Poderes da defesa na investigação e investigação pela defesa1
José Barcelos de Souza*
Poderes investigatórios da defesa com vistas ao processo penal – Investigação pela defesa e investigação pelo Ministério Público: convergências e divergências – Como se mostram os poderes investigatórios de uma e de outro no Código de Processo Penal – Limites das investigações – Conveniência de sua regulamentação legal – Valor probante dos elementos coligidos – A coleta de prova testemunhal através de justificação avulsa – Natureza jurídica da justificação – Sua utilidade no processo penal – Competência e procedimento.
“Em primeiro lugar, porque todo mundo pode investigar”. Foi o que coloquei em um artigo, para salientar o poder de investigação do Ministério Público. E dizia que “independentemente de permissão legal para fazê-lo, a imprensa pode e investiga, e assim também o particular”.
E acrescentava: De sua vez, até porque gozam para tanto de autorização legal em certos casos, o Legislativo pode, o Ministério Público pode (especialmente quanto a infrações penais praticadas por membros da instituição), e até mesmo o judiciário também pode. Todo mundo pode! Inclusive as companhias de seguros.
Em nosso direito o juiz, com efeito, pode e faz. Não só em certos casos particulares, como os de crimes de magistrados. Faz até inquérito, o chamado inquérito judicial, de que trata o Código de Processo Penal.
Muito mais do que isso, no procedimento sumário do art. 531 do Código de Processo, rotina dos juizes em todo o País, depois incrementada com a abrangência, pela agora revogada Lei 4.611/65, dos homicídios e das lesões corporais culposas, feijão-com-arroz da Justiça Criminal, o insigne José Frederico Marques via atos investigatórios praticados pelo juiz.
Isso só deixou de vigorar cerca de duas décadas atrás, por inconstitucionalidade não da atuação do juiz, mas, sim, do procedimento de ofício. A lembrança do fato serve não só para mostrar que o interesse de investigar pode ser, de um modo ou de outro, de qualquer dos principais partícipes do processo, mas também, e principalmente, para salientar que uma investigação pode ter diferentes formas e aspectos.
E apontava eu como principal fundamento de o Ministério Público poder investigar o mesmo que levava o particular a fazê-lo. Dizia, à guisa de argumentação:
“Ora, o particular investiga, para tanto não carecendo de autorização legal, exatamente no interesse de promover a ação penal, de assistir o Ministério Público, ou de fazer sua própria defesa. E continuava:
Eis aí o principal fundamento do poder de investigar do Ministério Público: o seu poder-dever, privativo e indeclinável, de promover a ação penal pública. Nem precisaria ter atribuição legal para promover diretamente atos de investigação, o que até poderia implicar a transformação de uma faculdade em dever2”.
Essas investigações particulares, de um e outro, entretanto, exatamente por não serem oficiais e não estarem disciplinadas por lei, especialmente no que diz respeito à prova testemunhal, padecem de muitas dificuldades, como ainda se verá.
Desnecessário seria esclarecer que, no que diz respeito ao Ministério Público, não estamos nos referindo àqueles casos excepcionais em que a investigação é oficial, como na hipótese de infração penal atribuída a membro da Instituição ou naquela outra em que, excepcionalmente, em caráter supletivo, a investigação se realizar como modalidade de controle externo da atividade policial, se a tanto autorizada por lei orgânica.
Estamos cuidando, é bem de ver, de investigações para a generalidade dos casos.
Entre nós é incomum falar em investigação pela defesa, embora muitas vezes ela tenha de correr atrás do fato e da prova. E foi assim agindo que um acusado conseguiu descobrir testemunha ocular, que passara despercebida à polícia, e sem cujo preciso depoimento não lhe teria sido concedida uma absolvição sumária. Com rol de testemunhas completo e já apresentado, a estratégia utilizada foi o uso do poder de substituir testemunha, hoje mais bem acolhido que no passado, diante do art. 5º, inc. LV, que assegura aos acusados em geral a ampla defesa, com todos os meios recursos a ela inerentes.
Longe já vão os tempos em que o acusado era tido por objeto do processo.
Por isso mesmo, a questão da investigação pela defesa é matéria que está a merecer atenção do legislador, a exemplo do que já ocorre em outros países, visto que o defensor é, na feliz expressão do saudoso Prof. Raymundo Cândido, antigo catedrático da UFMG que presidiu a seção mineira da Ordem dos Advogados do Brasil, “o representante de um órgão público: o órgão da defesa"3.
Com efeito, conquanto a investigação particular por suspeita da prática de crime seja de há muito praticada nos Estados Unidos, contratada por advogados com vistas à obtenção de elementos que possam ser de utilidade a uma defesa futura, ela é para nós, como de resto para países da América Latina, providência desconhecida ou desusada. Assim também era na Europa, onde sobressaia a instrução provisória a cargo de juiz instrutor. Hoje, entretanto, na Itália a Lei 479, de 1999, regulamentou a investigação pela defesa, e a Lei 397, de 2000, a ela deu estruturação.
