Construção de uma ideologia estrutural da auditoria jurídica III
Jayme Vita Roso*
O Espírito do Paradoxo nos Riscos da Felicidade: Ser Auditor Jurídico!
2 – O auditor jurídico, enquanto e quando engajado com os fundamentos da profissão, já percebeu que não vive da retórica oca e amoral dos conchavos políticos e/ou profissionais. Como Emmanuele Severino, tem ciência e consciência de que somos destinados a alguma coisa, que é infinitamente maior de tudo quanto os mais associáveis desejos possam valer ou nos faça ser seus escravos2.
Para o escriba, o epicentro desta crise mundial não está nos seus efeitos financeiros e econômicos, mas na total ausência ou distanciamento das regrinhas básicas que o Professor Loss apontava em Harvard e que o Decreto-Lei 2.627/40 (clique aqui), comentado por Trajano Miranda Valverde e a lei 6.404/76 (clique aqui), nos seus artigos 153/157, dispondo, indica e pontualiza para os que se dizem administradores (públicos e privados), em qualquer função, grau, competência, atividade, vir bonus vir optimus et purus.
Os positivistas, normalmente, enxergam, nessa norma, uma ingerência no direito estatal de resquícios religiosos, abomináveis para o homo sapiens contemporâneo que se travestiu de homo economicus. Esquecem que, desde tempos que fogem aos calendários, o pior vírus é o preconceito.
3 – Contam os auditores jurídicos em seu abono, – os auditores jurídicos conscientes e conseqüentes dos seus direitos e deveres – com o perfil de serem os arautos de um novo exercício da advocacia.
Com segurança, podem ressaltar: são um como modismo corrente, inovadores. Será possível que a prática assentada em regras seculares possa inferir, sem atentar aos princípios deontológicos, que a auditoria jurídica seja uma inovação?
Na tentativa de responder ou ensaiar um discurso de convencimento, o escriba vai além, buscando ser merecedor de indulgência plenária: não é a auditoria jurídica per se uma inovação no seu sentido literal. Razões:
a) a auditoria existe há anos e anos, como ensaiamos apontar já em 20013;
b) a auditoria jurídica, como foi concebida pelo escriba, insiste em ser criativa, buscando mudança no exercício da advocacia, já exaurido pela ausência de inovações;
c) na construção do seu modelo auditoria jurídica, o escriba considera inegociável qualquer ato da atividade do advogado com a mercantilização, com a mistura promíscua de atividades concorrentes, com o afrouxamento e permissividade de constituição de empresas para a pratica da profissão em afronta concreta à legislação, fabricando feudos cartelizados sob o manto da especialização com a participação de profissionais de outros ramos do conhecimento em sociedades criadas para essa finalidade.
Fique assentado em solo compactado que, se a auditoria jurídica é tão ciosa do que faz e para o que fez e como faz e porque faz, o seu estribo está na aferição de práticas ilícitas que alguns advogados, nos cinco continentes, na onda do neoliberalismo, armaram, através de construções jurídicas de negócios, modelagens e atividades ilícitas quanto cínicas. Não é preciso dar relevo que os executivos que deram os golpes do Parmalat, da Enrom, subprimes e outras tantas mazelas se valeram do concurso de advogados desonestos para a consecução dos seus fins celerados, da mesma forma que a construção do Fórum Trabalhista de São Paulo não comportaria a autorização de pagamentos sem a obra acompanhar o cronograma, se não houvessem "pareceres técnicos", vistoriando cada performance.
Se Lenin disse que "o antisemistismo é o socialismo dos imbecis", acreditar que os pagamentos das obras inconcluídas foram somente de responsabilidade de quem assinou os cheques é atestado, com visto notarial, de assimilação de que todos os cidadãos vão continuar aceitando a prática democrática que assistimos no cotidiano: eles tem obsessão pelos confins da impunidade, na sua mediocridade de não-homens. É o espírito do paradoxo, que explode no riso do cinismo, como se acontecimentos históricos não pudessem se repetir.
4 – Para surpreender alguns, o escriba, na pesquisa contínua do sentido das palavras, como se formaram e como evoluíram e como são hodiernamente empregadas em todas as categorias, buscou, como repetindo seus anteriores procedimentos, em outros ou mesmo nesse, a etimologia da inovação.
Grata, gratísssima surpresa, com a alegria de encontrar no fervilhante Dictionnaire Culturel em Langue Française4, a que lhe parece ser a mais singela e mais completa idéia da palavra em realce. E acendeu ainda mais seu prazer intelectual ao conferir que a palavra inovação vem explicitada como:
"Inovação, substantivo feminino, 1297 innovación, termo jurídico da Idade Média; empregado no latim intermediário innovation do supino de innovare> inovar;" e,
continuando: a partir de 1559, com a idéia de "ação, fato de inovar> criação, mudança. Critérios de inovação, em técnica, na industria..." e mais, o uso corrente, com o significado de "coisa nova: resultado da ação de inovar> novidade: criação, inédito. Amar. Fazer introduzir uma inovação> descoberta, invenção, uma inovação literária", para concluir com o sentido de especialidade: "realização de nova técnica que se impõe sobre o mercado".
