjam no decurso do exercício em que já esteja em vigência a lei orçamentária aprovada no final do exercício anterior deverão aguardar a aprovação do novo orçamento anual, oportunidade em que o Poder Legislativo avaliará a possibilidade de incluí-la ou não na lista de despesas a serem realizadas.

III – A colisão entre o direito à saúde e o dever de observância da lei orçamentária

Como já se prenuncia, a problemática inicia-se quando o cidadão "Joãozinho", integrante típico da classe econômica baixa, precisa de determinado medicamento prescrito para o seu tratamento e, ao buscar pelos postos públicos municipais, é surpreendido com a informação de que tal medicação não está disponível, que seja por falta de estoque ou porque o posto não a fornece.

"Joaõzinho", indignado, bate às portas do Poder Judiciário, alegando seu direito à saúde, amparado da CF/88. O Procurador do Município, também amparado na Constituição Republicana, alega que o fornecimento deste medicamento a "Joãozinho" representaria uma despesa não autorizada na lei orçamentária aprovada, uma vez que denotaria despesa adicional que não havia sido prevista.

Neste caso, tem-se uma colisão de disposições constitucionais? Entendemos que há conflito.

Para a solução desse conflito, é importante situarmos a discussão de modo que se possa cotejá-la com os demais princípios e diretrizes constitucionais, lançando mão da interpretação sistemática.

O direito à saúde, como mencionado, é um direito social garantido constitucionalmente. A CF/88, em seu preâmbulo, já alerta, em suas primeiras orientações, que o Estado Democrático é destinado a assegurar os direitos sociais e individuais. Em seguida, no artigo 1º, inciso III, o Constituinte apregoou que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Ao que parece, isso por si só é o suficiente para se compreender que a saúde e o bem estar de todos é o primeiro dos objetivos do Estado Constitucional brasileiro. A fortalecer esse entendimento, prossegue o Constituinte, no artigo 4º, determinando a prevalência dos direitos humanos e, no artigo 5º, "caput", protegendo a inviolabilidade do direito à vida.

Disso se pode depreender que todos os demais as disposições estão a serviço dos direitos mais elementares à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana. Com efeito, deve-se dotar de esses direitos de máxima efetividade, diante da relevância que o próprio Constituinte lhes conferiu.

Nesse sentido, Canotilho e Vital Moreira2: "No fundo, a problemática da restrição dos direitos fundamentais supõe sempre um conflito positivo de normas constitucionais, a saber, entre uma norma consagradora de certo direito fundamental e outra norma consagradora de outro direito ou de diferente interesse constitucional. A regra da solução do conflito é da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos e da sua mínima restrição compatível com a salvaguarda adequada de outro direito fundamental ou outro interesse constitucional em causa."

Logo, o que se almeja na interpretação integrativa é a cessão recíproca de ambas as disposições conflitantes, de sorte que uma disposição não suprima a outra. Entretanto, é certo que os direitos basilares e fundamentais, assim como a saúde e a vida, quando confrontados com outros interesses constitucionais, tais como a ordem econômica, se necessário for, prevalecerão.

Seria incoerente com os objetivos da CF/88 e, ainda, desarrazoado que a vida e a saúde de "Joãozinho" sejam relegadas a um plano secundário para preservar-se a rigidez do orçamento do Poder Público.

Ao vedar a inclusão de despesas adicionais no orçamento aprovado, a CF/88 certamente não alvejou essas delicadas – e excepcionais - situações em que o que está em jogo é a saúde de um cidadão. Afinal, não se pode crer que a Constituição Cidadã autorizaria a ofensa ao princípio da dignidade humana, à vida, à integridade física e ao bem estar das pessoas, predominando-se a organização das contas públicas. Tal como salientado na citação de Kant, pessoas não são coisas e é preciso estabelecer-se um tratamento diferenciado entre estas e aquelas. Não seria condizente com os valores constitucionais que "Joãozinho" fosse obrigado a aguardar a lei orçamentária do exercício seguinte para obter seu medicamento. Não é excesso reiterar: é dever do Estado resguardar a saúde de todos.