Curioso notar que o pensamento da conveniência da instituição da investigação também pela defesa foi, na Itália, fruto da verificação de que o Ministério Público, a quem fora passada a supervisão da investigação, conservava uma tendência natural de parte, posto devesse em tese também colher elementos do interesse da defesa. Também nos Estados Unidos, tem-se notado a tendência do Ministério Público de agir na investigação com vistas a sua posição futura no processo.
Foi tudo o que observou o Prof. Antônio Scarance Fernandes, em sua tese Procedimento no processo penal: noções, perspectivas simplificadoras e os rumos do direito brasileiro, defendida na Faculdade de Direito da USP no fim de junho do corrente ano (acredito que ainda não publicada, visto que ainda muito recente), com que conquistou cátedra de Direito Processual Penal da conceituada faculdade do Largo de São Francisco. Daí, dizendo mais que “a experiência está evidenciando que este órgão {o Ministério Público}, apesar de instado a agir também em favor do investigado, atua, em regra, na sentido de evidenciar a acusação que pretende formular”, conclui que “Há, por isso, prejuízo ao suspeito, devendo-se abrir, então, oportunidade para que também ele possa investigar, como sucedeu recentemente na Itália"4.
O que muito pesa, porém, em favor de uma regulamentação já, entre nós, de direitos investigatórios da defesa, é o fato de que aqui o Ministério Público tem investigado, mas, para acusar, sem qualquer comprometimento, por força de lei, com os interesses da defesa, e por isso mesmo completamente à revelia dela, à qual não é garantida sequer a faculdade de requerer diligências, diferentemente do que ocorre no inquérito policial.
Se vier, então, a ser aprovado o projeto do inquérito policial (Projeto 4207/01), que determina no art. 7º que “os elementos informativos deverão ser colhidos na medida estritamente necessária à formação do convencimento do Ministério Público ou do querelante sobre a viabilidade da acusação, bem como à efetivação de medidas cautelares, pessoais e reais, de competência exclusiva do juiz"5, haverá necessidade de que se concedam à defesa meios necessários para o completo esclarecimento do fato.
Como também excelentemente escreveu Antonio Magalhães Gomes Filho, em seu Direito à prova no processo penal6, considerando que também há provas que se formam extra-processualmente, e que o direito à prova também deve ser reconhecido antes ou fora do processo, até como meio de se obter elementos que autorizem a persecução, ou possam evitá-la, aduz, com toda razão, que “partindo dessa constatação, parece possível identificar, num primeiro momento, um direito à investigação, pois a faculdade de procurar e descobrir provas é condição indispensável para que se possa exercer o direito à prova”.
Entre nós, as investigações particulares encontram certas limitações, e as da defesa são semelhantes às do Ministério Público. Mesmo porque, ambas não se acham legalmente disciplinadas.
Dificuldades e limitações, em geral, de natureza operacional.
Assim é que, se é inegável que de modo geral podem investigar, isso não significa, entretanto, que o Parquet e o particular poderão fazê-lo mediante inquérito policial – função da polícia, como o próprio nome indica, e que compreende poderes importantes que eles não têm.
Assim, o poder de proceder a busca e apreensão – que, além de servir para a coleta de outras provas mencionadas no art. 240 do Código de Processo Penal, se destina ainda a “colher qualquer elemento de convicção”, pelo que cabe também, nas palavras de Cleunice Valentim Bastos Pitombo, para “descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do indiciado ou acusado"7.
E, o que é de muito relevo, falta-lhes o poder de mandar intimar testemunhas. O que não significa que nada impede possam convidá-las a dar-lhes seus depoimentos.
O fato de caber à polícia as investigações penais até que não seria obstáculo a que outro órgão fosse autorizado a fazê-las, também oficialmente, a menos que para isso tivesse a polícia exclusividade, que não lhe foi dada pela Constituição, como resulta do § 4º do art. 448.
A incumbência de investigações penais que a Constituição deixou com a polícia, entretanto, leva ao entendimento de que, sem outorga legal expressa – exatamente como de há muito faz o Código de Processo Penal no parágrafo único do artigo 4º – não cabe a outras autoridades proceder oficialmente a investigações penais9.
Não estão, pois, autorizados a proceder a um inquérito oficial, como que se de inquérito policial se tratasse.
O que lhes é dado realizar é uma investigação particular, um inquérito próprio não oficial, por isso mesmo com certas limitações de agir.
Assim é que não pode o Ministério Público, exceto nos casos já apontados, intimar testemunhas a comparecer sob as penas da lei, diferentemente do que ocorre num inquérito civil que tiver instaurado. Em matéria penal, contudo, fora as exceções mencionadas, quem vier a ser intimado, ou melhor, convidado para “depor no Ministério Público”, não é obrigado a comparecer. Assim também, se convidado a depor no escritório do advogado.
Como suprir, então, essas limitações, que são também da defesa?