O antônimo pode ser "arcaísmo, imobilismo, rotina, tradição".
Muito bem, por dever de probidade intelectual, o escriba não cataloga sua obra e seu esforço pela auditoria jurídica como invenção. Ao contrário, como recorda, desde 2001, já a classificou. Mas, sem culpa, agora, insiste que a auditoria jurídica é uma proposta inovadora da nobre profissão da advocacia, com vista á criação, à mudança, à descoberta de atividades e de serviços prestados exclusivamente por advogados ou por sociedade de advogados auditores, para servir ao país, resguardando o regime democrático sob estrita observância dos preceitos éticos, mas com liberdade, com independência, sem compromissos políticos, desatada de conflitos de interesses, atuante socialmente, multidisciplinária sem sujeição a qualquer outra disciplina, quando participem profissionais de outras áreas no mesmo trabalho, porém, com zelo e com a preservação do sigilo profissional.
5 – A auditoria jurídica está para o auditor jurídico como a qualquer ser humano, nos riscos da felicidade que é buscada, quando se aplica o coração. Refletindo: "o amor não mudou, mas ele se degradou. Não digo que ele perdeu a intensidade. Digo somente que seus critérios de medida mudaram5" e, ainda sobre Jean d’Alançon e sua obra, alguns pensamentos elaborados por Bruno–Marie Tavernier: "Amor de Deus também, seguramente, porque ele é profundamente crente, amor do homem porque ele é profundamente humano" (p.272) e "O homem é feito para a verdade e a grande verdade para o homem é o amor" (p.273).
Para o escriba, a auditoria jurídica é uma profissão dentro da Profissão; mais iniciática até agora, que didática, é um apelo lancinante à consciência humana, sobretudo dos jovens, no que ela tem de mais verdadeiro e fecundo.
P.S.: Apenasmente concluído esse arremedo de ensaio, recebi duas importantes publicações que trazem preciosas informações sobre inovação, tema que cataliza o migalheiro-mor, Miguel Matos. Como não se escreve em e para Migalhas com intuito de fazer riqueza ou ser ela gerada, no sentido que se materializa ou assim possa acontecer, em pecúnia, a idéia de ler os textos e, se pertinentes, agregá-los ao texto concluído se materializou.
1) A primeira, Dicta&Contradicta, coletânea de ensaios publicada semestralmente pelo Instituto de Formação e Educação, entidade que visa a estudar, criar e divulgar no Brasil conhecimento nos campos das Humanidades, das Artes e Filosofia: exemplar de junho de 2008, número 1. Vim a saber que seus responsáveis são jovens interessados em cumprir os escopos da Revista, nas áreas a que se dirigiram.
Nela deparo com o ensaio de lavra de Mendo Castro Henriques, filósofo político e Professor da Universidade Católica de Lisboa, com o título A Inovação de Bernard Lonergan. Este autor (1904 – 1984) é reputado como o mais importante filósofo do século XX, com seguidores por todos os recantos do mundo e, como sinaliza Henriques, a sua contribuição "está editada em quatro das geolínguas, que existem mais de uma dezena de centros dedicados à sua obra; que a bibliografia sobre o seu pensamento alcança mais de mil monografias e artigos; e que por ano se realizam quase uma dezenas de colóquios sobre ele" (p.45).
Desconhecido por muitos e mais ainda rejeitado por ter sido jesuíta, pelos néscios encastelados nos modismos materialistas, Lonergan, canadense, foi reconhecido por uma cultura enciclopédica, pois, tanto abordava o que distinguia Santo Tomás de Aquino, como as controvertidas teorias de Keynes, de Newton, de Einstein e Max Plank.
Henriques tomou como marco do ensaio em crivo a obra Inteligência: Um estudo do conhecimento humano, que veio a lume em 1957. É alentada (850 páginas), sinuosa, profunda, recheada de citações do latim eclesiástico, "com uma soma e complexidade que ultrapassavam em muito as situações epistemológicas racionalizadas por Platão e Leibniz" (p.47). A ver de Mendo, no âmbito do seu ensaio, ainda sobre a obra, deveriam ser, como o foram, curados cinco temas principais: as relações entre conhecimento e realidade, conhecimento científico e cosmologia, ação humana e ética, as questões de interpretação e a relação entre natureza de Deus e filosofia" (p.47).
O escriba migalheiro foi conduzido a oferecer essas ínfimas considerações preliminares, porque, curvando-se sobre Lonergan e sua capital importância no pensamento do século ocorrido, o titulo do artigo, invocando a palavra inovação, produziu-lhe o frisson para levá-lo em conta, no painel dos seus significados.