Por fim, há de considerar que a realização dessa despesa adicional com o fornecimento de medicamento, não prevista no orçamento aprovado no final do exercício anterior, não torna a atividade estatal temerária. Afinal, essa despesa terá respaldo em ordem judicial, não havendo razão plausível para que a Administração Pública sofra cesura da fiscalização contábil, financeira e orçamentária exercida pelos Tribunais de Contas.

IV – A tripartição dos Poderes: há ingerência do Poder Judiciário neste caso?

O artigo 2º da CF/88 preconiza a separação de poderes como um dos pilares da República Federativa, tendo disposto que o Poder Judiciário, o Legislativo e o Executivo "são harmônicos e independentes entre si".

Como é cediço, a função típica da jurisdição é a de compor interesses controvertidos. Ao julgar as lides que lhe são apresentadas, o órgão julgador estatal assume completa imparcialidade diante dos sujeitos envolvidos no litígio. Essa é a função que a CF/88 atribuiu ao Poder Judiciário, um dos três Poderes do Estado de Direito: quando instado a solucionar os conflitos, deverá o órgão julgador fazê-lo com imparcialidade e com base nas normas do sistema jurídico vigente.

No presente caso, está-se diante de uma controvérsia entre o Estado-administrador e o cidadão "Joãozinho", cabendo ao Poder Judiciário buscar uma composição aos interesses contrapostos das partes litigantes.

O tema "O Estado em Juízo" costuma trazer à lume inúmeros imbróglios, uma vez que o ente estatal, por ser representante de interesses públicos, sempre dispõe de incontáveis prerrogativas e exceções. Contudo, não é porque se está diante de uma demanda que envolve na relação jurídica processual "cidadão, Estado-administrador e Estado-juiz" que se pode afirmar a esmo que o Poder Judiciário intervirá ilegitimamente na esfera de competência e atuação do Poder Executivo, acaso o Estado-administrador não logre êxito na demanda. Não obstante se esteja lúcido acerca das prerrogativas do Estado-administrador na relação processual, é evidente que essas prerrogativas não lhe conferem parcialidade do Juízo.

Se se pode, com serenidade, aduzir que cada Poder possui sua área de atuação e suas respectivas atribuições devidamente demarcadas pela Constituição Republicana, também se pode afirmar que o Poder Judiciário, de outro lado, é o responsável por zelar da segurança jurídica e da constitucionalidade do sistema, devendo restabelecer a ordem e a justiça.

Nesse sentido, é possível concluir que, dado que o Estado-administrador não cumpriu por si a função de fornecer os medicamentos necessários a todos, concretizando o acesso universal à saúde nos termos previstos pela Carta Magna, é dever do Poder Judiciário, nos limites da discussão travada no processo (em observância ao princípio da inércia), se assim entender necessário, impor meios coercitivos ao cumprimento desta obrigação.

O Estado-juiz não estaria a impor novas competências ao Estado-administrador, mas sim apenas estaria, neste caso, determinando que o Estado-administrador cumpra suas devidas competências nos moldes constitucionais. Não se vislumbra nesta situação nenhum risco ao pacto federativo, pois, ao revés, o Poder Judiciário, fiscal que é do ordenamento jurídico, estaria atuando no exato limite de suas competências, ordenando que o Poder Executivo efetive seu dever constitucional de gerir a saúde pública.

V- Conclusão:

A conclusão é a de que seria juridicamente admissível o Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo que forneça os medicamentos necessários ao tratamento médico da parte litigante, uma vez que, assim, o Estado-juiz estaria exigindo que a Administração Pública suprisse sua omissão no cumprimento do dever constitucional de prover assistência à saúde de todos os cidadãos. E ainda que tal situação concreta possa implicar despesa adicional não prevista no orçamento anual aprovado, este seria um meio de tornar efetiva a dignidade da pessoa humana, assim como o direito à vida, ao bem estar, à integridade física e à saúde, firmando que o interesse econômico, apesar de sua importância, não é a prioridade da Constituição Republicana e Cidadã.

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1 Kant, citado em Ingo W. Sarlet. Dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Livraria do Advogado, 2006.

2 José Carlos Vieira de Andrade. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Livraria Almedina. 1987.

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*Advogada





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