O Ministério Público o fará usando da faculdade, hoje já na Carta, de ”requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial” (CF, art. 129, VIII); a defesa, as requerendo. E aqui já se vê a posição bem mais vantajosa do órgão oficial, visto que, diferentemente daquela, não requer, mas requisita.
Esse poder de requisição é poder investigativo que o Código já outorgava ao Ministério Público, mas não também à defesa, no que lhe pudesse ser aplicável.
Trata-se de um excelente exemplo de investigação direta, que o próprio e velho Código de Processo Penal autoriza, ao preceituar no art. 47 que, ”Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los”.
Acredito que uma futura regulamentação legal do poder de investigar da defesa por certo não deixará de incluir dispositivo semelhante àquele.
É claro que nada impede, repita-se, que convidem a testemunha a comparecer e se inteirem do que poderia ela informar e colham declarações suas assinadas.
Mas é aí que o Ministério Público leva uma grande vantagem, não escrita na lei. Enquanto instala cartório criminal, nomeia escrivão, credencia oficial ministerial, opera com a ajuda de assistente, tem em alguns lugares à sua disposição pessoal da Polícia Militar, Civil e o escambau, a defesa não conta com nada disso, nem com investigadores próprios, que só grandes escritórios poderiam manter. Nem encontram serviços de investigação especializada para contratar, à semelhança do que podem fazer escritórios americanos.
Entretanto, reduzir a escrito o depoimento sem a presença da outra parte, geraria uma certa desconfiança quanto ao elemento de convicção, tanto que, embora deva futuramente passar pelo crivo do contraditório, tem sido quase sempre repelido para servir de base para denúncia, a meu ver até com excessivo rigor, por isso que, exceto no caso de acusação por crime de responsabilidade de funcionário público e algum outro expressamente mencionado pela lei, em que pese a opiniões e julgados em contrário, não há necessidade de produção inicial de prova10.
Numa regulamentação futura até que se poderia prescrever que, sempre que possível, seria recomendável a elaboração do documento na presença das partes interessadas.
A defesa, dizia, sempre luta ainda com mais dificuldades.
Veja-se, por exemplo, o poder de requerer ao juiz que determine a interceptação de comunicações telefônicas. Têm-no a autoridade policial na investigação criminal, e nesta e também ainda na instrução processual penal, o Ministério Público.
E a defesa? Nada. Mas o jeitinho brasileiro – em geral um meio de certo modo esperto, para não dizer fraudulento, mas aqui de inteira legalidade – pode resolver. Se é certo que a medida pode ser adotada oficiosamente pelo juiz, como a lei prevê, a defesa então poderá representar a ele para que a determine de ofício. Ou mesmo, até requerê-la, a despeito da omissão da lei, vez que, como é sabido, e Pontes de Miranda lembrou nos prolegômenos de seus comentários ao Código de Processo Civil, é princípio geral de direito poder a parte requerer aquilo que o juiz pode conceder de ofício.
Por outro lado, o que a doutrina estrangeira por vezes chama de investigação corporal (que consistiria na investigação do próprio corpo, como, por exemplo, a intervenção para o exame da quantidade de álcool no sangue, pelo que se distinguiria do simples registro corporal, ou seja, a procura de objetos ocultos no corpo11), não pode ser feita na atualidade – nem mesmo pela polícia ou pela justiça –, diante da garantia constitucional de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Constituição, art. 5º, inc, II), a não ser com a livre aquiescência do investigado. Sem a concordância deste, a coleta de urina para exame toxicológico, comum em meios esportivos, não poderia ser exigida. Posto medida geralmente aceita sem qualquer resistência, até mesmo ao uso do alcoômetro, o popular “bafômetro”, o investigado não poderá ser forçado. Aliás, nem mesmo a acatar uma ordem de fazer um quatro com as pernas12.
A regra da não auto-incriminação, ou direito de permanecer silente, não seria, a meu ver, impeditiva do estabelecimento de uma disciplina legal (que, de certo modo, segundo alguns estudiosos até faz falta, já que aqui, diferentemente do processo civil, há interesse público envolvido), certo que aquele regra é prescrita para o interrogatório, que é um meio de defesa, não exatamente de prova. Mas regulamentação legal que não poderia, evidentemente, chegar nem perto do que prescrevem legislações de alguns paises europeus – Alemanha, Inglaterra, Espanha, Portugal – , diante de garantias outras, que, felizmente, existem em nossa Constituição cidadã13.
Os meios da defesa são mais difíceis, dizia. E as dificuldades começam, por artes de autoridades judiciárias prepotentes, com a sonegação à defesa do conhecimento do que se apurou em inquérito policial já em juízo, com a desculpa de sigilo, ignorando o juiz que sigilo não prevalece para a defesa.
Daí por que o em. desembargador Djalma Genofre, do Tribunal de Justiça de São Paulo, concedeu liminar em mandado de segurança para assegurar a advogado o direito de extrair cópia dos autos de inquérito policial que corria em sigilo14.