Por conseqüência, a inovação de Lonergan, segundo Henriques, pode ser apreciada por estas vias:
a) "O pensamento crítico é bem-vindo mas sem aprisionar a história nas malhas da razão”, sendo “necessário e possível, mas como precisamos de captar todos os fatos do universo e suas interconexões para realizar em juízo virtualmente incondicionado sobre um fato particular, também não necessitamos de compreender a totalidade da tradição para julgar um erro particular"(p.54/55);
b) "A arte tem um papel decisivo porque pressente novas possibilidades da vida humana, ao introduzir imaginativamente novas intelecções e juízos de valor no fluxo da experiência" (p.55);
c) É preciso cultura teórica para captar os desenvolvimentos a longo prazo negligenciados pelo pragmatismo; e é preciso inteligência prática para aplicar as intelecções da cultura" (p.55);
d) Em agudas inferências colhidas ao largar nas obras de Lonergan, Henriques enfatiza: "A educação superior deve aprofundar o diálogo com os livros clássicos. Deve alimentar a visão a longo prazo, e a aprendizagem desinteressada. A educação para as humanidades deve ser compatibilizada com o ensino técnico, profissional e especializado" (p.56); concluindo,
e) "A abertura à transcendência deve partir do desejo de saber de modo ilimitado até alcançar a presença sagrada que cura, renova, e sustenta essa orientação", pois ela "parte da pessoa individual, enraíza-se nas comunidades de pertença que reconhecem o primadu do espírito sobre o mundo (p.56).
Com ousadia, o escriba migalheiro percebe e verbaliza que a inovação do pensamento de Lonergan repousa na problemática do conhecimento vis-à-vis com a vida do ser humano: não lhe está concretada como síntese de sua pré-ocupação, pois, enquanto e sobretudo por existir, enfrenta a crise social, que lhe desafia, na busca da sua superação, como ser humano.
Dá para perceber quanto é válido ir buscar as palavras que nos cercam e nos seduzem até nas suas origens. E em inovação, nada mudou, desde que foi reconhecida no século XII, como termo de uso jurídico.
Na letra "d" acima, Henriques, resumindo Lonergan, apela para a educação e para as humanidades que também se canaliza para o ensino técnico, profissional e especializado.
Percebam, por favor, que Lonergan não confunde, não mistura, não amálgama educação com ensino, pois aquela deve proceder este.
2) Graças à generosidade de Élcio Aníbal de Lucca, anima mater do MBC – Movimento Brasil Competitivo, veio-me o Manual de Inovação, editado pelo MBC com o FINEP e o MCT (Brasília, maio de 2008).
Impecável impressão e fluentes textos de todos os ângulos, aspectos, instrumentos, programas, veículos e agencia que dão suporte à inovação, voltando seu foco ao ambiente empresarial, não deixa nenhuma dúvida a quem quer se interesse pelo tema.
Como a auditoria jurídica pretende ser uma inovação no exercício da advocacia, com regras próprias, como catalogá-la, dentro dos tipos conhecidos e sugeridos pelo Manual de Oslo, elaborado pela OCDE?
Proponho. Sugiro.
A auditoria jurídica é uma exploração de novas idéias, para melhorar a qualidade da prática do exercício profissional, em recantos antes inexplorados, criando vantagens competitivas, para os profissionais que a ela se dedicarem, aprimorando as práticas usuais, com o emprego da multidisciplinaridade, e, como resultado, reinserindo a advocacia como essencial ferramenta do verdadeiro regime democrático e o advogado como autor e protagonista da defesa intransigente de seus valores. Nela, somente nela, a felicidade tão almejada e tão buscada, o auditor jurídico se autorrealiza, como pessoa.
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1 KERTÉSZ Imre, Prêmio Nobel de Literatura em 2002, por ter sido habitante do Gulag, continua, em seus livros, a agulhar as velhas e as novas ditaduras, conformismos, falsas democracias, daí, cada seu escrito, é um alegre urlo pela liberdade.
2 SEVERINO. Emmanuele, Immortalità e destino, Rizzoli, Milão, 2008. O autor, embora escreva com vigor sobre uma variada temática filosófica, não é religioso, mas dá exemplo de que o homem não está neste mundo só para consumir. Fá-lo, nos seus livros, quando assume a responsabilidade ética de ser, enquanto pessoa humana, digna e merecedora de respeito. Mostra nos sights pelos seus insights.
3 ROSO, Jayme Vita. Auditoria Jurídica para a Sociedade Democrática, Escolas Profissionais Salesianas, São Paulo, 2001. 192 p.
4 REY, Alain (dir). Dictionnaire Culturel en Langue Française. Paris: Le Robert, 2005. p 1998.
5 d’ ALANÇON. Jean, Les risques du bonheur, Le Grand Livre du Mois, Paris, 1997, p. 192, 272 e 273. O autor é filósofo e conferencista, especializado em dar assessoria para formação humana.
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*Advogado e fundador do site Auditoria Jurídica
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