A ilegal proibição de exame de autos de inquérito policial em secretaria da Vara, em detrimento dos direitos do indiciado, surgiu como uma epidemia na Eg. Justiça Federal, já agora aparecendo os efeitos de reações de defensores.
E recente decisão unânime da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus n. 82.354-8-PR, relator o preclaro Ministro Sepúlveda Pertence, realçou o ponto, dizendo que a oponibilidade do sigilo ao defensor constituído “esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º . LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações"15.
Dentre os meios de que pode valer-se a defesa para evidenciar o resultado de suas investigações, está o de pedir o fornecimento de um documento – declaração, atestado, etc, sabido que documentos podem sempre ser junto aos autos, exceto diante de proibição expressa, como é o exemplo do art. 406 do Código de Processo Penal, referente à fase da pronúncia.
Fora o direito de requerer provas, e isso já na fase do inquérito (art. 14 do CPP), depois, e especialmente, na tríduo de defesa prévia e na contrariedade do libelo, em alguns casos em alegações finais, a produção direta de prova pela defesa se restringe à juntada de documentos aos autos.
A juntada não deve em regra ser indeferida, o que poderá constituir cerceamento de defesa, a induzir nulidade. Isso decorre não só do direito constitucional a ampla defesa, mas também do próprio Código, explícito em preceituar que poderão ser juntos a qualquer tempo, exceto proibição expressa. E mais: permite a produção em plenário do Júri, desde que com a comunicação à parte contrária com a antecedência de três dias. E, como foi dito, em geral pode, diferentemente do sistema do processo civil, ser apresentada a qualquer tempo. Torna-se, assim, o grande instrumento das investigações da defesa e do Ministério Público.
Rigor extremo se tem verificado também diante da presença nos autos de depoimento colhido unilateralmente pelo Ministério Público16 (e por isso mesmo não seria de estranhar venha a mesma coisa a ocorrer com a defesa, a despeito das garantias constitucionais), a ponto de se determinar seu desentranhamento, como se de prova ilícita se tratasse.
Muito pior que isso, entretanto, é o próprio Judiciário cuidar da investigação e colher prova em caso de infração penal imputada a magistrado, para ele mesmo depois julgar, se essa prova que colheu já não tiver servido para um arquivamento.
E aqui está mais uma razão para que o Ministério Público investigue, e não só ele o faça, mas também a vítima do crime ou parentes dela, o que convém seja incluído numa lei a respeito da investigação pela defesa. Tanto mais quanto a regra do foro privilegiado é, na prática, pela distância do lugar da infração, fator de esvaziamento de uma completa investigação.
Como vinha dizendo, isso, eminentes colegas, de mandar desentranhar prova, é muito sério e exige cuidado.
Meio século atrás já ensinava o saudoso Prof. Lourival Vilela Viana, em tese para a cátedra na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, que “não havendo, porém, nenhuma proibição legal expressa, aplica-se o princípio da liberdade de prova"17.
E cumpre ter presente que, nem mesmo a própria prova tida em tese por ilícita será sempre desconsiderada, como é o caso de certas provas que beneficiam a defesa. Assim penso, não porque espose o entendimento de que, se for em benefício da defesa, a prova ilícita poderá ser aproveitada. Por esse motivo, não. É que, além de trazer uma desigualdade para as partes – um querelante principalmente –, trata-se de procedimento perigoso, por isso que, como disse Antônio Carlos Barandier, a propósito das ilícitas por derivação, “A posição favorável incentivaria a ilicitude"18.
Aceitável é o aproveitamento em favor da defesa da prova ilícita, se necessária e obtida pelo próprio interessado, como por exemplo a de gravação de conversação telefônica em caso de extorsão, porque ela deixará de ser ilícita por se tratar, na precisa expressão da professora Ada, em magnífico trabalho, de prova obtida em legítima defesa19.
E eis aí uma relevante razão em prol da investigação pela defesa, com uma adequada regulamentação. Certas provas não devem ser obtidas por iniciativa da polícia. Nem do Ministério Público. Mas sempre diretamente pela defesa, ou de acordo com ela, em legítima defesa.
É preciso, pois, repito, muito cuidado em mandar desentranhar documento.
O Código de Processo Penal, por sinal, prescreve a medida no caso de incidente de falsidade. Reconhecida a falsidade por decisão irrecorrível, o juiz mandará desentranhar o documento, mas isso para mandar também remetê-lo ao Ministério Publico, com os autos do processo do incidente.
Volto, então, ao que vinha dizendo, no sentido de que o documento é o grande instrumento de que pode se valer a defesa para materializar suas investigações.
“É documento” – escreveu João de Oliveira Filho, no seu “Código de Processo Penal de Minas Gerais - Notas, p. 226 – “todo papel onde se ache algum manuscripto, desenho, gravura ou impressão”.
Utilizei-os certa feita em um habeas corpus para trancamento de processo, visto que os me trouxera colega parente do paciente. Acredito que foram importantes para a comprovação da inexistência daquilo que o argentino Antonio Dellepiane chamou de capacidade para delinqüir. Mas foram documentos de peso, atestados fornecidos por autoridades e personalidades diversas, inclusive bispo católico. De outro modo, não os apresentaria, atulhando os autos à toa.
Se se preferir um documento por instrumento público, sobre fato relevante, a escritura pública pode ser utilizada, com a vantagem de demonstrar a falta de coação. O Ministério Público não necessitaria de tanto trabalho. Bastar-lhe-ia requisitar a diligência à polícia.
Agora, para encerrar, vou me ater a um documento muito especial e que será, no caso de necessidade ou conveniência de uma prova obtida contraditoriamente, o documento por excelência.
Trata-se da justificação avulsa, um meio de constituição de prova – apenas da prova testemunhal, esclareça-se – existente em nosso direito processual.
Como explica o art. 863 do Código de Processo Civil, lei que dela cuida, “A justificação consistirá na inquirição de testemunhas sobre os fatos alegados, sendo facultado ao requerente juntar documentos”.
Para tanto, articulam-se numa petição os fatos cuja prova se deseja fazer com testemunhas que serão inquiridas em juízo, conforme procedimento disciplinado no Código de Processo Civil, arts. 861 a 866, aplicados supletivamente. Claro, no caso perante o juiz criminal, e com citação da parte contrária e do Ministério Público (se não for ele próprio a parte contrária).
Foi mais usada no passado, numa época em que o sumário de culpa se fazia sem inquirição de testemunhas de defesa, o que só poderia ter vez no plenário. Então, para melhor prova visando à impronúncia, costumava-se lançar mão da justificação.
Ainda hoje o Código de Processo Penal se refere a ela no art. 423, ao prescrever, repetindo a antiga Lei do Júri, que “As justificações e perícias requeridas pelas partes serão determinadas somente pelo presidente do tribunal, com intimação dos interessados, ou pelo juiz a quem couber o preparo do processo até o julgamento”, vendo-se aqui uma exceção expressa à regra da livre distribuição. A livre distribuição, todavia, deve prevalecer como regra geral para outros casos de justificação avulsa, como medida de jurisdição voluntária.
Autores estranharam o mencionado dispositivo legal, vendo nele inutilidade, à consideração de que hoje também testemunhas de defesa podem ser inquiridas na instrução criminal, e é certo que podem ainda ser arroladas para deporem em plenário do Júri. Talvez por isso não tenha aquele dispositivo sido repetido no atual projeto do Júri. Ou talvez para não sujeitar a justificação à competência do juiz presidente do Tribunal do Júri. O que. entretanto, não impedirá continue ela sendo utilizada também naquele mesmo caso.
Pois aquela norma legal ainda guarda sua utilidade. Suponha-se, por exemplo, que uma testemunha importantíssima venha, através de investigação da defesa, a ser descoberta só depois da fase da contrariedade do libelo, em que, por sinal, não se arrolou testemunha alguma. Como aqui há prazo certo para quase tudo, não podendo a testemunha ser apresentada na hora, a salvação vai correr por conta da prestimosa justificação20.
Como se vê, não se trata de medida cautelar de antecipação de prova, como a considera o Código de Processo Civil, mas de procedimento de formação de documento probatório.
Aparece bem nítida essa sua finalidade própria de formação de prova, na justificação para instruir queixa ou denúncia nos crimes de responsabilidade de funcionário público, a que faz alusão o art. 513 do Código de Processo Penal.
Aí faz as vezes de inquérito policial e de outros documentos. Desse modo, a prova particularmente apurada não será instrumentalizada pelo próprio interessado, mas, então, em um procedimento judicial, com chamamento da parte interessada, com o que certamente terá uma melhor aceitação nesse caso especial de exigência de prova.
Pode a justificação ser de utilização em procedimentos diversos, não devendo em regra ser a petição indeferida por motivação inadequada, como a de tratar-se de feito do juízo cível. Posto tradicionalmente aceita pela doutrina e pela jurisprudência, se vier a ser indeferida o recurso cabível será o de apelação.
Até mesmo para o processo do habeas corpus há de admitir-se, posto rara, uma instrução com inquirição de testemunhas e, talvez preferencialmente, uma justificação avulsa, quando não para evitar uma possível estranheza maior do juiz.
É, porém, no tocante à revisão criminal que tem freqüente aplicação. Tanto que se afigurou a José Frederico Marques, “ser a justificação instrumento específico de produção probatória, para instruir ação ou pedido”. E daí fazer, quanto à descoberta de novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena, a seguinte afirmação, que não nos parece exata: “Se essas novas provas consistirem em depoimentos testemunhais, só através de justificação poderão ser produzidas” (José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, v. II, 1961, Forense, 1961, p. 320).
É encontradiço, aliás, esse entendimento, que urge seja desmitificado, de que só através da justificação avulsa poderão ser produzidas as novas provas para a revisão criminal.
Mais exato é dizer que “a prova nova pode produzir-se em justificação prévia ou no próprio curso do processo da revisão”, como fazem Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Júnior e Antonio Scarance Fernandes, em Recursos no Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 321.
Em verdade, ainda que no silêncio da lei, não se poderá excluir a produção da prova diretamente nos autos da revisão, desde que explicitados os fatos justificandos no pedido revisional, com a indicação do rol de testemunhas. Então, ou o próprio relator procederá à inquirição das testemunhas, reduzindo-se a termo os depoimentos, ou expedirá carta de ordem para sua inquirição no primeiro grau jurisdicional.
No processo civil, aliás, há casos, previstos em lei, de audiência de justificação, tomado aqui o vocábulo no seu sentido próprio de comprovação21.
Se se preferir desde logo instruir a petição inicial com a justificação avulsa, e como a medida no caso não é incidente, a competência se determinará pela livre distribuição a juiz do primeiro grau jurisdicional, nada importando o objetivo de instruir pedido revisional. A justificação, no caso, não é cautelar, mas simples procedimento de jurisdição voluntária ou graciosa.
Cumpre observar que, se o interessado pretender uma antecipação de depoimento, não precisa partir para uma justificação22.
Permite o Código de Processo Penal que o juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tome antecipadamente o depoimento de testemunha que houver de ausentar-se ou quando haja risco de não mais poder obtê-lo ao tempo da instrução criminal (art. 225).
Não há formalidade, de modo que bastará ao juiz simplesmente antecipar o ato processual, reduzindo-se a termo o depoimento da testemunha. Isso não sendo possível, há se seguir-se o procedimento do Código de Processo Civil, arts. 846 a 851, em aplicação subsidiária23.
É o que me pareceu interessante trazer para essa seleta audiência, lembrando vários aspectos do tema, sem maior profundidade, tudo, por isso mesmo, mais para estimular o debate.
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1Notas para palestra, com aquele tema, nas IV Jornadas Brasileiras de Direito Processual Penal, sobre Investigação Criminal: críticas e propostas, promoção do Instituto Brasileiro de Direito Processual a realizar-se em Guarujá, São Paulo, de 6 a 9 de novembro de 2004.
2Artigo Investigação direta pelo Ministério Público, no “O Sino do Samuel”, jornal da Faculdade de Direito da UFMG, n. 77, Setembro de 2004, p. 5, e Boletim do Instituto de Ciências Penais, de Belo Horizonte, n. 49, agosto de 2004, e comentário a acórdão na Revista do Instituto de Ciências Criminais, São Paulo, v. 44, Julho-set. de 2003.
3Da representação no processo penal, Belo Horizonte, 1955, p. 183.
4P. 71/92, 89/91 e conclusão n. 11, p. 367.
5Com o entendimento de que o inquérito é um instrumento para a apuração da verdade, criticamos o citado dispositivo do projeto em trabalho publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 38, 2002, p.257.
6Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997, p. 86.
7Da busca e apreensão no processo penal, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 108.
8Em que pese a um entendimento contrário, por vezes manifestado para negar o poder investigatório do Ministério Público ou a validade de suas investigações, à polícia foi dada exclusividade (para a polícia federal tão-somente, não também para as polícias civis) apenas para o exercício de funções de polícia judiciária da União, não também para investigações, sendo certo que é a Constituição mesma que distingue uma coisa de outra, ao estatuir no § 4º do art. 44 que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Como se vê, trata-se de atribuições diferentes – funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais –, dadas a uma mesma polícia.
O que quer dizer o dispositivo constitucional – que não serve para sustentar uma suposta exclusividade da polícia para apurar infrações penais – nada mais é que o que está escrito nele, isto é, que a polícia federal destina-se a “exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”, vale dizer, só a ela – e não também às outras polícias organizadas e mantidas também pela União, quais sejam polícias como as rodoviária e ferroviária, – cabe exercer aquelas funções (de polícia judiciária da União), o que a doutrina, aliás, já tem ensinado.
E não é por outra razão que continua em vigor a vetusta e importante regra do parágrafo único do art. 4º do Código de Processo Penal, jamais posta em dúvida, de que “A competência definida neste artigo [a da polícia judiciária, exercida pelas autoridades policiais, para o fim de apuração das infrações e de sua autoria] não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”.
9É verdade que um dispositivo de Lei Complementar lhe faculta “notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência injustificada”, mas isso, é bem de ver, “nos procedimentos de sua competência”. Procedimento de sua competência, porém, é o inquérito civil público, não também assim um inquérito penal. Quanto a matéria penal, o que lhe é concedido é o direito, que já lhe dava o velho Código de Processo Penal e hoje já na Carta, de ”requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial” (Constituição Federal, art. 129, VIII). E também, conforme Lei Complementar, o de acompanhar as diligências e o inquérito. Não passa disso.
10Se uma simples representação de vítima de crime, malgrado sua suspeição e seu interesse, pode ser suficiente para o oferecimento de denúncia, por que repelir os elementos de convicção colhidos diretamente por quem se propõe prová-los?
“O art. 513 do CPP, aliás, quanto ao oferecimento de denúncia ou queixa nos crimes de responsabilidade de funcionário público, se contenta com a declaração da impossibilidade da apresentação de qualquer das provas que menciona, o que demonstra que, mesmo nesse caso de exigência excepcional de apresentação inicial de elementos de convicção, não se trata de regra absoluta.
É exata a afirmação de que o processo criminal atinge o status dignitatis do acusado, mas nem por isso se há de exigir o que a lei mesmo não impõe, de modo a dificultar o direito de promover a ação penal com a produção prévia de prova, a ser feita normalmente no curso do processo, na fase adequada. Desse modo, o oferecimento de elementos de prova não é uma condição geral de procedibilidade.
Nem há falar em comprovação da sinceridade do pedido, com quer parte da doutrina.
Para coibir abusos, são previstos no Código Penal os crimes de ‘denunciação caluniosa’ e ‘comunicação falsa’ de crime ou contravenção” (José Barcelos de Souza, Direito Processual Civil e Penal, Forense, 1995, p.157.
11A distinção surgiu na Alemanha, segundo Nicolas Gonzalez-Cuéllar Serrano, Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal, Madrid, Colex, 1990, p. 290.
12O art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro dispõe que “Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam cientificar seu estado. Parágrafo único: Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos”.
Há a autorização para o procedimento, que será por isso mesmo legal e obviamente depende do consentimento do condutor do veículo, mas não há sanção para a recusa de submeter-se a ele.
13A esse respeito, Margareth Vetis Zaganelli, tese Intervenções corporais como meio de prova no processo penal: o difícil limite entre o jus puniendi e os direitos fundamentais do acusado, Belo Horizonte, 2001, apresentada à Faculdade de Direito da UFMG.
Veja-se o crime, severamente apenado, de embriaguez em serviço ou de apresentar-se embriagado ao serviço, definido no Código Penal Militar. Pois bem. Geralmente não será possível a produção de uma prova satisfatória sem a colaboração do indiciado. Nem ao menos aqueles testes clínicos de orientação no tempo e no espaço e de equilíbrio corporal, o conhecido “quatro”. Fica-se, então, na prova dita “observacional”. E daí a conveniência do estabelecimento de um dever legal. Mas com uma faculdade de recusa, se não se autorizar o exame por laboratório da confiança do paciente, que poderá também recusar o material apresentado para o exame.
Dentre as medidas que têm sido adotadas para assegurar exames – romper a resistência física, colocar o caso à apreciação do juiz e a criminalização da resistência, como se faz na Espanha desde 1995, onde se criou o novo delito de desobediência grave à autoridade, a última parece mais adequada.
Mas é preciso que se afaste qualquer procedimento invasivo, doloroso, perigoso para a saúde ou ofensivo à dignidade. Nesse particular, aliás, parece menos atentatório à dignidade a coleta de sangue que mandar usar o “bafômetro” ou “fazer um quatro”.
14Boletim do IBCCRIM, caderno de jurisprudência, novembro de 1999.
15Como muito bem acentuou o acórdão, “o cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na manutenção desta”.
Essas coisas, como tantas outras, só serão mais largamente combatidas quando tivermos um eficaz controle externo do judiciário, no sentido mais amplo possível, sem que nisso se possa enxergar disparate, visto que decisões do Tribunal do Júri, posto constitucionalmente soberanas, podem ser cassadas.
16Acórdão do TJSP no HC n.454.113-3/3-00, 1ª .C. Crim., rel. des. Márcio Bártoli, j. 22.03.04, v.u., Boletim IBCCRIM n.142, setembro/2004, por exemplo, decidiu que é ilegítima a prova consistente em depoimento prestado exclusivamente ao órgão do Ministério Público sem a presença e presidência do juiz, à revelia da parte contrária, razão por que concedeu hc para determinar o imediato desentranhamento do documento, que foi declarado nulo.
17 A liberdade de prova em matéria penal, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1955, p. 50.
18As garantias fundamentais e a prova (e outros temas), Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1997, p. 10.
19Ada Pellegrini Grinover, As provas ilícitas na Constituição, na obra do Instituto de Estudos Jurídicos Livro de Estudos Jurídicos , Rio de Janeiro, 1991, v. 3, p. 24-25.
20De um abrandamento do rigor da lei é exemplo um acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, assim ementado: “O juiz presidente do tribunal do Júri pode, nos termos dos arts. 477 e 497, XV,do CPP, a pedido de jurados e concordes as partes, determinar a inquirição de testemunha já ouvida e presente ao ato de julgamento, embora não arrolada no libelo e na contrariedade “ (RT 596/411).
21Assim é que, nas ações de manutenção e reintegração de posse de força nova, se a inicial não estiver devidamente instruída, o juiz determinará que o autor justifique previamente o alegado, citando-se o réu para comparecer à audiência que for designada (art 928, caput).
22A justificação está incluída, aliás, no Código de Processo Civil, como medida cautelar, embora seu objetivo seja tão só o da pré-constituição de prova, sendo, por isso mesmo, conhecida como justificação avulsa. Para Inocêncio Borges da Rosa, Processo Penal Brasileiro, v. II, Globo – Barcelos, Bertaso e Cia., Porto Alegre, 1943, p.546 , a justificação genérica (de que eram exemplos os arts. 337, 371 parág. único, 455 e outros do Código de 39) “é um feito de jurisdição voluntária ou graciosa”. Não se trata de jurisdição contenciosa, explicava, porque a outra parte tem sua atuação limitada à fiscalização da prova; – não lhe é permitido vir com exceções, oferecer impugnação à petição do justificante, apresentar prova em sentido contrário nem recorrer”.
“Não se trata propriamente de ação cautelar, como doutrina Ovídio A. Baptista da Silva. E sim de procedimento de jurisdição voluntária, segundo o conhecido e autorizado magistério de Lopes da Costa (A administração pública e a ordem privada, n. 276. Com dúvidas, Pontes de Miranda”, observou Sálvio de Figueiredo Teixeira ao art. 861, p. 492, de seu Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Saraiva, 192, p. 478).
Diz o seguinte no art. 861:
“Quem pretender justificar a existência de algum fato ou relação jurídica, seja para simples documento e sem caráter contencioso, seja par servir de prova em processo regular, exporá em petição circunstanciada, a sua intenção”.
o Código revogado, art. 735, referindo-se apenas ao objetivo “para servir de prova em processo regular”, não dizia também “para simples documento, sem caráter contencioso”, como faz o Código vigente, assim realçando a finalidade de documentação.
Curioso é que tenha colocado a justificação entre as cautelares, o que, aliás, não é de causar espécie. O legislador costuma fazer semelhantes confusões, incluindo entre as cautelares medidas que não são essencialmente preventivas, nem preparatórias, nem conservadoras. Assim é que inclui entre as cautelares, além da justificação, o protesto judicial, a interpelação e a notificação (arts. 867 e 873); a homologação do penhor legal (art. 874), o atentado (art. 879), o protesto de títulos e contas (art. 882), que não são cautelares, como bem ensina o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, em anotação ao art. 813 de sua obra citada. O protesto, a interpelação e a notificação (arts. 867 e 873), por exemplo, são procedimentos meramente conservativos de direito. Se exigida como procedimento prévio para, por exemplo, a propositura de ação de despejo, a notificação terá função preparatória.
Nestas condições, desligada de um processo em curso ou findo, com finalidade de obter-se um documento probatório processado em juízo, presente o contraditório, tudo a lhe conferir aptidão para instruir um pedido de revisão criminal, com a prova já pronta, não pode a justificação avulsa ser tida, ao contrário do que entendeu um autor, em colocação mais ou menos generalizada, de uma “verdadeira ação penal cautelar preparatória” que deva ”ser processada perante o juízo da condenação”.
Outra coisa é a simples comprovação de fatos em um processo, a que a lei processual civil em oportunidades diversas chama também de justificação. Assim, nas ações de manutenção e reintegração de posse, com pedido de manutenção ou reintegração initio litis. Se a inicial da possessória não estiver devidamente instruída, o juiz determinará que o autor justifique previamente o alegado, citando-se o réu para comparecer à audiência que for designada (art. 928, caput).
É o que acontece com a possível, como dito no texto, justificação, ou seja, coleta de prova no curso da ação, em verdade no início, do processo da revisão criminal. Também as justificações do art. 423 do CPP, se requeridas na contrariedade do libelo correspondem a requerimento de prova naquele processo, de modo que, indeferido o pedido, descabe a apelação, que poderá ser utilizada, entretanto, por motivo de indeferimento de petição de justificação avulsa, visto que, aqui, feito novo, autônomo. A apelação criminal é cabível não por proferir o juiz uma decisão definitiva, como quer um julgado, mas, a meu ver, decisão com força de definitiva. Mas é bem de ver que, a final, não há mérito a ser julgado, ou melhor, a decisão será apenas no sentido de proclamar a observância dos preceitos legais no feito, cujos autos, depois, serão entregues ao requerente independentemente de traslado, de acordo com o Código de Processo Civil.
23Pode ocorrer a necessidade do depoimento ad perpetuam rei memoriam de testemunha, por exemplo, ainda não arrolada, em processo na fase inicial. Aplicar-se-ão, na hipótese, subsidiariamente, as regras do Código de Processo Civil, arts. 846-851, que disciplinam o procedimento dessa medida cautelar específica, que, observe-se, é medida hábil não só para inquirições de testemunhas, como acontece com a justificação, mas poderá consistir também em interrogatório da parte e exame perícial.
Mas nada impede que se lance mão da justificação, uma medida de jurisdição voluntária ou graciosa que, tendo-se em vista a finalidade especial no caso em apreço, funcionará como medida cautelar antecipatória, com a conseqüência de atrair a competência para o juiz da causa.
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*Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Diretor do Departamento de Direito Processual Penal do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais.